quarta-feira, 28 de junho de 2017

Roteiro de perguntas: Postagem dirigida aos familiares

ROTEIRO DE PERGUNTAS

(Coleta de informações para a redação do livro de Gustavo Maia Gomes Uma Noite em Anhumas: Das usinas de açúcar ao predomínio urbano no Nordeste Oriental em histórias familiares, 1890-2012)

As informações fornecidas serão utilizadas de forma genérica (ou seja, sem as ligar ao informante), a menos que você autorize expressamente a sua divulgação personalizada, com citação da fonte. Por favor, se posicione ao final do questionário.

1.       Nome


2.       Data e local de nascimento


3.       Estado civil: (Casado, solteiro, viúvo, união estável, divorciado)
(Especificar se é primeiro, segundo, terceiro casamento, etc)


4.       Idade quando do primeiro casamento


5.       Cidades (ou município do interior) de residência ao longo da vida, com datas aproximadas


6.       Razões das mudanças de endereços residenciais


7.       Atividades principais desenvolvidas em cada época na cidade ou no campo


8.       Avós, com anos de nascimento e morte, residência principal e atividades desempenhadas

Avô paterno:
Ano de nascimento:
Ano de morte (se for o caso):
Morou a maior parte da vida em:
Tendo como atividade principal:

Avó paterna (Nome de solteira e nome de casada):
Ano de nascimento:
Ano de morte (se for o caso):
Morou a maior parte da vida em:
Tendo como atividade principal:

Avô materno:
Ano de nascimento:
Ano de morte (se for o caso):
Morou a maior parte da vida em:
Tendo como atividade principal:

Avó materna (Nome de solteira e nome de casada):  
Ano de nascimento:
Ano de morte (se for o caso):
Morou a maior parte da vida em:
Tendo como atividade principal:


9.       Pai e mãe, com anos de nascimento e morte, residência principal e atividades desempenhadas

Pai:
Ano de nascimento:
Ano de morte (se for o caso):
Morou a maior parte da vida em:
Tendo como atividade principal:

Mãe (Nome de solteira e nome de casada):
Ano de nascimento:
Ano de morte (se for o caso):
Morou a maior parte da vida em:
Tendo como atividade principal:


10.   Irmãos, com anos de nascimento, residência principal e atividades desempenhadas

Irmã ou irmão Número 1 (ordem de nascimento):
Ano de nascimento:
Mora em:
Tendo como atividade principal:
Observações complementares:

Irmã ou irmão Número 2 (ordem de nascimento):
Ano de nascimento:
Mora em:
Tendo como atividade principal:
Observações complementares:

Irmã ou irmão Número 3 (ordem de nascimento):
Ano de nascimento:
Mora em:
Tendo como atividade principal:
Observações complementares:

Irmã ou irmão Número 4 (ordem de nascimento):
Ano de nascimento:
Mora em:
Tendo como atividade principal:
Observações complementares:

(Continuar a lista se for o caso)


11.   Filhos, com anos de nascimento, residência principal e atividades desempenhadas

Filho Número 1 (ordem de nascimento):
Ano de nascimento:
Mora em:
Tendo como atividade principal:
Observações complementares:

Filho Número 2 (ordem de nascimento):
Ano de nascimento:
Mora em:
Tendo como atividade principal:
Observações complementares:

Filho Número 3 (ordem de nascimento):
Ano de nascimento:
Mora em:
Tendo como atividade principal:
Observações complementares:

Filho Número 4 (ordem de nascimento):
Ano de nascimento:
Mora em:
Tendo como atividade principal:
Observações complementares:

(Continuar a lista se for o caso)


12.   Como avalia a própria situação econômica durante a fase mais produtiva de sua vida?

Melhor que a de meus pais ( )
Igual à de meus pais ( )
Pior que a de meus pais ( )


13.   Que significação os seguintes nomes têm para você? (Opções: Muita, Pouca, Nenhuma. Pode acrescentar comentários)

Facebook
Açúcar
Getúlio Vargas
Frank Sinatra
Machado de Assis
Engenho de açúcar
Roberto Carlos (cantor)
Graciliano Ramos
Brigitte Bardot
Usina de açúcar
The Beatles
Pelé
Instagram
Jânio Quadros


14.   OPCIONAL. Conte (com poucas palavras, se preferir) a história de sua vida: Infância, estudos, namoros, formatura, casamento, viagens, mudanças de residência, hábitos, hobbies, relações com pais e com filhos, atuação política, atuação artística, etc.


15.   Conte (pode ser em poucas palavras) uma ou várias histórias familiares que conhecer e julga interessantes


Muito obrigado.

Por favor, selecione de forma clara uma das opções abaixo:

(a) NÃO AUTORIZO A DIVULGAÇÃO DAS INFORMAÇÕES QUE PRESTEI COM A IDENTIFICAÇÃO DA FONTE, OU SEJA, A MENÇÃO EXPLÍCITA AO MEU NOME.

(b) AUTORIZO A DIVULGAÇÃO DAS INFORMAÇÕES QUE PRESTEI COM A IDENTIFICAÇÃO DA FONTE, OU SEJA, A MENÇÃO EXPLÍCITA AO MEU NOME.


