quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Os produtos do Alto Amazonas (1861)

Gustavo Maia Gomes
A pesca do pirarucu (peixe que pode atingir 200 kg de peso) era uma atividade econômica importante no Amazonas do século 19. (Foto colhida na internet; Instituto Ciência Hoje / UOL)

Em 1861, o governo de Pedro II organizou a Exposição Nacional da Indústria, no Rio de Janeiro. As províncias foram convidadas a participar e o Amazonas, efetivamente, lá esteve mostrando o que produzia. Em outra matéria, falei das ervas medicinais. Agora trato dos “produtos agrícolas”.
Na verdade, a despeito do eufemismo, praticamente, não havia agricultura – apenas, extrativismo – no Amazonas. Além disso, o Anexo ao Relatório do Presidente da Província Manoel Clementino Carneiro da Cunha à Assembleia Legislativa (1862) que, em parte, transcrevo a seguir, também relaciona objetos artesanais.
Com essas ressalvas, copio seletivamente do “Relatório sobre os produtos agrícolas do Alto Amazonas” (Manaus, 23 de outubro de 1861), assinado por Antonio Gonçalves Dias. Mantenho a ordem em que os vários itens aparecem no documento.
CAFÉ, CACAU, PIRARUCU...
Café. O melhor, antigamente, era o de Coari e Teffé, no Solimões. Seu uso é bem conhecido. Consome-se algum na província e o restante é exportado para Belém do Pará. É para lamentar não só que seja péssimo o sistema de fabricar o café, como também que a cultura de tão importante ramo do comércio vá caindo em total abandono, quando há na província excelentes terras para ela.
Cacau. Os usos do cacau são bem conhecidos. Figura em matéria médica, na escala dos gêneros alimentícios, no fabrico de sabão, etc. Mas na Província, o pouco que se consome emprega-se apenas no chocolate e manteiga; o restante é exportado para Belém. Esse ramo do comércio prospera, mas não sua cultura; há muito cacau silvestre na Província. O fabrico da seringa, peixe, manteiga de ovos de tartaruga, e castanha rouba o tempo à população e não permite que ela se entregue à lavoura.
Pirarucu. Peixe grande (há até de dez palmos) dos rios da Província, cuja salga lhe fornece um de seus principais ramos de comércio. O peixe é pescado de três modos, ordinariamente: flechado com sararaca, arpoado e fisgado. Uma ou outra vez também o pescam em redes fortes preparadas especialmente para pesca dele e do peixe-boi.
Atendendo-se ao grande consumo deste gênero na Província e a quantidade exportada, vê-se que vai em grande aumento e no futuro provavelmente virá a substituir, ao menos nas províncias do Norte, o bacalhau, que não lhe é superior.
Favas de Cumaru. São sementes de uma árvore monocotiledônea. Seu fruto é semelhante ao ovo de galinha achatado dos lados. Tem cheiro muito agradável e dá excelente óleo. É quase todo exportado para o Pará. Há muitos anos a exportação desse gênero varia de dez a quinze arrobas. Não é cultivado.
TABACO, GUARANÁ, BORRACHA
Antonio Gonçalves Dias, autor do “Relatório sobre os produtos agrícolas do Alto Amazonas” prossegue:
Salsa. Raízes da planta salsaparrilha do México, Peru e Brasil. Dela fazem uso terapêutico e, em países frios, a higiene. Muito pouca se consome aqui, vai quase toda para o Pará, donde é exportada para dentro e fora do Império. Este ramo do comércio tem sido, há trinta anos, estacionário.
Tabaco. O mau amanho [arte ou técnica de cultivar ou lavrar a terra] do tabaco atualmente vai fazendo-o perder certas qualidades que lhe davam a primazia sobre muitos outros conhecidos; dessa infelicidade não escapa nem o fumo de Borba. A precipitação que há no fabrico deste gênero e a falta de braços roubados pelo fabrico de outros, especialmente da seringa, duplicam a decadência desse ramo do comércio.
Taquari. Tubo por onde se fuma em cachimbo. É uma taboca fina pintada com mais ou menos gosto e de diversos tamanhos, desde palmo e meio até cinco ou seis.
Anil. Goma das folhas do arbusto de mesmo nome. Hoje, o pouco que se prepara é aqui mesmo consumido; antigamente, porém, exportava-se algum. É empregado pelas engomadeiras em corar de azul a roupa branca.
Casca de Umeri. Casca de uma árvore deste nome, de que se extrai óleo muito aromático. Não é gênero de comércio.
Guaraná. Suco gomo resinoso do arbusto Paul linia Sorbilis, planta do Amazonas. Nesta província, só no distrito de Maués prepara-se o guaraná tal qual aparece no mercado. Aí os regatões ou mascates da Província e negociantes vindos do Mato Grosso pelo Tapajós e Madeira o compram todo. Esse ramo do comércio vai em aumento, conquanto a extração da seringa não permita à sua cultura o desenvolvimento de que é digna.
Seringa [Borracha]. Goma resina da seringueira. Tal qual vem ao mercado, obtém-se golpeando a árvore, recebendo o líquido em pequenas vasilhas de barro ou de folha de Flandres, que se pregam na árvore abaixo do golpe e reunindo-o em vasilhas grandes. Não se faz dela uso na Província, sendo toda exportada para o Pará. O fabrico desse gênero na província data de dez a doze anos e começou no rio Madeira, cujas terras estão cobertas de seringais.
Castanha. Fruto do castanheiro (Castanha do Maranhão, impropriamente chamado nas províncias do Sul). Alta e frondosa árvore da América do Sul. Faz da castanha grande uso na Província a arte culinária, em substituição ao coco, que é raro e cujo gosto é muito semelhante. Esse ramo de comércio vai em grande aumento, mas a população não planta um castanheiro; limita-se a colher no tempo próprio.
Puxeri. Semente de uma árvore do egapó (baixa alagada) dicotiledônea. Retrograda muito este ramo do comércio. Pouco fica na província, sendo quase todo exportado para o Pará.
Sementes de Mamona. Sementes de mamoneira, planta muito conhecida. Extrai-se seu óleo, de que vai uma amostra, pelo processo comum. Não figura no mercado como ramo de comércio, nem é cultivada.
