quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A gripe espanhola em Manaus (1918-19)

Gustavo Maia Gomes

De agosto de 1918 a junho de 1919, o mundo foi assolado pela gripe espanhola, em cujo rastro entre 20 e 40 milhões de pessoas morreram, duas a quatro vezes mais que na primeira guerra mundial. Ao Brasil, a epidemia veio de navio, aportando, primeiro, no Recife, em setembro. O Norte foi atingido um mês depois. Fortemente: em Belém, o número de casos fatais alcançou 575; em Manaus, 858 pessoas foram mortas pela doença. Uma tragédia de vastas proporções.

O Instituto Benjamin Constant foi um das últimos lugares atingidos pela gripe espanhola. Caíram doentes 143 alunas e sete irmãs religiosas, mas não houve vítimas fatais.

Era governador do Amazonas o médico Pedro de Alcântara Bacellar. Ele deixou à posteridade impactante relatório sobre os estragos causados pela doença. Eis um resumo do documento.

A 22 de outubro (de 1918), passou por Manaus o navio S. Salvador, vindo do Pará, do qual desembarcaram pessoas gripadas. Ainda de Belém, entrou, a 24, o Valparaíso, com 17 enfermos. Dada a existência de casos ambulatoriais, foram suspensos os ensaios no Teatro Amazonas e, nos dias seguintes, as diversões em outros lugares, tornando-se cada dia mais aflitiva nossa situação. Foram, então, prestados os primeiros socorros à população, em grande parte, desprovida de recursos e, na sua generalidade, tomada de pânico pela propagação assombrosa da doença.

Como uma rajada, a investida do mal varria a cidade. Deixou de ser feita a comemoração aos mortos; adiaram-se os cultos religiosos; à Santa Casa não foi mais possível admitir gripados. Instalaram-se postos sanitários da Cachoeirinha, Vila Municipal, São Raimundo e Vila Barroso. O número de doentes ia avultando diariamente. A 7 de novembro, o desenvolvimento da epidemia já era assustador. Desorganizaram-se os serviços; por toda parte, a desolação, o pavor e o luto.

A 13 de novembro, a Associação Comercial fez um apelo a todas as classes para o auxílio à população. Organizou-se um comitê que instalou postos na capital. Fecharam-se as casas comerciais, os veículos deixaram de circular, e houve dificuldade no transporte de cadáveres, sendo preciso que o governo contratasse caminhões para esse trabalho e providenciasse os enterramentos. Mas, os obreiros da cruzada iam caindo também, atacados do mal. A classe médica, abnegada e heroica, socorria os atingidos pelo flagelo, mesmo desfalcada de elementos que a epidemia prostrara.

Naquele mesmo mês, a gripe atingiria sua maior intensidade. Doloroso momento; doloroso e indescritível. O Estado forneceu, além das receitas aviadas nas farmácias da capital à população pobre, a distribuição domiciliar de dietas e medicamentos. Expandia-se, por esta forma, o trabalho já iniciado pela Diretoria do Serviço Sanitário. Além disso, as medidas de socorro foram estendidas ao Interior. Para todos os municípios foram remetidas ambulâncias, sendo postos auxílios monetários à disposição das intendências, para distribuição de dietas e medicamentos.

O estoque de medicamentos esgotou-se, nesse tempo, sendo, então, publicadas pelo governo informações sobre o aproveitamento de plantas de nossa flora no tratamento da influenza. Boletins contendo medidas preliminares para a cura da doença foram distribuídos pelo interior. Quase todo o funcionalismo público sofreu o ataque da pandemia.

Em 6 de dezembro, chegávamos à quinta semana angustiosa e de incomparáveis provações. Cessara, entretanto, desde o dia 3, o ruído terrificante e sinistro dos caminhões se dirigindo para o cemitério. A epidemia declinava, diminuía o terror. Em 31 de dezembro, a epidemia foi considerada extinta na cidade.

O trânsito direto de navios de Belém ao território do Acre, sem obediência às prescrições exigidas, veio, porém, mudar a face das nossas condições sanitárias. Assim, o hospital flutuante Santa Bárbara, que havia sido fechado em 10 de janeiro, teve de ser reaberto em 11 de fevereiro, em virtude da chegada de gripados procedentes do Acre. Em 15 de março, entretanto, o número de doentes nos hospitais flutuantes havia se reduzido sensivelmente. A 5 de abril, os serviços do último desses hospitais de emergência, funcionando no vapor Marapatá, deixaram de ser necessários.