Quarta-feira de Cinzas

Hoje, sábado, é quarta-feira. (Os ministros traidores do TSE sabem por que.) Com uma diferença: ressaca cívica não se extingue com leite gelado. Eterniza-se no desânimo, na desesperança, na certeza de que (como já escreveu aqui meu irmão Ivan) somos um país de merda.
Claudio Dantas, de O Antagonista, disse tudo: o verdadeiro alvo dessa ópera bufa foi a Lava Jato. Agora, quando as sacanagens deles todos (políticos corruptos, empresários ladrões e o lado podre do Judiciário) são trazidas à luz, os criminosos se unem, mesmo os de quadrilhas rivais. E decretam que já basta.
Lembram daquela gravação de Romero Jucá dizendo: "é preciso estancar a sangria?" Pois é isso. Estão estancando a sangria. Daqui para frente, se houver algum sangue, será somente o nosso. Especulo sobre o que está para acontecer:
(1) Lula será condenado oito vezes na primeira instância (se não assassinarem os juízes antes disso) e absolvido dezesseis vezes na última. Comprará os votos necessários e se reelegerá presidente. Com o atestado de boa conduta expedido pela Justiça, estará seguro para roubar 32 vezes mais do que jamais imaginou em seus melhores sonhos.
(2) Temer terminará seu mandato em 2019 cercado de malas, cuja entrega nunca mais será filmada. Torrará os últimos centavos da República para comprar a rejeição do impeachment e do processo no STF. Sua única reforma será a construção de um puxadinho no apartamento do filho.
(3) Aécio continuará pedindo dinheiro a empresários para pagar os advogados. Agora que Sarney liberou a vaga, o candidato derrotado a presidente (imagina quantas presidências de estatais ele teria podido vender, se houvesse ganho!) será senador pelo Amapá, onde a relação reais por voto é a mais baixa do Brasil.
(4) Presos nos Estados Unidos, os irmãos Wesley e Joesley comprarão no Brasil um pedido de extradição. (Rocha Loures, inocentado de todas as acusações, cuidará de fazer os pagamentos.) Mal desembarcados de volta à pátria amada, os Batista receberão dez bilhões de reais do BNDES, não por empréstimo, mas como indenização por danos morais.
(5) Sérgio Cabral será inocentado e solto e terá seus direitos políticos restabelecidos, após o Supremo Tribunal Federal decidir que ele tinha direito a tratamento isonômico com Lula, Temer, Aécio... Será recepcionado na porta de Bangu por Eduardo Cunha, reeleito Presidente da Câmara de Deputados. Adriana Ancelmo fará, por uma noite, a ansiada exposição pública das joias do casal.
(6) O futuro governo (ou, quem sabe, o que já está aí) triplicará o imposto sindical obrigatório, cuja revogação tinha sido ameaçada por Temer, a fim de criar alguma moeda de troca nas negociações escusas com a CUT, Força Sindical, etc.
(7) Gilmar Mendes inaugurará a própria estátua de herói, a ser colocada em frente à sede do STF, substituindo aquela coisa esquisita que puseram ali: uma senhora portando uma balança (kkk) e com as vistas tapadas (rsrsrs).
(8) Ignorado pelo mundo, como sempre foi, este comentarista morrerá de vergonha, principalmente, se não conseguir para ele mesmo uma boquinha bem boa na nova-velha ordem codificada em leis feitas por deputados ladrões, executadas por presidentes corruptos e ignoradas pelos tribunais movidos a vendas de sentenças.
A frase não é minha, mas a repito aqui, por oportuna: "ou restaure-se a moralidade, ou nos locupletemos todos".

(Publicado no Facebook, 10/6/2017)

Pontos de vista e vírgulas a perder de vista

Meus amigos virtuais e reais que foram irrestritamente contra o descalabro dos governos petistas (e, sobretudo, nos estertores destes, a favor do impeachment da mulher sapiens) agora se dividem em relação ao salvamento de Michel Temer pelo Tribunal das Sentenças Encomendadas.
Diante disso, acho que pode interessar a alguns deles uma exposição mais detalhada de como vejo esse acontecimento recente da nossa esquisitíssima política. Não que me ache capaz de mudar pontos de vista, certamente, sólidos. Apenas aspiro ser mais bem entendido pelos poucos que se disponham a ler o que segue.
Começo fazendo uma preliminar. Minha opinião profissional como economista é que, no presente momento, as consequências de uma renúncia ou afastamento do Sr. Temer para a estabilidade e/ou lenta retomada do crescimento econômico brasileiro seriam, exatamente, NENHUMA.
O "fiador da estabilidade", na atual conjuntura, não é o presidente, incapaz de fiar sequer a si próprio, mas a convicção bastante generalizada e imposta pelo medo (ao menos, entre as pessoas que poderiam assumir o comando do governo, na nova pinguela pós-Temer) de que, se nenhum ajustamento fiscal for feito (ou, no mínimo, crivelmente prometido), teremos rapidamente a volta da inflação e o aumento do desemprego.
Se eu estiver certo nesta preliminar (como acho que estou), a alegação de que salvar Temer (e, por consequência óbvia, INOCENTAR Dilma e o PT) equivale a salvar a estabilidade cai por terra. Passo, portanto, à parte mais importante do argumento.
O Sr. Michel Temer e os quarenta ladrões que ele escolheu para ministros não compõem uma nova organização criminosa. Eles são, apenas, uma dissidência (membros subordinados, vá lá) da mesma quadrilha que nos governa há quatorze anos e meio. Infelizmente, só existia uma rota constitucional para demitir a "presidenta" que levara o país à bancarrota. Essa via implicava na posse do vice-presidente. Não tínhamos escolha. E, cá pra nós, o Brasil melhorou um bocado depois que a troca foi feita.
O respeito às leis e, especialmente, à Constituição, mantido durante todo o processo do impeachment (descontada a falcatrua cometida no apagar das luzes pela dupla Renan-Lewandowski a favor da desastrada senhora) forneceu o respaldo moral a nós que fomos às ruas pedir a derrubada de Dilma Rousseff e seus asseclas petistas.
Não estávamos lutando para colocar Temer no poder, mas para tirar do poder uma pessoa que havia cometido crimes. Não tínhamos bandidos de estimação, como os tem o PT. (Vejam como reagimos às devastadoras recentes denúncias contra Aécio Neves.) Queríamos, sim, lutar contra a incompetência específica e a roubalheira generalizada características daquela mulher e do seu bando de marginais.
Se lutamos contra isso (e vencemos!) recorrendo, estritamente, aos meios legais disponíveis, como vamos, agora, defender a vergonhosa lambança que este governo montou no TSE? Como podemos aceitar que a montanha de evidências de que a chapa Dilma-Temer fraudou as eleições seja ignorada? Não foi exatamente contra isso (a desconsideração das evidências, ofuscadas pelo discurso de que o impeachment era golpe) que tão vigorosamente protestamos?
Em especial, como podemos acreditar na honestidade de um juiz – cujo voto e condução do processo foram decisivos para a absolvição da chapa liderada por Dilma Rousseff – se ele, escancaradamente, muda de opinião segundo suas conveniências momentâneas? Como podemos defender um desfecho processual conseguido sabe-se lá como, mas conspicuamente fraudulento?
Tô fora.