Caruru – Sal Vegetal. É uma das maravilhas do Rio Negro, uma espécie de caruru que cresce nas pedras das cachoeiras quando com a seca vão ficando descobertas. É excelente salada o espernegado. Comem-na também cozida com peixe, ao qual fornece o sal comum. Deste caruru sabem os índios extrair o sal com processos mais grosseiros, sem dúvida, mas na essência os mesmos que outros mais civilizados poderão empregar.
OVOS DE JACARÉ, TARTARUGA, TRACAJÁ
Continuo a citar o Relatório escrito em 1861:
Ipadu. Pó das folhas do arbusto do mesmo nome. Prepara-se torrando as folhas, pilando-as e juntando-lhes um pouco de tapioca ou de cinza. Os indígenas fazem grande uso dessa preparação, conservando, como os mascadores de fumo, no canto da boca, um pouco dela. Creem que os alimenta, porque lhes tira o apetite e reduz o estômago ao estado de inércia.
Urucu. Sementes da árvore do mesmo nome. Da infusão n’água deixa uma tinta encarnada, muito linda, com que os indígenas pintam suas manufaturas e algumas tribos a si próprias. Usa-se também na arte culinária. Conquanto haja algum na Província, não é exportado, nem tem preço de mercado.
Ovos de Jacaré. Não têm serventia na Província, conquanto a casca seja excelente lixa.
Ovos de Tartaruga. Matéria prima da manteiga chamada de ovos de tartaruga, ramo do comércio desta Província. Prepara-se cavando nas praias os ovos que as tartarugas aí depositam na vazante dos rios; enchendo deles uma montaria (canoa pequena); esmagando-os com os pés, como fazem em outros lugares os amassadores de barro de olarias pouco aperfeiçoadas; deitando-lhes um pouco de água; e deixando à natureza o trabalho de separar das outras matérias que entram na composição do ovo a parte gordurosa, a qual fica na superfície, donde é tirada para se depurar em tachos ao fogo.
Serve a manteiga para iluminação particular, para conserva de diversos gêneros alimentícios, a que chamam mexiras, e para condimento. Os ovos, além de servirem de matéria prima para a manteiga, são alimento da população. Vai em decadência esse ramo do comércio.
Ovos de Tracajá. Ovos de um anfíbio semelhante à tartaruga, porém menor. Servem de alimento à população e são preferidos aos de tartaruga, por serem mais saborosos. Pode-se fazer manteiga seguindo-se o mesmo processo que para a dos ovos de tartaruga, todavia não a preparam porque, havendo poucos ovos desse animal, e sendo mais saborosos que os outros, preferem comê-los.
Amostras de algodão em Capucho (de Castanheiros e de Manaus). Gênero de pouco produto e de nenhuma exportação da Província, posto que as terras do Rio Negro, Madeira e provavelmente a de muitos outros afluentes do Solimões sejam convenientemente próprias para essa cultura. [As] amostras [remetidas ao Rio de Janeiro foram] apanhadas ao acaso e mal dão uma ideia do que seria o produto quando fosse mais bem cultivado e preparado. Capuchos abundantes, senão muito grandes, fibras lustrosas resistentes e destacando-se com facilidade do caroço”.
FARINHAS E RALOS
O Relatório continua a enumerar os produtos que o Amazonas enviara à Exposição Nacional da Indústria, no Rio de Janeiro:
“Uma peça de tucum, uma dita de dito grosso, uma maqueira [rede de dormir] de tucum entrefina, uma dita de miriti, uma dita de Miranhas (Jupurá), uma dita emplumada, cordas de uaicima para rede, ditas de tucum dita, cordas de cabelo (Rio Branco), um pote (dos índios do Içana), quartinhas de Barcelos, jarro e prato de louça pintada, um par de bilhas [vaso de barro com gargalo curto e estreito] pintadas, um alguidar (do Amazonas), um prato (do Amazonas), panelas (do Rio Negro), polvilhos, araruta, tapioca, farinha d´água (branca), farinha d´água (amarela), tipiti para mandioca”.
O “tipiti”, instrumento inventado pelos índios, servia para espremer a massa de mandioca ainda crua, de modo a extrair-lhe parte do caldo venenoso, mas aproveitado na fabricação do molho tucupi.
A Farinha de Mandioca merece extensas considerações de Gonçalves Dias:
“É fabricada de duas maneiras na Província, donde provêm as denominações farinha d´água e farinha seca ou branca”. Na primeira, “põe-se a mandioca no molho durante quatro ou cinco dias, depois, amassa-se com água e aperta-se no tipiti para extrair o caldo. Feito isso, peneira-se a massa na gurupema e coze-se em fornos de barro. Quase sempre, junta-se um pouco de massa fresca a mandioca puba. É a farinha d´água”.
“Para preparar-se a farinha seca”, prossegue o Relatório, “ralam as raízes da mandioca, depois de limpas, em ralos de mão, junta-se água, e levam a massa ao tipiti para enxugar; peneira-se e coze-se. O caldo da mandioca deixa-se em repouso por algum tempo, para que se deposite a tapioca, que é lavada duas ou três vezes para então secar-se ao sol e ser levada ao mercado com o nome de goma, ou ao forno para cozer-se a farinha de tapioca. O caldo da mandioca depois de fervido denomina-se tucupi e é aproveitado para molho depois de bem fervido”.
“Há na Província 14 qualidades de mandioca”, informa, ainda, Gonçalves Dias, “umas amarelas, outras brancas, umas que chegam ao completo desenvolvimento em seis meses, outras em dez e doze. Os naturais aproveitam as vazantes para, pelas margens dos rios, que ficam a descoberto pelo verão, plantarem a mandioca de seis meses”.
Mais produtos são enumerados: “tipiti para óleos, balaios sortidos, urupemas ou gurupemas, frutos de ouricuri (com cujo fumo solidificam a goma elástica), pacarás, chapéus do Rio Negro, chapéus de grelo de tucumã, chapéu feito por um gentio Cucama, tupês ou esteiras, ralos de Uaupés”.
Esses últimos, os Ralos de Uaupés, recebem descrição demorada. “É um invento curioso dos índios do Uaupés de uso frequente em todo o Rio Negro para o fabrico de farinha e de exportação como objeto de curiosidade. Engastam na madeira escavada e curvas uns como dentes de sílex rigíssima [rigidíssima?], aos quais dão desenhos variados, concluindo por dar-lhes uma mão de breu de sorva para as segurar melhor. São de diferentes tamanhos”.