Devido, ainda, à chegada de enfermos do interior do Estado e do território do Acre, reapareceram, depois, nesta capital, alguns casos e a 8 de março irrompeu a moléstia no Instituto Benjamin Constant, que permanecera imune até então. Foram atacadas 143 educandas e sete irmãs religiosas, não se verificando óbito algum. Em maio e junho, houve casos no interior e em Manaus, mas, neste momento (julho de 1919) parece extinta a gripe pandêmica, em todo o território do Estado, após o ciclo devastador de sua apavorante duração.

(Fonte: Mensagem lida perante a Assembleia Legislativa na abertura da primeira sessão ordinária da décima legislatura, pelo Exmo, Sr. Dr. Pedro de Alcântara Bacellar, governador do Estado, a 10 de julho de 1919. Disponível na internet em Center for Research Libraries / Brazilian Government Documents)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

"Esse governo vai cair. Sua inépcia supera a imaginação"

Gustavo Maia Gomes

(Entrevista com Zamuk Amin sobre o momento político brasileiro)


Há cientistas políticos que não são uma coisa nem outra. Não é o caso de Zamuk Amin. Nascido no Ondéquistão, ele tem ideias claras sobre o Brasil, país que jamais visitou e cuja existência, até recentemente, desconhecia. Entrevistei-o após as manifestações a favor do-impeachment desse domingo (13/12/15). A seguir, um resumo da conversa.

E o povo não foi às ruas na quantidade esperada. Por quê?
Mesmo que abaixo da expectativa, a quantidade de pessoas nas ruas, ontem, deve ter sido duzentas vezes maior do que em qualquer das manifestações de apoio a Dilma. É algo significativo. Mas, o baixo comparecimento, admitamos isso, ainda mais numa hora em que o processo de impeachment vê-se ameaçado de extinção por manobras políticas e processuais, demonstra que a maioria das pessoas não está, realmente, muito interessada no assunto. Protestar contra a corrupção escrevendo em redes sociais é uma coisa; tomar um ônibus num domingo e aguentar o calor, em vez de permanecer em casa bebendo cerveja, é outra.

O descrédito da classe política pode também ser responsável pelo ainda baixo interesse popular no impeachment de Dilma?
Certamente, é um fator. Há tanta lama que as pessoas não acreditam mais nas instituições políticas, administrativas, e da Justiça, nas quais incluo o governo, estritamente falando, o Congresso, e os tribunais. Isso é muito perigoso. Uma crise política, com suas repercussões destrutivas sobre a economia, como a que vocês estão vivendo, só comporta duas soluções: a democrática, conduzida pelas instituições políticas dentro da normalidade constitucional e a violenta, imposta, geralmente, pelas forças armadas. Já estudei um número suficiente de ditaduras militares, inclusive a brasileira de 1964 a 1985, para não recomendar essa segunda alternativa a ninguém.

Mas, Collor caiu porque as ruas assim exigiram. Então, havia interesse popular na queda do presidente, em 1992, e não há, hoje?
Não concordo com nenhuma das duas assertivas. Embora as ruas tenham tido um peso importante no final, Collor não começou a cair porque os meninos pintaram o rosto. Os meninos pintaram a cara porque ao presidente faltaram respaldo ideológico e um aparato partidário e institucional que ele pudesse acionar. Antes de perder nas ruas; ele perdeu as ruas, por carecer dessas duas vacinas contra a condenação pública e política.

E quanto ao desinteresse relativo das pessoas no impeachment de Dilma?
Eu não acho que o desejo das pessoas derrubar Collor tenha sido maior do que o existente hoje contra Dilma. Antes de o processo dele entrar na reta final, o entusiasmo devia ser tão ou mais baixo do que é hoje. Quem disse que as manifestações ocorridas durante o impeachment do presidente alagoano foram maiores que as de ontem? Que a quarta onda de protestos contra ele superou a primeira? Que os jovens de 1992 pintaram a cara em tantas cidades quanto as que já se mobilizaram contra Dilma? O comprometimento das pessoas com o impeachment de Collor pareceu enorme – e, no final, realmente, foi – simplesmente, por não ter aparecido ninguém e nenhuma instituição de peso para defendê-lo.

O senhor falou que Collor carecia de respaldo ideológico e de um aparato partidário e institucional a seu favor. Poderia detalhar isso?
Fernando Collor trouxe um discurso novo e adequado ao tempo. Refiro-me às ideias de maior abertura da economia, mais competição, redução do Estado. Pode ter sido apenas oportunismo (provavelmente, foi), mas, se a intelectualidade brasileira tivesse se convencido de que aquela era a ideologia adequada ao país, e não o esquerdismo anacrônico e o coitadismo que ela ainda hoje defende, o presidente não teria sido derrubado com tanta facilidade. A UNE e a OAB, por exemplo, teriam se posicionado a seu favor, não contra. Os professores universitários, idem. Teriam dito, como dizem hoje, que impeachment é golpe. Nessas condições, dificilmente haveria grandes movimentos de rua contra o presidente (poderia haver, sim, a favor!) e os deputados pensariam duas vezes, antes de prosseguir com o pedido de impeachment.