(Publicado no Facebook, 11/6/2017)

Falta uma mala na denúncia de Janot

1. Para o Presidente, será difícil explicar a mala cheia de dinheiro — redondos 500 mil reais —, a menos que o Papagaio Loures do Bico Dourado resolva assumir que a grana era dele, uma hipótese inverossímil.

2. Também só com muita benevolência alguém poderia acreditar que um Presidente da República recebesse em Palácio um empresário ladrão e investigado — fora da agenda e em horário esquisito — para discutir temas republicanos.

3. A meu ver, isso é tudo o que existe na denúncia. E é muito. Porém, a tentativa de fazer o diálogo gravado (resultante de uma armadilha afrontosamente preparada contra o Presidente) dizer mais coisas do que ele, de fato, diz lança fundadas suspeitas sobre os reais motivos do Procurador Geral. E aí a gente se convence de que, nessa história, ninguém é santo.

4. Não existe menção a dinheiro na conversa gravada. O empresário ladrão poderia estar mantendo "Eduardo" calmo com sessões de ioga (que o Presidente aprova e manda continuar). A inquietação de "Eduardo" poderia se dever ao fato de que o time de futebol pelo qual ele torce anda perdendo muito.

5. Mas o esticamento inacreditável (sem falar nas interrupções, no que era inaudível e deixou de ser...) a que o diálogo gravado foi submetido, para demonstrar o que ele não demonstra, é somente mais uma evidência de que há mistérios demais nesse processo.

6. Para meu entendimento, as circunstâncias estranháveis em que tudo aconteceu (a armação da cena, a homologação da delação em prazo inusitado, a inaceitável absolvição total concedida aos empresários ladrões) exalam cheiro de podre.

7. Não irei defender Michel Temer. A mala abarrotada de dinheiro não me deixa fazê-lo. Um fdp que usa o cargo de Presidente da República para coletar propinas deve mesmo ser condenado e preso. (Não nos esqueçamos de que essa era a prática usual do grande líder popular Lula da Silva, que também já deveria estar na cadeia.)

8. Apenas acho que o lado acusador, o Procurador Geral da República, tampouco, inspira confiança. Não há malas contra ele, é verdade. Mas, será porque não existiram ou apenas porque não foram filmadas?

(Publicado no Facebook, 28/6/2017)