“Esse ramo da indústria dos índios do Uaupés”, informa Gonçalves Dias, não é tanto um objeto de curiosidade, como à primeira vista nos poderíamos persuadir, porém de uso frequentíssimo. É raro encontrar-se uma palhoça, por mais miserável que seja, que, em falta de maqueira, não tenha um desses bancos para oferecer aos seus hóspedes. Há alguns deles monstruosos e outros que são como miniaturas de bancos, porém os de mediana grandeza podem custar de [novecentos a mil réis]”.
ONÇAS, VEADOS, ISQUEIROS
Mais produtos continuam a ser relacionados por Gonçalves Dias:
“Peles de onça, ditas de peixe-boi, ditas de veado, boi e cabra; estopa de Castanheiro, betas [?] de piassaba, sobre-cordalhas, corda de curauã, curauã de comércio, piassaba em rama, cipó uambé, feijão de Borba, milho de Maués, línguas de pirarucu (serve para grosa), escamas do dito (serve para lixa), mandubi [peixe do Amazonas], tauari em rama (branco), dito em rolo (vermelho), cuias, abanos, cera de abelha, favas de cumandauassé [?], maugarataia [?], batata doce, pajurá (para comer, dito coró; o caroço para tinta), pacova do mato, para grude e laçar; isca de tracuá”.
Esta última merece de Gonçalves Dias dois parágrafos de explicação.
“Hábil em fazer fogo, que é a grande dificuldade da vida selvática, o nosso índio prepara o isqueiro, de que andam por via de regra munidos, com algodão em rama, cordas, trapos e outras matérias, mas, sempre que o podem conseguir, preferem a isca de tracuá (amostra que acompanha um isqueiro da terra)”.
“Tracuá é a formiga que prepara essa matéria. Encontram-se esses ninhos em maior abundância e porventura de melhor qualidade no Solimões, donde vêm para o Rio Negro. Têm muito consumo porque o índio, tendo quase sempre necessidade de acender o fogo ao ar livre, mesmo em suas casas prefere com sobeja razão o isqueiro ao fósforo”.
Dito isso, continua o Relatório a discriminar os produtos do Amazonas: “vassouras, peixe-boi seco, colher de molongó (mulungu), ditas diversas, hiapuá (mandioca do mato, para fazer goma; outros a comem também desfeita em farinha, tendo o cuidado de lavar a massa repetidas vezes em muitas águas), carás diferentes, cauixi”.
Cauixi, esclarece Gonçalves Dias, “é a matéria que no Rio Negro e em outros, mas só nos de água preta, se aglomera nas raízes das árvores das margens desses rios. O cauixi apresenta a forma de esponja e tem propriedades cáusticas. Os naturais utilizam-se da cinza do cauixi para fabricarem louça misturando-o com argila”.
GESSO, GARRAFAS, EMBAÚBA
A relação continua: “gesso cristalizado, garrafas de cumatê (tinta), crajurá (tinta), mexira de peixe-boi, ananás silvestre, mel de cana, dito de abelha, jalea de cubio [?], doce de figo, dito de caju, fava de baunilha, bengala de muirapinima, régua de saboarano, dita de pão cruz, dita de muirapiranga, facas de muirapinima, um toro de guariuba (tinta amarela), caju silvestre, cascos de tartaruga, ditos de jabuti, ditos de matá-matá, chapéu pequeno boliviano (usam semelhantes a esses no Rio Negro, para chuva), castanha de caju, pelo de tamanduaí, uarumá (de que fazem paneiros, balaios, etc), uru, fava branca, breu natural, dito de frecha, sementes de copaíba, cola de bucho de piraíba, paliteiro de muiracoatiara, maços de cigarros de tauari, cera de embaúba”.
A embaúba, acrescenta o Relatório, “abunda extraordinariamente nas ilhas e margens do Amazonas, Solimões, Madeira e outros rios. Uma pequena abelha faz o cortiço, de preferência na parte superior da árvore, e produz cada um oito litros de cera”.
E continua: “A dificuldade de transporte do litoral do Peru para o interior, além dos Andes, obrigou os habitantes dessa parte do país a lançarem mão da cera de embaúba, que foi extraída em grande escala até estabelecer-se a navegação a vapor do Amazonas. A liberdade que se concedeu aos índios já havia enfraquecido a produção de cera. Pelo Amazonas, a cera preparada na Europa chega mais barata do que a que se prepara no país, onde há gêneros que sem trabalho dão preços extraordinários”.
Mais produtos embarcados para a Exposição do Rio de Janeiro: “manteiga de cacau, vainas [?] de mate, uma cobra de muirapinima, casca de cumatê, pão de cumatê, milho d’Angola, talo de miriti (vai só um talo do leque partido em pedaços, para facilidade de remessa)”.
“Da casca do talo [de miriti]”, informa Gonçalves Dias, “se fazem venezianas e tupês, ou esteiras, que têm a vantagem de ser de trabalho rápido, levíssimas e de tomar lustro com facilidade. Da medula fazem rolhas e afiadores de navalhas. Do talo inteiro se podem fazer, como em outras províncias do Império, excelentes jangadas e embonos [?] para embarcações. Do grelo do miriti fabricam-se maqueiras. O processo consiste em colher o grelo verde; põe-se logo de molho, bate-se depois, extrai-se a fibra, fia-se e tece-se”.
“O fruto, excessivamente oleoso, mas inocente, é gênero alimentício”, continua, “que em outras províncias mata a fome à pobreza durante alguns meses do ano. Os que, por algum tempo, fazem uso excessivo desta polpa tomam uma cor amarelada, como os que sofrem de icterícia, mas nem por isso gozam de má saúde. Da polpa fazem tijolos para guardar e transportar, quando a não comem ou simples, ou com farinha, ou desfeita em água. A utilidade desta planta acresce neste caso à beleza de seu porte. O miriti é uma das mais belas entre as monocotilidoneas”.
Finalmente, mais uma dúzia e meia de produtos são relacionados no documento escrito por Gonçalves Dias: “tatacajuba (galho e rama e uma sola curtida com ela), feijão do Rio Negro, casca de caraipé, fava de baunilha dos Purus, um perfumador de barro, uma colher de pau, trabalho de lã e croché das alunas da professora de Manaus Libânia Teodora Rodrigues Ferreira, folhas de caroá, ditas de ananás silvestre (vai em porção para que delas se possa extrair a fibra), pele de lontra, temiana de Manaus (composição de raízes e plantas aromáticas de que as mulheres fazem uso), duas mesas de saboarana, uma arroba de fumo de Borba, uma garrafa de cachaça do Paraná da Eva e duas ditas de aguardente”.