E quanto ao aparato partidário e institucional?
O PT, apesar de ter perdido a eleição, já era um partido consolidado e com forte base social. Controlava os sindicatos, tinha as simpatias da Igreja Católica, dos estudantes, de movimentos sociais, de muitos jornalistas, e de quase todos os intelectuais que faziam a opinião pública brasileira. Quando surgiu a oportunidade de uma revanche, após a derrota de 1989, esse povo todo se mobilizou, no Congresso e fora dele, para criar um ambiente favorável ao impeachment. E o que Collor tinha em seu arsenal para combater aquela gente ressentida e organizada? Nada.

O fato é que o povo saiu às ruas e o movimento empolgou muita gente.
No final, sim. No começo, duvido que as adesões tenham sido espontâneas. Não tenho informações concretas, mas desconfio que as manifestações de rua da época foram infladas por multidões trazidas do interior em ônibus fretados. Já observei muitos processos semelhantes e posso afirmar com tranquilidade: na maioria dos casos, se há uma multidão na praça, existirá, também, uma fila de ônibus estacionados em ruas próximas. Os ônibus são fretados pelos partidos, sindicatos, movimentos sociais. É assim que se produzem as multidões gritando slogans a favor ou contra, não apenas no Brasil. É, também, o que está faltando aos que defendem o impeachment de Dilma Rousseff. Acho notável que, apesar disso, ainda se consiga juntar tanta gente nas ruas.

Já sabemos que as manifestações a favor de Dilma são regadas a mortadela.
E pelo fornecimento de transporte e a vinculação da presença ao recebimento de benefícios como a inscrição em programas governamentais. Sindicatos e organizações “sociais” tipo MST são braços do governo. Os partidos ideológicos como o PT, PSTU, PSOL, PCdoB, idem, mesmo quando tentam negar. Algumas entidades, a exemplo da OAB e a UNE, igualmente. Como diria Fernandinho Beira-Mar, “está tudo dominado”. Apesar disso, esse governo vai cair.

Por quê?
Sua inépcia supera a imaginação e a maioria das pessoas não suportará indefinidamente ver a inflação pipocar, seus empregos sumirem e o país ser destruído. Para piorar as coisas, a inacreditável sucessão de roubalheiras envolvendo o PT tem efeitos desmoralizadores. Assim, fica difícil aos defensores do governo mobilizar uma reação efetiva contra os que pretendem derrubá-lo. A cada dia, um novo petista vai preso ou é denunciado: dois ex-presidentes do partido, dois ex-tesoureiros, deputados, o líder do governo no Senado, o amigo de Lula, seus filhos e uma nora, a namorada do ex-presidente... Nada disso ajuda o governo, ao contrário, imobiliza-o numa posição delicadíssima, o que contribui para o cada-dia-pior que se tornou a rotina do noticiário econômico.

E então?
Nessas condições, se Dilma escapar do atual pedido de impeachment, cairá mais adiante. Por renúncia, por um segundo pedido de impeachment, até mesmo por um golpe civil ou militar. Nessa última hipótese, um belo dia, ela chegará ao seu escritório em Palácio subindo as escadas (pois os ascensoristas se recusarão a transportá-la) apenas para receber voz de prisão de alguém sentado na cadeira presidencial, enquanto o povo, reunido na Praça dos Três Poderes, a vaiará intensamente ao vê-la escoltada pelo “japonês bonzinho” da Polícia Federal.

Que cenário, dentre os que apontou acima (impeachment agora, impeachment mais adiante, renúncia, e golpe civil ou militar) o senhor considera mais provável?
O primeiro, a menos que o Supremo dê um cheque mate no processo. Pode demorar um pouco, pois esse governo, pelas razões que expus, é duro na queda, mas o atual caminho que leva ao impeachment já me parece irreversível. É a segunda saída menos dolorosa da situação caótica a que o Brasil foi levado pelos governos petistas – não apenas o de Dilma, mas também o de seu mentor Lula. A primeira, naturalmente, seria a renúncia, que me parece improvável. A não ser que a presidente consiga colocar a pasta de dentes de volta ao dentifrício, como ela pediu que Obama fizesse, alguns meses atrás. Não vai acontecer. A renúncia seria um gesto de grandeza e Dilma Rousseff é desprovida de qualquer traço de grandeza. De inteligência, então, nem falo.