sábado, 17 de junho de 2017

Jean-Jacques Rousseau em Jerusalém


Gustavo Maia Gomes

É temerário falar a respeito de um livro que ainda nem terminei de ler, mas sucumbi à tentação. Refiro-me a Sapiens: Uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari (tradução Janaína Marcoantonio, 8a. edição, Porto Alegre, RS: L&PM, novembro de 2015). Para ser mais preciso, tenho em mente o quinto capítulo (“A maior fraude da História”), que trata da invenção da agricultura, ocorrida doze mil anos atrás.
O autor carrega as credenciais de ter um doutorado em História por Oxford e de ser professor da mesma disciplina na Universidade de Jerusalém. Sapiens tem sido um best seller mundial. No Brasil, o livro alcançou inacreditáveis oito edições no mesmo ano de lançamento (2015). O que há por trás desse sucesso? Tenho uma resposta preferida, que apresento a seguir, em etapas.
A explicação
Não sei se foi na Inglaterra ou em Israel que Yuval Harari descobriu Jean-Jacques Rousseau (1712-78), mas a influência do filósofo francês é perceptível no quinto capítulo. Surpreendentemente, ele só é citado 300 páginas à frente e num contexto que não tem diretamente a ver com a agricultura.
Rousseau criou o mito do bom selvagem que, de tempos em tempos, é desarquivado, tem o mofo removido, e ganha novos adeptos. Disse ele que, em seu estado bruto, as pessoas humanas são livres e felizes. Vivem em paz com a natureza e com seus semelhantes. A desgraça veio com a civilização, que lhes roubou a liberdade, impôs-lhes tiranos e os fez trabalhar interminavelmente. Mas, a civilização nasceu da agricultura, cuja invenção teria sido, consequentemente, “a maior fraude da História”, nas palavras de Harari.
Detalho um pouco: quem escreveu isto abaixo copiado foi Jean-Jacques Harari, também conhecido como Yuval Noah Rousseau. Está em Sapiens (pág. 89 da oitava edição brasileira):
Em vez de prenunciar uma nova era de vida tranquila, a Revolução Agrícola proporcionou aos agricultores uma vida em geral mais difícil e menos gratificante que a dos caçadores-coletores. Estes passavam o tempo com atividades mais variadas e estimulantes e estavam menos expostos a ameaças de fome e doenças. A Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade, mas os alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou em mais lazer. Em vez disso, se traduziram em explosões populacionais [aqui Harari ecoa Thomas Malthus, 1766-1834, sem citá-lo] e elites favorecidas. Em média, um agricultor trabalhava mais que um caçador-coletor e obtinha em troca uma dieta pior. A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História.
Desconfio que a popularidade do livro se deva, exatamente, a esse capítulo cinco. Mas, baseado em que evidências o autor afirma ser a vida dos agricultores “menos gratificante que a dos caçadores-coletores”? Esta não é uma proposição fácil de comprovar (afinal, ainda não temos gratificômetros); ela só parece auto evidente para os seguidores da parábola rousseauniana, dentre os quais não me incluo. Há várias outras afirmações em Sapiens que também suscitariam refutações, mas vou ignorá-las. A grande vendagem do livro veio de seu alinhamento à tese do bom selvagem e é nela que concentrarei as atenções, daqui em diante.
Diálogo surreal
Harari pode estar certo ou errado em tudo o que disse no trecho citado, mas sua frase mágica é a última: “A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História”. Eis aqui um paradoxo. Mesmo se alguém concordasse integralmente com o restante da citação, ainda acharia difícil aceitar essa conclusão bombástica. Entre outras razões, porque fraudes pressupõem autores, gente operando conscientemente para enganar outras pessoas, fazendo-as agir (ou impossibilitando-as de reagir) de uma maneira que contribua para a realização dos objetivos do fraudador. E é flagrantemente falso que a agricultura tenha sido inventada por um ou vários sabidões. Nunca houve, por exemplo, este diálogo entre dois primitivos caçadores-coletores.
– Aonde vais?
– Vou ali inventar a agricultura.
– Isso demora?
– Nem um pouco. Guarda meu churrasco.
– Tem certeza de que quer ir, mesmo?
– Sim, por quê?
– Comeremos o pão com o suor de nosso rosto.
– E manteiga.
– Esta vida gratificante de correr atrás de gazelas será destruída.
– Haverá Big Macs.
– A agricultura produzirá bethovens.
– Teremos excelente música.
Viva a agricultura!
Recentemente, participei de um debate ao vivo e sem a intermediação da internet com um economista francês chefe de uma agência governamental de planejamento que era, também, padre jesuíta. (Não se trata de um detalhe irrelevante, como veremos.) Morando próximo à catedral de Notre Dame, ele nos aconselhou a todos a mudar para as brenhas da África ou da selva amazônica. Era onde, fugindo desta nossa civilização carente de tudo isso, iríamos encontrar os povos dotados de sabedoria, ecologicamente corretos, felizes desconhecedores da propriedade privada.
Repliquei que discordava de tais conselhos e que, de bom grado, assumiria seu emprego em Paris, providenciando para que ele, em troca, conseguisse uma posição na tribo dos ianomâmis. Nem ele se entusiasmou com a ideia, nem o público presente me apoiou. (Uns poucos homens e mulheres, talvez, sim.) Mas, o ponto importante é que a popularidade do discurso primitivista mostrou-se muito clara, suscitando a pergunta: Por que essa atração por Rousseau? Identifiquei, naquela pequena plateia, o mesmo sentimento que explica a vendagem recorde do livro Sapiens, de Yuval Harari. Vou tentar interpretar isso, mas só depois de fazer algumas considerações preliminares.
Eventos ou sequências de eventos historicamente importantes quase nunca resultam de decisões tomadas por agentes – indivíduos ou grupos de pessoas – dotados de alguma consciência do que estão fazendo. Ainda menos comum é que os responsáveis por essas decisões (quando for possível dizer que tais responsáveis existiram na forma de pessoas específicas e, teoricamente, identificáveis) sejam ou tenham sido capazes de antecipar seus efeitos de longo prazo. Nessas condições, olhar para a História em busca de vilões fraudadores ou de heróis derrotados que queriam continuar se abrigando em cavernas é um procedimento infantil. No extremo, desonesto.
No caso da agricultura, não se pode dizer que ela tinha tido “inventores” conscientes. (Portanto, é fraudulento afirmar que sua invenção foi uma fraude.) O fato histórico de sua criação deve ser registrado e as consequências respectivas identificadas. Podemos fazer isso, tanto Harari quanto eu. A diferença é que ele acha que a “invenção” da agricultura foi um malefício para a humanidade, enquanto eu estou certo do contrário. Tudo bem, se for apenas uma questão de valores diferentes. Mas não me parece que os neoadmiradores de Rousseau percebam com clareza as implicações de suas preferências.
Com efeito, nada do que tem valor reconhecido em nossa civilização existiria sem a agricultura. Sócrates não teria filosofado contra os sofistas; Cervantes não teria escrito Dom Quixote; Shakespeare teria passado a vida flechando ovelhas selvagens; Michelangelo teria sido um caçador de rãs; Johann Sebastian Bach seria um surdo a mais, no meio de tantos comedores de amoras; as pirâmides nem teriam sido imaginadas, nem as catedrais góticas, nem a Guernica de Picasso, nem a Mecânica Racional de Newton, nem a Relatividade de Einstein, nem o ar-condicionado, nem a penicilina, nem as vacinas, nem a possibilidade de viagens intercontinentais rotineiras, nem o WhatsApp, nem o telefone, nem o jornal diário, nem o Big Ben de Londres, nem a Torre Eiffel de Paris, nem o trem para Branquinha. Continuaríamos a invejar os pássaros pela sua capacidade de voar.
Você seria analfabeto, leitor, e eu também. Nunca teria tido o prazer de montar um cavalo árabe selado; jamais teria visto o outro lado da Lua, nem acompanhado de sua poltrona o jogo final da NBA. Charles Chaplin, por sua baixa estatura, seria escalado para caçar tatus; somente os sapos adjacentes ririam de suas graças. Ninguém pagaria um padre jesuíta e economista francês para atravessar o oceano e dizer bobagens a plateias receptivas. Contra a sua vontade (se pudesse imaginar as belezas da inexistente Notre Dame de Paris) ele estaria morando na África, onde dormiria o dia todo todos os dias, devido a ter sido picado pela mosca tsé-tsé. Nas poucas ocasiões em que abrisse o olho, se entediaria com ver o Tarzan pendurado nas árvores soltando seu grito animalesco – AAARRRGGGHHHH!!! Um minuto depois, estaria de novo a dormir.
Eu não quero nada disso para mim e desconfio que, tampouco o quer o leitor ou o jesuíta francês. Portanto, viva a agricultura!
Por que essa atração por Rousseau?
Retorno à pergunta feita acima e, agora, tento respondê-la. Por que o mito do bom selvagem – e seu corolário de negação da agricultura e da civilização – atrai tantos adeptos? Na origem, esse era, apenas, o discurso dos derrotados e dos portadores de sentimentos de culpa. Aqueles que não tendo alcançado uma posição satisfatória no mundo onde vivem, são consolados pela crença de que seu fracasso se deveu à invenção da agricultura. Aqueles que, como os católicos, jesuítas ou não, economistas ou não, sempre cometeram algum pecado original e prazerosamente se redimem jurando que a virtude está com os perdedores. (Mas, não acreditam nisso, de fato, o que só piora as coisas, por aumentar a necessidade de expiação.)
Tudo bem que esse tenha sido o núcleo original dos seguidores de Rousseau. Ocorre que o número de pessoas que, hoje, se mostram receptivas ao discurso da autoflagelação excede em muito a quantidade dos fracassados e portadores de complexos de culpa. Quem compõe os contingentes adicionais, exércitos de reserva das teses mais conservadoras?
Nas sociedades contemporâneas, boa parte delas imensamente ricas, se comparadas com os bandos de caçadores-coletores, há muitos professores universitários, escritores, artistas regularmente pagos para não fazer nada de útil. Escrevem dissertações estrambóticas, publicam livros com teses as mais esdrúxulas – e a sociedade continua sustentando-os em seus altos padrões de vida. Essas pessoas são propensas a dizer que o mundo é ruim. Percebem que, assim procedendo, despertam muito mais simpatias e vendem quantidades maiores de suas obras, do que o fariam se reconhecessem que este mundo criado pela agricultura, a indústria, as tecnologias de alta eficiência, é tão bom, tão espetacularmente bem sucedido, que até inúteis como eles encontram maneiras de viver com opulência e difundir suas ideias sem grande esforço. Esses intelectuais vivem da multiplicação dos pães possibilitada pela Revolução Agrícola, mas multiplicam seus clientes negando esse fato óbvio.