Eis aí um belo retrato, embora parcial, da economia amazonense em meados do século 19. Não havia agricultura, nem pecuária, nem indústria, estrito senso. Havia extrativismo. Naturalmente, alguns serviços (embora não pudessem amostras deles ser embarcadas para o Rio de Janeiro). Sem que Gonçalves Dias, em seu Relatório, faça menção disso, também havia no Amazonas governo e, claro, empregos públicos.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Medicina natural no Amazonas (1861)

Gustavo Maia Gomes
Daniel Maia Gomes (em Belém do Pará, dezembro de 1995) foi o primeiro da família a tratar uma infecção de pele com o óleo de copaíba. Isso aconteceu em Soure, Ilha do Marajó, na mesma viagem da foto. Os resultados foram ótimos.
Começo com uma história familiar. Em dezembro de 1995, estava eu em Soure (Ilha de Marajó) com meus filhos Pedro e Daniel, então crianças. A mãe deles nos acompanhava. Daniel apareceu com um furúnculo preocupante. Na farmácia, não havia remédio convencional; alguém indicou óleo de copaíba. Segui o conselho. O efeito foi rápido, positivo, espetacular. Aprendi um pouco da sabedoria índia.
(***)
Volto, agora, 150 anos no tempo. Em meados do século 19, na Província do Amazonas, a atividade econômica quase se resumia a extrair da floresta tudo o que pudesse ser vendido rio abaixo, em Belém. Mesmo assim, a Província participou da Exposição Nacional da Indústria, que Pedro II mandou organizar no Rio de Janeiro, em dezembro de 1861.
Na mensagem do Presidente do Amazonas, Manoel Clementino Carneiro da Cunha, à Assembleia Legislativa (1862) há um anexo descrevendo os itens enviados à Corte, que incluíam muitas drogas medicinais. Fiquei fascinado, mas não surpreso. Ainda hoje, o Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, é cheio de produtos da floresta capazes de curar desde dor-de-corno até unha encravada. Acontece o mesmo em Manaus.
Transcrevo a parte do anexo (denominada “Relatório D”) à mensagem de Manoel Clementino que descreve as ervas medicinais enviadas. Por alguma razão, não há referência (neste documento, em outros, sim) ao óleo de copaíba. Desafio aos meus amigos do Pará – e se houver algum, do Amazonas – a dizer que os conhece todos.
1. MURURÉ. Líquido extraído por incisão no tronco de uma árvore deste nome. É vermelho, um pouco leitoso. Depurativo e antissifilítico poderoso, chama-se vulgarmente azougue vegetal.
2. MANACAU. Arbusto cujo tronco e folhas tem propriedades antissifilíticas. Usa-se da infusão destas partes da planta internamente. Quando o reumatismo articular tem sua principal causa na sífilis, [ele] desaparece facilmente com o uso deste medicamento.
3. MOIRAPUAMA. Raiz de um arbusto do mesmo nome. Excitante geral e afrodisíaco dos mais enérgicos. Usa-se interna e externamente e, neste último modo, tem aproveitado nas paralisias locais. Emprega-se a infusão ou a tintura.
4. TAMAQUARÉ. Óleo de uma árvore do mesmo nome. Extrai-se golpeando o tronco e colocando nos golpes algodão, que se embebe do líquido. Espremendo-se depois o algodão, passa-se o líquido para uma vasilha. É um anti-dartroso muito enérgico. [“Dartro” é um nome genérico das crostas ou das esfoliações produzidas por diversas doenças da pele.]
5. SASSAFRÁS. Óleo extraído por incisão do tronco do “laurus sassafraz”. É um excitante do sistema nervoso e emprega-se com maior proveito no tratamento das soluções de continuidade frescas [?] Nesta espécie, são mais prontos seus resultados do que os da Arnica. Aqui, só os médicos sabem que a raiz e a casca deste arbusto têm uso na Terapêutica.
6. ACAUÃ CAÁ (Guaco). Arbusto cujas folhas em infusão ou tintura se empregam com muito proveito no tratamento de reumatismo e das mordeduras de cobras de vírus [sic]. Suspeita-se que seja antissifilítico.
7. CAÁ IXIÚ. Diz-se que a infusão das folhas desta planta aproveita o tratamento da asma.
8. SUCUBA. Leite de uma árvore deste nome. É purgativo, bem como a infusão da casca da árvore. Externamente, aproveita no tratamento do reumatismo articular, emplastando com ele o lugar ou as articulações infestadas.
9. MARUPÁ MIRY. Diz-se que a raiz deste arbusto em infusão aproveita nas diarreias.
10. MARUPAI. A casca deste arbusto é um calmante poderoso. Aproveita muito nos vômitos e disenterias rebeldes. Aplica-se em infusão ou cozimento internamente. Em emplasto, a casca ralada é bom cicatrizante.
11. QUINA. Uma das espécies do gênero cinchona. Não é boa a da amostra. Seus usos são por demais conhecidos em toda a parte. Já foi grande ramo de comércio desta província. Em 1820 ainda se exportaram 41 arrobas. [“Cinchona é um gênero de aproximadamente 40 espécies da família Rubiaceae. São arbustos de folhagem persistente naturais da região tropical da América do Sul que crescem entre 5 e 15m de altura. Algumas espécies produzem o quinino” (Wikipedia). O quinino é usado ainda hoje no tratamento da malária.]
12. UCAÚBA. Leite da planta do mesmo nome. Aplica-se com proveito nas úlceras da mucosa da boca e faringe. A infusão da casca desta planta aproveita muito no tratamento das flores brancas. [Flores brancas (Leucorréia): doença venérea, corrimento vaginal].
13. LEITE DE SORVA. Leite da sorveira, planta que dá um fruto (sorva) semelhante ao mucugê da Bahia, É boa cola e os índios do Rio Negro servem-se dele na preparação de ralos para ligar a matéria às pontas de pedra. Bebe-se. Deve ser analisado.
14. ABUTUA. Raiz de cissampelos pasciva. É da melhor. Seus usos são conhecidos em toda parte. [“A espécie Cissampelos sympodialis (Menispermaceae) é utilizada na medicina popular e indígena para o tratamento de desordens inflamatórias, incluindo a asma. Liane Franco Mangueira et alii, Revista Brasileira de Ciências da Saúde, 14 (2), 2010.]
15. CAFERANA. Raiz do arbusto do mesmo nome. É excelente antiperiódico e aplica-se em infusão ou tintura. Usa-se internamente.
16. GAPUÍ. Raiz do arbusto de mesmo nome. Macera-se a raiz n’água, decanta-se, e aplica-se, em mistura com água, a goma, que se deposita. É remédio pronto para as oftalmias.
(***)