Não estou dizendo que professores e escritores como Yuval Noah Harari sejam desonestos. Mas de que ele escreveu aquela frase terrível (“A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História”) com objetivos mercadológicos, tenho poucas dúvidas. Jean-Jacques Rousseau em Jerusalém.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

O trem para Viçosa, Alagoas, segundo Théo Brandão (1950)

Gustavo Maia Gomes

Escrevi um livro a que dei o título O trem para Branquinha. (Já está na editora, com previsão de publicação até o fim deste ano.) Nele, como seria de esperar, o trem desempenha papel importante, não apenas pelas transformações socioeconômicas que proporcionou à região canavieiro-açucareira do Nordeste, entre os anos de 1858 e 1950, mas também pelo seu valor simbólico, entranhado em minhas recordações pessoais. 

Na viagem entre o Recife,  Branquinha (AL) e Maceió, o trem da Great Western, depois Rede Ferroviária do Nordeste parava em inúmeras estações. Cito algumas delas: Boa Viagem, Cabo, Pontezinha, Escada, Ribeirão, Catende, Palmares -- em Pernambuco --; Joaquim Gomes, São José da Laje, Nicho, Murici, Fernão Velho, Bebedouro, em Alagoas. Nas estações, e dentro dos vagões, enquanto parados, havia os vendedores disso e daquilo. Cada estação tinha seu produto ou produtos característicos: alfenins, roletes de cana, cajus, cavacos, laranjas seletas e tantos outros.

Começando 40 anos antes de mim, Théo Brandão (1907-81) o famoso folclorista alagoano, também andou nos mesmos trens da Great Western, tipicamente, fazendo o percurso entre sua cidade natal (Viçosa, AL) e Maceió. Descobri delicioso artigo dele, publicado em 1950 no Diário de Pernambuco, sobre as pessoas oferecendo alimentos aos passageiros. É o que transcrevo a seguir.

Os pregões de trem
Théo Brandão

Já se foi o tempo em que uma viagem de trem era para qualquer cidadão deste velho mundo um acontecimento na vida.
As viagens para as cidadezinhas do então ramal de Viçosa ou Pernambuco, mais afastadas da capital, eram preparadas com meses de antecedência. Especialmente, quando se ia passar “tempos” em Maceió e Recife. Preparavam-se as “munições de boca”: as cestas de vime recheadas de perus e galinhas assadas, pão de ló torrado, as fritadas de camarão ou de galinha, os sequilhos ou as broas de goma, as garrafas, ou melhor, as “quartinhas” com água fresca, com o que se haveria de encher o estômago nas espichadas horas da travessia.
Ainda vinte anos atrás, Jorge de Lima fixava no seu poema “GWBR” a incômoda, mas certamente pitoresca viagem pelos trens da Great Western.
Contudo, ainda muito de pitoresco e de tradicional há para o folclorista anotar numa viagem pela velha estrada. Por exemplo, os pregões de trem, dos quais Jorge de Lima só muito por alto falou, os anúncios de moleques magros e meninos amarelos, de mulheres esqueléticas e de velhos trôpegos, cantados à beira das estações ou ao longo dos carros, mercando para os que não quiseram ou puderam trazer as “munições de boca”.
Para quem vinha de Viçosa, naqueles velhos tempos, na época, sobretudo, de verão, e que tinham saído da então Princesa das Matas com o estômago confortado pelo bom café com leite, pelo pão da Padaria de Seu Joca generosamente untado com a saborosa Esbense, somente em Bittencourt começava a dar sinais de apetite, quando apareciam as cestas de folhas de palmeira entrançadas, repletas de maravilhosos cajus ou belas jacas moles de bago roxo, ou pacotinhos de castanhas assadas:
– Oie a jaca mole!
– Oie o caju doce, quem qué caju, quem qué chupá caju?
– Oie a castanha assada, castanha assada, um tustão o pacote.
Mas, era e é ainda inegavelmente em Lourenço de Albuquerque e Rio Largo – pontos de demora do comboio à espera do de Pernambuco, onde os pregões invadem os carros, entram por nossos ouvidos e atingem o mais fundo de nossas vísceras, principalmente quando estas vísceras andam de dieta efetiva e não mais poderão se deliciar com o encanto das guloseimas que os pregões proclamam.
O homem do cavaco chinês – estranha massa de farinha de trigo, parece que feita exclusivamente para aguçar a fome – com um baú cilíndrico às costas e a agitar o característico triângulo numa inconsciente aplicação prática da ação do som sobre a secreção salivar vibrava nossos tímpano os e espremia nossas glândulas salivares enquanto anunciava:
– Oie o cavaquinho chinês.
– Oie o pacotinho de cavaco, novinho na hora...
E, após ele, sucediam-se os pregoeiros. Um anuncia bananas:
– Ei, madurinha, a banana...
– Oie o rolete de cana,
– De cana caiana,
– Oie o rolete...
Aqui, o amendoim torrado, o velho midubim querido por adultos e crianças:
–Vamos acabá o midubim torrado, vamos acabá...
Ali, exposto à vista dos fregueses e das moscas, um prato com os tradicionais suspiros, broas e pães de ló, naturalmente, sem mais aqueles coloridos enfeites de papelotes de seda recortados, que eram 30 anos atrás uma arte desenvolvida e que a confeitaria moderna destruiu de uma vez.
– Olha a broa, o suspiro e o pan de ló! ...
Eram os pregões de pão – os pães doces feitos nas padarias de Rio Largo, ainda quentes de forno e reluzentes como o verniz açucarado com que eram e são vendidos o grosso dos pregões.
– Pão doce, dez tões.
– Dez tões, tá chegando quentinho... Olha aqui o novinho.
– Dez tões, chega tá se derretendo.
E eram mesmo quentinhos, e tinham as formas pitorescas de jacarés, de cavalos, etc.
Não ouvi, contudo, serem apregoados os tarecos – tarecos que eram vendidos a tostão o pacotinho e com os quais sonhava mais que com a própria viagem, naqueles tempos em que com um tostão se podia comprar alguma coisa.
Por fim, já em Fernão Velho, ao descortinar o panorama maravilhoso da Mundaú, vinham os pratos de pitus vermelho-carmesim, barbados pitus que justificaram e certamente ainda justificam muitos incômodos dos que vinham a Maceió e que se deliciavam não só com a comezaina de tão saborosos cavaleiros de Netuno quanto com os acepipes não menos deleitosos das cozinhas de Vênus.
– Olha o pitu, olha o pit-u...

(Diário de Pernambuco, 10/9/1950, pág. 1, segunda seção.)

sexta-feira, 9 de junho de 2017

31 de março de 1964 (Reflexões breves sobre um dia longo)

Gustavo Maia Gomes

Quando terminei de ler a excelente biografia de Getúlio Vargas escrita por Lira Neto (São Paulo, Companhia das Letras), estava marcado por inúmeras revelações importantes. Juntando-as ao que já tinha aprendido antes, conclui que, em todos os momentos, de 1889 a 1964, algum golpe de Estado estava sempre sendo preparado para derrubar o governo. Sem surpresa: afinal, a própria República começara com a tomada do poder por uns poucos militares e seus cavalos e nunca descobrimos se um dos dois sabia o que estava fazendo.
Não poderia ter sido diferente com o governo João Goulart (1961-64). Herdeiro de Getúlio Vargas, mas desprovido da inteligência e carisma deste, Jango foi quase uma avant-première de Dilma Rousseff, ou seja, um absoluto desastre político, econômico e administrativo. Desde que assumiu, com poderes limitados (um veto militar à sua posse na Presidência, como sucessor do renunciante Jânio Quadros, levou à instauração do parlamentarismo), tratou de piorar a própria situação (e a nossa!).
Quando o país precisava de uma boa política econômica, ele entregou a demagogia populista. Jogou todas as fichas na defesa de “reformas de base”, que nada mais eram do que ameaças à produção. Virou marionete das centrais sindicais e sindicatos controlados por pelegos, cuja única aspiração era chupar mais dinheiro público para eles mesmos. Nos estertores de seu governo, Jango, como se estivesse convidando os militares a depô-lo, apoiou ou foi conivente até mesmo com um motim de marinheiros.
Não há dúvida de que João Goulart foi um desastre. Sua inépcia estava, sim, ampliando as probabilidades de tomada violenta do poder pela esquerda (à época, quase toda, comunista), o que teria levado o país a uma ditadura ainda mais violenta e longeva do que aquela de direita, porém, reformista que viríamos a ter. (Basta pensar em Cuba, na América Latina, ou em qualquer país comunista, no mundo.)
Justificaria isso a intervenção militar violenta que tivemos em 31 de março e 1 de abril de 1964? Na época, achei (e ainda acho) que não. Mas, é fácil fazer previsões sobre o passado. Difícil é tomar decisões sob a incerteza do que virá, se nada for feito agora. O regime militar que se implantou há 53 anos e que iria durar 21, sem dúvida, trouxe benefícios ao país. O esforço de racionalização da política econômica, entre 1965 e 1967, com Roberto Campos e Otávio Bulhões no comando, poderia ser citado: ele nos livrou de uma hiperinflação que já parecia inevitável, muito antes de abril de 1964.
Houve avanços em outras áreas. Os padrões de moralidade no trato da coisa pública – salvo prova em contrário que, até hoje, não apareceu – foram melhorados. Basta ver que nenhum alto dirigente do regime militar ficou rico, como era comum, antes dele – há o caso clássico do “rouba, mas faz” Ademar de Barros, por duas vezes governador de São Paulo. O avassalador crescimento do poder dos sindicatos, que só poderia levar ao descalabro econômico e à instabilidade política, foi detido, por um tempo. (Seria restabelecido, mais adiante, na era petista, com os resultados que estamos vendo.)
Mas o golpe trouxe, também, altíssimos custos, devidos à interrupção do processo democrático (iríamos ter eleições em 1965!) e ao excesso de poder conferido a militares, muitos deles, imbecilizados pela doutrina que opunha, de forma maniqueísta, os “bons”, liderados pelos Estados Unidos, aos “maus”, seguidores da União Soviética. Doutrina que justificou apreensões, em operações policiais, até mesmo de discos que continham a música “Noites de Moscou”, e que criminalizou o debate político, favorecendo -- eu não diria "obrigando" -- o aparecimento da reação armada (e desastrosa) ao governo.
Devia haver mesmo algo muito errado com aquele regime político que deu espaço para uma reles terrorista e assaltante de bancos, como a nossa ex-presidente, querer, até hoje, se passar por heroína. Em retrospecto, acho que teria sido muito melhor se não tivesse havido o golpe militar (desde que, tampouco, tivesse havido uma tomada de poder pela esquerda comunista), mas isso, reconheço, é uma coisa mais fácil de dizer hoje do que no calor dos acontecimentos daquele longo 31 de março de 1964.