De volta ao presente. Segundo uma reportagem do Portal G1 Amazonas (“Venda de ervas da Amazônia sustenta família”, 20/8/2012) a loja de Nora Garcia, localizada por trás do Mercado Adolfo Lisboa, em Manaus, comercializa 450 tipos de erva. Cólicas de bebê, depressão, dor de estômago, alguns tipos de câncer e Acidente Vascular Cerebral são algumas dos problemas para cuja solução os clientes costumam recorrer às ervas amazônicas, diz Nora.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Me dá um dinheiro aí (Província do Amazonas, 1859)

Gustavo Maia Gomes

Em 1859, a Província do Amazonas possuía três Comarcas, três Termos, oito Municípios e 19 Distritos. “Comarca” e “Termo” eram subdivisões judiciárias; “Província”, “Município” e “Distrito” tinham mais a ver com a ordenação política. Também havia as divisões eclesiásticas (Diocese, Freguesia, Arraial), que não deixavam de ser políticas, pois Estado e Igreja viviam em simbiose.

De 1822 a 1889, o Brasil teve um sistema político centralizado, com grande protagonismo do Imperador, que nomeava e destituía os presidentes de província. A centralização se rebatia para o âmbito local. Em 1859, por exemplo, as finanças dos municípios dependiam fortemente da esfera provincial. Já a sua administração era responsabilidade imediata das Câmaras Municipais.
Em 1859, dos oito municípios amazonenses (Capital, Serpa, Silves, Borba, Barcelos, Teffé, Maués e Vila Bela), quatro escreveram ao presidente Francisco José Furtado (1818-70) pedindo “providências”. (Relatório do Presidente da Província do Amazonas à Assembleia Legislativa Provincial). Que providências?
– Ora, dinheiro.
“Em ofício de 11 de março, [a Câmara Municipal da Capital] pede a consignação, do cofre provincial, de dois contos de réis para fazer face às suas despesas, visto como decairão suas rendas logo que se instalar a Câmara de Borba”. A Câmara de Serpa tinha pedido, em 16 de janeiro, “o aumento de vencimentos para seus empregados”. A de Vila Bela da Imperatriz oficiaria, em 22 de março, "pedindo aumento de verba (...) para acabar o cemitério, cuja obra está paralisada por falta de meios”.
Somente um dos municípios fez outra coisa que não fosse estender a mão ao Presidente Furtado: “Por ofício de 12 de fevereiro, [Maués] pede providências para reprimir-se o abuso dos comerciantes de Cuiabá, que vêm do rio Maués e outros lugares daquele município comprar gêneros que conduzem sem pagar os direitos a que são sujeitos.”
Ou seja, a Câmara Municipal de Maués também queria dinheiro. Mas, pelo menos, acenava com a possibilidade de arrecadá-lo localmente, se apenas a Província lhe enviasse alguns soldados.

(Publicado no Facebook, 18/9/2015)

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Washington Luís (1928) e o Brasil de Dilma (2015)

Gustavo Maia Gomes

Na Mensagem ao Congresso Nacional de 1928, o então Presidente Washington Luís Pereira de Sousa (1869-1957) escreveu:
“Rumores correm de novos movimentos sediciosos. Simples atoardas. Não há, não pode haver revoluções ou revoltas no país. Não existem para isso nem ambiente nem elementos. O povo está satisfeito. Podemos considerar encerrado o período de motins e rebeldias.”
Continuava o Presidente: “Reina a ordem constitucional, garantindo todas as liberdades. A [economia] retorna à prosperidade [e aos] orçamentos equilibrados. A ordem político-administrativa inspira confiança. A ordem judiciária impõe respeito. O Brasil caminha para seus destinos.”
Dois anos e meio depois, um movimento sedicioso derrubou Washington Luís. Houve revoluções e revoltas em profusão. O povo não estava satisfeito, tanto que apoiou a revolução de Getúlio Vargas. Longe de encerrado, o período de motins e rebeldias teria novos episódios importantes em 1930, 1932 e 1935.
A ordem constitucional deixou de reinar de 1930 a 1945 (com um hiato em 1934-37). A ordem econômica desandou na maior crise de toda a República. Os orçamentos equilibrados desapareceriam por longos anos. Na ordem político-administrativa, brasileiro nenhum teria confiança, até que aquele Presidente fosse expulso. A ordem judiciária, ao invés de impor respeito, foi desrespeitada.
Ou seja, tudo o que Washington Luís previu ou asseverou, a realidade desmentiu. Com uma exceção, talvez.
“O Brasil caminha para seus destinos”, disse ele.
Se desemprego, inflação, discursos presidenciais desconexos, dólares na cueca, mensalões, petrolões, zé dirceus, lulas e lulinhas fossem os “destinos” para os quais o Brasil caminhava, não é que o homem estava certo?

(Publicado no Facebook, 16/9/15)

Cortando gastos na Província do Amazonas (1858)

Gustavo Maia Gomes

Em agosto de 1858, Manoel de Almeida Coutinho de Abreu encaminhou ao Presidente do Amazonas, Francisco José Furtado (1818-70), o “Relatório da Administração da Fazenda Provincial”. Nomear presidentes era atribuição privativa do Imperador que, para as províncias longínquas, sempre mandava gente absolutamente ignorante da realidade local. Para o azar das províncias, os nomeados demoravam tão pouco em seus cargos que não tinham tempo de aprender nada.
Felizmente, havia uma burocracia que começava a adquirir certa permanência. Coutinho de Abreu, por exemplo, serviu a vários presidentes e a todos pediu aumento de salários para si próprio e seus funcionários, como ele mesmo confessa no já citado Relatório. Nunca foi atendido, pela razão simples de que os orçamentos por ele preparados jamais equilibravam receitas e despesas. Não que o homem fosse um gastador. É que a Província não tinha como custear a própria existência.
“Comparando a receita com a despesa orçada [para 1859], resulta o déficit de 14 contos, 205 mil e 900 réis”, escreveu Coutinho de Abreu. E continuou: “Sendo certo que as boas finanças consistem em cada um calcular a sua despesa pela receita com que pode contar, quando não com certeza, com probabilidade, dir-se-á que este orçamento é um despropósito financeiro.” (Mal sabia ele que, 156 anos depois, o governo republicano do Brasil iria enviar ao Congresso Nacional um Orçamento com déficit de R$ 30 bilhões.)
Havia, entretanto, um porém: “A prudência e economia dos Exmos. Administradores desta Província tem sempre desviado a realização desse déficit aparente [pelo expediente de não efetuar parte das despesas previstas] e o mesmo é de esperar que continue a acontecer”. Ou seja: Manoel de Almeida Coutinho de Abreu mandava para a Assembleia Provincial as contas que não fechavam e cruzava os dedos, esperando que o Presidente do dia gastasse menos do que estava autorizado a fazer.
Era o que terminava acontecendo. Talvez, nem se tratasse de repetidas demonstrações de responsabilidade fiscal. Podia ser, apenas, falta de crédito do governo na praça.