(Publicado no Facebook, 31/3/2017)

Observações envergonhadas de um ex-acadêmico

Gustavo Maia Gomes

Fui professor universitário durante quase 30 anos. Sempre defendi a tese de que a remuneração dos professores deveria ser relacionada à respectiva titulação e, sobretudo, à produtividade. Aos desavisados, poderia parecer que a tese, finalmente, triunfou. Talvez, sim, mas à moda daquele pensamento devastador, que não é meu: "a tragédia do idealista é ver sua ideia realizada de uma forma que lhe destrói o ideal".
-- Como assim? -- Explico. -- Desde logo, importa notar que, em áreas como Direito, Medicina, Administração e Economia, entre outras, a "produtividade", se fosse adequadamente definida, teria a ver não apenas com o número de teses orientadas ou artigos técnicos publicados, mas também com a participação do professor em instituições relevantes do "mundo real", extra-muros: escritórios de advocacia, hospitais e clínicas médicas, empresas privadas e públicas, institutos de pesquisa econômica, secretarias de fazenda, Banco Central... Pois é no mundo real que as ideias falsas afundam e as corretas triunfam.
Portanto, quando um professor dedica parte do seu dia (ou se afasta temporariamente da Universidade) a fim de exercer atividades em instituições como essas, ele aprende coisas importantes e se capacita a transmitir informações valiosíssimas aos seus alunos. É diferente, sim, em áreas como Física, Química, Astronomia, nas quais, em boas universidades, o mundo real está na sala ao lado, intramuros: o laboratório de primeira linha, o observatório espacial ultra moderno...
Infelizmente, na modernização da Universidade brasileira, ocorrida a partir dos anos 1960-70, prevaleceu a ideia de que o único regime de trabalho compatível com a seriedade acadêmica seria o de tempo integral e dedicação exclusiva: a Universidade fechada em si mesma. Era uma ideia que pode ter funcionado para os departamentos de ciência experimental, mas que se revelou desastrosa nas áreas de conhecimento (também) "prático" que mencionei acima.
O triunfo desse ideal da Academia torre de marfim reforçou tremendamente o poder daqueles professores "endógenos", que nunca sairiam da Universidade, não porque não o quisessem, mas porque jamais seriam convidados a tal. E terminou levando a uma definição oficial de produtividade -- a ser recompensada com promoções e salários mais altos -- que leva em conta apenas números de artigos publicados, de teses orientadas, de participação em bancas. Ou seja, somente atividades exercidas no âmbito estritamente universitário.
Isolando-se do mundo real (e, reciprocamente, sendo ignorados por ele), quase todos os departamentos universitários de Administração, Economia, Sociologia, Serviço Social e outros semelhantes se tornaram usinas produtoras de besteiras, dominadas por professores que conhecem os livros (frequentemente, os livros errados, escritos por verborrágicos filósofos e economistas franceses), mas desconhecem a realidade. E que se outorgam uns aos outros certificados de alta produtividade medida por critérios que eles mesmos inventaram.
Para piorar as coisas, quem está preso a esse circuito kafkiano (e faz disso seu ideal de vida), não tem outra opção além de dançar conforme as regras estabelecidas.
Dessa forma, mesmo professores inteligentes são constrangidos a escrever artigos em série (e reproduzi-los em variantes mil) onde problemas falsos recebem soluções erradas. A orientar dissertações e teses cuja irrelevância procuram ocultar com o emprego de cavalares doses de estatística. A participar de congressos dos quais o único resultado certo é a perda do tempo gasto em ouvir tanta bobagem, quando se poderia ter ido assistir a um jogo de futebol no meio da torcida organizada.

(Publicado no Facebook em 13/4/2017)

Recordações de Penedo (AL)

Gustavo Maia Gomes

Se você gosta de sentir a História, de pisar em chãos do passado, contemplar prédios de ontem, respirar os mesmos ares que seus antepassados ilustres – não necessariamente parentes – respiraram, vá a Penedo, Alagoas. A cidade é uma maravilha. Sua arquitetura que remonta, em alguns casos, ao século XVII, está, em grande medida, preservada. O Rio São Francisco, apesar de tão maltratado, continua ali. Penedo tem hotéis razoáveis e pousadas acolhedoras. Esqueça a futilidade lustrosa da Flórida. Mande seus filhos a Penedo. Vá com eles.
Ivan, meu irmão, e eu estivemos lá, em 2014. Dez anos antes, eu tinha estado em Penedo com Lourdes Barbosa, minha mulher. Em 1983, o Comendador Ventura – o jornalista Luís Alípio Gomes de Barros (1920-91), alagoano que fez carreira no Rio de Janeiro – registrou na coluna “Não morra pela boca” suas impressões gastronômicas de uma passagem pela cidade. Acho que o restaurante a que ele se refere não existe mais. De qualquer modo, seu texto merece citação.
"Um jacaré ensopado na Rocheira, o mais curiosamente instalado – incrustado na pedra que dá nome à cidade – é o mais atraente e, por que não dizer, melhor restaurante de Penedo, Alagoas. Debruçado sobre o Rio São Francisco, [tem] uma vista maravilhosa. Mas, se o caldinho de peixe, o caldinho de jacaré, o caldinho de cabeça de peixe, é o começo de tudo, há o surubim (do grande rio) ensopado no leite de coco e a carne de sol, que vem do lado de Sergipe, mais precisamente, do Cedro, e que é famosa em toda a região. Ah, o Ventura destas mal batidas [linhas] ia esquecendo dos pitus ensopados no leite de coco, mas do coco espremido na hora, e no quê exato, para não enjoar". (Última Hora, RJ, 23/11/1983)

(Publicado no Facebook em 16/4/2017)

O Dia D (Deles) e o Dia N (Nosso)

Gustavo Maia Gomes

Em 6 de junho de 1944, o Dia D, quatorze países aliados, dentre eles Austrália, Canadá, Bélgica, França, Grécia, Nova Zelândia e Noruega, sob o comando dos Estados Unidos e da Grã Bretanha, deram início à invasão da Normandia, abrindo a frente Oeste na guerra contra a Alemanha.
A operação contou com cinco mil navios, quatro mil balsas e onze mil aviões. Cem mil soldados desembarcaram nas praias francesas, no Dia D. Em uma semana, seriam trezentos mil; em julho, um milhão. Sua missão era vencer a guerra, destruir o monstro nazista, restabelecer a paz, a democracia e a prosperidade no continente.
Um ano depois, haviam conseguido tudo isso, na Europa ocidental, pelo menos. Ali, nos dias de hoje, a vida deve ser boa: ninguém que mora na Bélgica, França, Grécia, Noruega (ou Grã Bretanha, Alemanha, Holanda...) quer fugir. Ao contrário, muita gente morre na tentativa de se juntar a essas pessoas ricas, livres e felizes.
Em 10 de maio de 2017, o Dia N, quatorze entidades suspeitas, dentre elas a CUT, o MST, a CNBB, sob o comando do Partido dos Trabalhadores nos Sindicatos e no Governo, deram início à invasão de Curitiba, abrindo mais uma frente na guerra contra a lei, a decência e a esperança de que, um dia, este país deixe de ser um covil de ladrões.
A operação juntou cinco mil ônibus alugados com o dinheiro público do imposto sindical, quatro mil balsas movidas a propina, e onze mil aviões que nunca irão voar, pois o dinheiro de sua fabricação foi desviado. Cem mil pelegos comendo mortadela e mais outros tantos idiotas úteis fedendo a Marx desembarcaram nas praias paranaenses, no Dia N. Em uma semana, terão ido embora; em julho, estarão queimando pneus noutro lugar. Sua missão era defender um réu acusado de nos roubar, desta forma preparando o caminho para restabelecer a cleptocracia no continente.
Um ano depois, sonham ter conseguido tudo isso, no Brasil continental. Aqui, com o lulismo restaurado, a vida será boa para quem tiver uma boquinha no governo, ou uma bolsa família reajustada a cada mês. Fora esses, ninguém há de querer ficar. Muita gente será barrada na tentativa de se juntar às pessoas ricas, livres e felizes... dos Estados Unidos... da Europa ocidental...

(Escrito na madrugada do Dia N, 10/5/2917. Publicado no Facebook no mesmo dia)

Na dúvida, duvide

Gustavo Maia Gomes

Esta é uma história de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e instituições reais é mera coincidência.
Pressionado pelas investigações criminais já em curso, o comprador de reputações e marca de uísque Joio Brasil convoca alguns sócios-sinistros para uma reunião noturna secreta nos subterrâneos do clube Sentinelas Todos Fomos.
Surpreendentemente (para mim e você; não para JB e os sinistros), a reunião se realiza, como havia determinado o comprador de reputações. Na presença dos convocados, o homem liga um pequeno aparelho que reproduz conversas devastadoras entre ele próprio e os sinistros presentes.
Há um princípio de pânico. Os sinistros perguntam a JB o que ele quer para não divulgar aquela gravação. E aí o comprador de reputações anuncia que tem muitas outras coisas gravadas, envolvendo gente graúda. Até mesmo o presidente da Coisa Pública e um sonhador muito conhecido.
– Mas, o que você quer para não divulgar a "nossa" conversa? – insiste um dos sinistros. – Dinheiro? – JB abre um largo sorriso e põe os pingos nos ii: – Meu senhor, não seja ridículo. Dinheiro, para mim, só acima de um bilhão. Se eu quisesse dinheiro, não estaria aqui, mas naquele banco camarada, onde obtenho tudo o que quero, sem sequer ficar devendo.
– Se não é dinheiro, o que será? – insiste o mesmo sinistro, como você já percebeu, um débil mental.
– Quero que o Sentinelas Todos Fomos me absolva previamente de todos os meus pequenos deslizes, sem que eu seja, sequer, levado a julgamento – esclarece JB.
– Isso é impossível. O que o senhor acha que nós somos? – interveio um outro sócio-sinistro do Sentinelas. JB nem pestanejou antes de responder: – O que os senhores são, eu sei. Vim aqui apenas para propor um acordo. Até hoje, eu pagava e vocês recebiam. Agora quero inverter as coisas. Vocês me absolvem e eu não publico nossas conversas.
Nunca antes na história do Sentinelas Todos Fomos se tinha produzido tamanha comoção. Houve um alívio, porisso, quando um sinistro encontrou a forma de resolver aquilo, em benefício do país. Ele disse: – Mostre as outras fitas. Se forem tão boas como está dizendo, entregue elas para nós...
Todos perceberam aonde o sinistro queria chegar: dê-nos a gravação e nós lhe daremos uma depilação premiada Brastemp. Liberdade total, nem tornozeleira eletrônica, nem nada.
Nisso, alguém sentiu falta do encontrador. Sem ele, nenhum acordo teria validade. Foram buscá-lo. Em cinco minutos, o homem apareceu. JB aproveitou para fazer todos ouvirem a reprodução gravada de um interessante diálogo que ele e o encontrador tinham tido três dias antes.
Foi o bastante para convencer a todos de que, em sendo para o bem-estar do povo e a felicidade geral da Nação, que se divulgassem as conversas do presidente e do sonhador o mais rápido possível.
Afinal, JB já tinha reservado lugares no próximo voo Brasília-Nova York, aquela cidade do Maranhão. Para ele e sua namorada Joelma. Sem tornozeleiras, faz favor.

(Publicado no Facebook, 20/5/2017)