(Publicado no Facebook em 14/9/15)

Como era bom ser criança no Amazonas

Gustavo Maia Gomes

Desmembrado do Pará em 1850, o Amazonas começou a existir como Província autônoma dois anos depois. Em 8 de março de 1852, seu primeiro presidente, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, baixou o “Regulamento da Instrução Primária”. Manaus (que perdera o nome em 1848, para recuperá-lo, apenas, em 1856) ainda se chamava “Cidade da Barra do Rio Negro”.
“A instrução primária nesta Província”, escreveu Tenreiro Aranha, “compreenderá a educação física, moral e intelectual, com o ensino de leitura, caligrafia, doutrina cristã, numeração e regras de aritmética, gramática, noções de geometria aplicada às artes, história natural, sagrada, do Brasil, e geografia; para o sexo feminino, a mesma educação e instrução e as prendas próprias deste sexo”.
“Prendas próprias do sexo feminino” eram o "uso da agulha e da tesoura, os princípios da costura e dos bordados, e a música, para as meninas que tiverem propensão". Elas também aprenderiam como fazer “redes, flores artificiais, doces de confeitarias e artefatos de palhinha”. (Mas, na escola, as meninas não aprendiam a cozinhar, provavelmente, atividade exclusiva das escravas.)
O Regulamento estipula os castigos reservados aos alunos e alunas que mostrassem “maus modos e costumes; falta de asseio em si, em seus livros e papeis; falta de obediência e de respeito ao Professor; erros nas lições e nas escritas; e rixas e mutilações”. Também havia a relação das “ações boas”, que seriam recompensadas.
Quem mostrasse "maus modos e costumes" no grau mínimo seria advertido. Os que cometessem até seis erros nas lições e nas escritas teriam os trabalhos emendados pelos colegas. Além daí, receberiam uma “palmatoada” (golpe com palmatória na palma da mão) para cada erro. Os envolvidos em rixas e mutilações apanhariam ainda mais. Até doze aplicações da palmatória.
Os professores e professoras das escolas primárias no Amazonas, em meados dos 1800, embora submetidos a concurso, seriam escolhidos pessoalmente pelo Presidente da Província, “que nomeará os mais aptos”. Mesmo sendo “vitalícios”, podiam ser demitidos, se cometessem “ofensas à moral pública e à Religião do Estado”, ou “por negligência, desídia ou embriaguez habitual e incorrigível”.
Embriaguez, a gente sabe o que é. Desídia quer dizer “disposição para evitar qualquer esforço físico ou moral; indolência, ociosidade, preguiça; falta de atenção, de zelo; desleixo, incúria, negligência”. No Amazonas, como em todo o Brasil, bêbados continuam a existir. Alguns chegam à Presidência da República. “Desídia”, em contraste, é uma palavra que ninguém mais usa. Já o hábito...
[Acompanha o retrato de João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1798-1861), primeiro presidente da Província do Amazonas (1852)]

(Publicado no Facebook em 11/9/2015)

O encontro de Groucho Marx com o Barão de Itararé

Gustavo Maia Gomes

Apparício Torelly (1895-1971), o Barão de Itararé, foi um humorista brasileiro; Groucho Marx (1890-1977), um comediante norte-americano. Além de viver na mesma época, tinham outras afinidades. Faziam graça inteligente. Não é para qualquer um.
"Entre sem bater", escreveu o Barão na entrada de seu jornal, depois de três ou quatro invasões e depredações promovidas pela polícia de Getúlio Vargas. Já Groucho, saindo de um casamento para entrar em outro, descobriu que "o matrimônio é a principal causa do divórcio".
Imaginei um diálogo entre os dois. Eles conversam um pouco, prometem se ver no dia seguinte. O Barão propõe que se encontrem numa famosa agremiação social de Nova York. Groucho recusa o convite:
-- Não frequento clubes que me aceitam como sócio.
"De onde menos se espera, é que não vem nada, mesmo", pensa Torelly, contrariado. Groucho ameniza:
-- Estes são meus princípios. Se não gosta deles, tenho outros.
O Barão aceita as desculpas e diz não se sentir muito preso a princípios.
-- Vivo cada dia como se fosse o último; um dia, acerto.
-- Poderíamos almoçar juntos, sugere Groucho. Há um bom restaurante vegetariano logo ali.
-- Você é vegetariano?, quis saber o Barão.
-- Não. Eu não sou vegetariano, mas como animais que são.
Enquanto caminham, o comediante confessa que queria muito morar no Brasil. "Mas, como fazer, se meu trabalho é aqui?", pergunta. Torelly o aconselha a continuar lutando:
-- Nunca desista do seu sonho. Se acabou numa padaria, procure em outra!
-- Pois é, responde Groucho. Eu gostaria de relaxar o dia todo em Copacabana, mas o problema de não fazer nada é você nunca saber quando acabou.
-- Eu gosto muito, diz o Barão. Na praia, as pessoas cavam buracos. Eu cavo, tu cavas, ele cava, nós cavamos, vós cavais, eles cavam. Não é bonito, nem rima, mas é profundo.
-- Inclua-me fora disso, fala Groucho. Estou-lhe achando um tanto egoísta.
-- Não é o que eu penso, retruca o Barão.
Groucho Marx trata de explicar:
-- Egoísta é toda pessoa que pensa mais nela do que em mim.
Foi a gota d'água. Cancelam o almoço. A mudança para o Brasil fica para nunca. Torelly está decepcionado. Fala baixinho, consigo mesmo:
-- O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro.

(Publicado no Facebook em 9/9/2015)

Burrice Coletiva

Gustavo Maia Gomes

Bastou o Esquisito da Fazenda acenar, em Paris, com o aumento de alíquotas do Imposto de Renda -- um imposto direto -- para uma multidão de estações repetidoras trazer de volta o velho discurso de que taxar mais as pessoas com rendas altas "é bom".
Em contraste, os impostos indiretos (sobre o consumo, por exemplo) seriam "ruins". Pelo seguinte: ricos e pobres pagam o mesmo preço por um quilo de feijão. Para o pobre, esse gasto representa uma parte maior da renda. Portanto, o imposto do feijão é "injusto", pois o pobre paga mais que o rico.
Os economistas tentam arranjar uma explicação menos óbvia para seus preconceitos mas, no fundo, (quase) todos achamos que a fonte da riqueza e dos altos rendimentos é o roubo. Portanto, aumentar o imposto sobre os altos salários (ou, melhor ainda, sobre a riqueza) ajuda a reduzir a injustiça, "é bom".
Agora, vamos sair da fantasia e ir para os fatos. Tirando o caso dos zé dirceus e gente da mesma espécie, cujos ganhos e fortuna foram, realmente, roubados, a história do mundo é completamente outra. Todos nós vivemos do que os empresários, organizando seus trabalhadores, operando seus investimentos, produzem. Podemos obrigar os "ricos" a pagar impostos mais altos, sim, porém, seria isso "justo"? E se o aumento da taxação causar uma produção menor, seria isso "bom"?
São os Ford, os Rockefeller, os Mauá que organizam a produção e fazem nascer os empregos, os bens e serviços, a riqueza que se acumula até fazer a diferença entre a Alemanha e a Somália; a Coréia do Sul e o Haiti. Enquanto acharmos que os ricos são os inimigos, estaremos, apenas, derrotando a nós mesmos.
Altos rendimentos indicam elevada contribuição à geração de bens, de serviços e de riqueza. Vamos, então, taxá-los? Vamos desestimular o sucesso, vamos criar incentivos para que as pessoas produzam menos? Além de injusto não seria, também, uma burrice?
Claro que existem as distorções, como o funcionário que faz greves anuais para continuar sugando as tetas do Estado, ou o pastor evangélico que vive de enganar o próximo. Para esses, recomendo cadeia, não impostos altos.

(Publicado no Facebook em 9/9/15)

Recordando Chico Anísio (1931-2012)

Gustavo Maia Gomes

Francisco Anísio de Oliveira Paula Filho integra o time dos grandes humoristas brasileiros, ao lado do Barão de Itararé (1895-1971), Stanislaw Ponte Preta (1923-68) e, naturalmente, Millôr Fernandes (1923-2012).
Graças à internet, uma parte expressiva da obra de Chico Anísio está, hoje, ao alcance de um clique. Mas, não tenho pretensões de resenhar a sua produção Quero, sim, registrar algumas lembranças pessoais relacionadas a histórias contadas por ele.
O Professor Beira Baixa vivia criando soluções complicadas para problemas simples e, quando o interlocutor aparentava espanto, ele esclarecia: "quem inventa é inventor; eu invento; logo, sou inventor". Meu pai gostava e, com frequência, repetia a mesma frase em nossa casa.
Joca, outro personagem, era um sujeito tão tímido que, quando alguém o surpreendia (ele estava sempre se escondendo das pessoas) e perguntava: "Quem é você?", invariavelmente, ouvia a resposta: "Não é ninguém, não; é o Joca".
Mas a melhor história de Chico Anísio, dentre aquelas que se mesclam às minhas lembranças de vida, é uma de Esquerdinha. Acho até que já a contei aqui. Peço desculpas, se for o caso. Mesmo assim, vale repeti-la. Não é uma piada, mas uma aula de economia, contada em um tempo -- anos 1960 -- no qual pouquíssimos de nós, estudantes, professores, economistas, jornalistas podiam perceber sua lição essencial.
Criado nos primeiros anos da ditadura militar (talvez, até, antes disso), Esquerdinha era um típico agente do Partido Comunista, naturalmente, disfarçado. A quem abordasse, tentava convencer de que bom mesmo era "lá". Essa última palavra, ele a pronunciava com especial entonação. E completava: "Vai lá que você vai gostar".
A maquiagem fazia a cabeleireira de Esquerdinha nascer dois centímetros acima das sobrancelhas, mas seu bordão era: "Confie em mim, que sou um homem de testa larga". Numa dessas conversas de rua, sempre olhando para os lados, para ver se a Polícia estava perto, Esquerdinha encontra um amigo recém-saído de uma loja de sapatos carregando uma caixa.
-- O que é isso? pergunta Esquerdinha.
-- Sapatos, reponde o outro.
-- Como fez para consegui-los?
-- Ora, entrei na loja e os comprei. Por que?
-- Porque "lá" não é assim, não.
-- E como é?
-- Primeiro, você entra num lugar que tem escrito em cima "sapatos".
-- Mas aqui também é assim.
-- "Lá" é diferente. Depois da porta com o nome "sapatos", há um grande corredor, cheio de sinais: "siga em frente", "dobre à direita em 100 m" e outros. Quando chega o final, a gente dobra à direita. Tem mais placas: "atenção: sapatos, à esquerda, em 80 m". Dobramos à esquerda. Entramos em outro corredor, andamos uns 50 m. Há uma porta. Abrimos a porta e estamos, de novo, na rua.
-- Mas, e os sapatos?, pergunta o amigo de Esquerdinha, confuso.
-- Sapatos, não tem. Mas é uma organização!
Com 30 anos de antecedência, Chico Anísio (ou quem tenha escrito isso para ele) antecipou as razões para a inevitável falência do socialismo. Contei essa história muitas vezes aos meus alunos, a maioria, naturalmente, "esquerdinhas" convictos. Alguns entenderam, outros, não. Esses, devem estar trabalhando para o PT, hoje em dia.

(Publicado no Facebook, 7/9/2015)

Ainda sobre Limoeiro (PE)

Gustavo Maia Gomes
Limoeiro, no Agreste de Pernambuco (que Lourdes Barbosa, seu sobrinho Antônio, e eu visitamos nos dias 29 e 30/8), já viveu dias mais prósperos. Na cidade, é possível identificar construções significativas datadas do início do século 20. Além disso, as estatísticas mostram que a economia limoeirense cresceu em importância regional entre os anos 1920 e 1959. Infelizmente, a tendência foi revertida e o panorama atual não é bom.
Duas atividades econômicas moviam Limoeiro, até os anos 1960: o algodão e a pecuária. As hoje abandonadas instalações da Irodusa (descaroçadora de algodão, fundada em ano próximo a 1940) indicam que a primeira delas atingiu dimensão bastante grande. O trem, que funcionou por um século e cuja primeira viagem aconteceu em 1882, tinha no transporte do ouro branco sua principal razão de ser.
Ocorre que o algodão nordestino entrou em crise já nos anos 1960, devido à concorrência de São Paulo (intensificada com a abertura
das rodovias ligando o Sudeste ao Nordeste) e foi ao colapso, vinte anos mais tarde, devido à praga do bicudo. Limoeiro, como não podia deixar de ser, sentiu o golpe. A pecuária, atividade em que a família Heráclio do Rego se destacou, desde os anos 1940, ainda existe, mas não pode, sozinha, sustentar um desempenho econômico satisfatório do município.
De modo que Limoeiro, vive, hoje, do governo, de programas como o Bolsa Família, do comércio remanescente, e de umas poucas indústrias modernas. Não dá sinais claros de ter-se beneficiado à larga dos anos de populismo petista que, em tantas outras cidades do Semiárido nordestino, gerou uma feliz, porém insustentável, prosperidade.
Um indicador sutil do declínio pode ser a indiferença da população com respeito à própria história. Relatei em outra postagem neste mesmo lugar ("Meu limão, meu limoeiro", 1/9) como ninguém sabia, nas ruas de Limoeiro, quem tinha sido o coronel Chico Heráclio. "Ninguém" não é a palavra correta: um doidinho sabia.

(Publicado no Facebook, 2/9/2015)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Chico Heráclio de Limoeiro (PE)

Gustavo Maia Gomes

Francisco Heráclio do Rego (1885-1974) foi um dos mais importantes "coronéis" pernambucanos, mandando e desmandando na sua cidade (Limoeiro, 80 km do Recife, região Agreste), especialmente, entre os anos 1945 e 1954. Aliado de Agamenon Magalhães (1893-1954), que por duas vezes governou Pernambuco, o coronel também teve influência na política estadual e, numa escala muito menor, nacional.
Chico Heráclio no terraço lateral de sua casa. As grades foram mudadas, mas o piso é o mesmo e a coluna (com maior razão) ainda é a que está lá. A foto foi colhida na reportagem que O Cruzeiro (1/1/75) publicou em registro da morte do coronel.
Chico Heráclio era uma celebridade, a ponto de merecer, quando de sua morte, reportagem de cinco páginas na revista O Cruzeiro (1/1/1975), o equivalente, hoje, a ter cinco minutos no Jornal Nacional da Globo. A matéria, que pode ser acessada via hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional, tem um tom predominantemente favorável ao coronel.
Dois de seus filhos (Francisquinho e Heráclio) foram deputados, o primeiro, estadual; o segundo, federal, em várias legislaturas. Os prefeitos de Limoeiro eram sempre os que Chico Heráclio queria que fossem e ele dizia: "melhor do que ser prefeito é mandar no prefeito". Como ocorria com os outros chefes políticos municipais, o pacto implícito era que o governador garantia ampla autonomia ao coronel em seu reduto; em troca, esse assegurava os votos para o governador eleger seus candidatos.
São famosas algumas de suas histórias. Naquela época, o voto era dado por meio de uma cédula com o nome do candidato que o eleitor depositava na urna. (A cédula única, com os nomes de todos os candidatos, veio depois. Já foi um avanço.) Chico Heráclio preparava os envelopes com as cédulas de quem ele queria eleger, lacrava-os em um envelope, e os distribuía aos seus eleitores "de cabresto".
Geralmente, os votantes eram buscados em suas casas pelos empregados do coronel e levados à seção onde deveriam votar. Eles cumpriam o ritual esperado e, em seguida, recebiam farta comida e bebida. Talvez, algum dinheiro, também. Só que, um dia, um deles perguntou ao coronel se poderia saber, ao menos, em quem ele (o perguntador) havia votado. Chico Heráclio teria respondido na bucha. -- Você não sabe que o voto é secreto, cabra?
Conheci Francisquinho, o filho, entre 1968 e 1970, quando ele era deputado estadual e eu um jovem repórter encarregado de cobrir, para o Jornal do Commercio (Recife), o dia a dia da Assembleia Legislativa. A impressão que guardo é que, se Francisquinho não fosse filho de Chico Heráclio, dificilmente teria subido na vida. Era ou parecia ser, intelectualmente limitado. Heráclio do Rego tinha um pouco mais de massa cinzenta, mas posso estar enganado.
A casa de Chico Heráclio em Limoeiro (PE). Pelo estilo, deve ter sido construída na década de 1950, mas não me foi possível comprovar essa hipótese. Mesmo para os padrões da época e do local, está longe de ser um palacete, a despeito de todo o poder e (relativa) fortuna do coronel. (Foto Gustavo Maia Gomes, 30/8/15)
O terraço lateral da casa de Chico Heráclio em Limoeiro. (Note que o piso é o mesmo que aparece na foto publicada em O Cruzeiro, edição 1/1/75). As poltronas, segundo me garantiu o atual morador da casa, Clóvis Coutinho Pereira, ainda são as do tempo em que o coronel era vivo. (Foto Gustavo Maia Gomes, 30/8/15)

Lourdes Barbosa, Antônio e o retrato de Chico Heráclio na sala de jantar de sua casa. Pelo que pude apurar, os grandes almoços com finalidades políticas eram promovidos pelo coronel em sua fazenda Varjadas. A sala mostrada na foto é, realmente, pequena. Os móveis são os mesmos que serviram ao coronel e à sua família. (Foto Gustavo Maia Gomes, 30/8/15)
Um dos automóveis de Chico Heráclio. Ele era, de uma forma geral, avesso aos progressos do mundo moderno. Consta que não possuía geladeira, rádio, ou "vitrola" (aparelho de som). Mas gostava de carros luxuosos. Este é o único que sobreviveu (por quanto tempo?), deixado na sua garagem. É um Chrysler modelo muito parecido ao lançado em 1954. Se não é desse ano, é de um ano próximo. Está sendo destruído pelo tempo, segundo Clóvis Coutinho Pereira, porque os herdeiros não conseguem se entender sobre o que fazer com o espólio do coronel. (Foto Gustavo Maia Gomes, 30/8/15)
Estivemos (Lourdes Barbosa, minha mulher; Antônio, seu sobrinho e eu) em Limoeiro, neste fim de semana. Visitamos a casa onde morou Chico Heráclio. Lá residem, hoje, a viúva de um neto do coronel e o irmão dela, o advogado Clóvis Coutinho Pereira. Ele teve a gentileza de nos permitir a visita ao interior da sua residência, que conserva a mesma estrutura e muitos dos objetos usados pelo coronel e sua família.

(Publicado no Facebook, 31/8/2015)