sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A CASA IMPROVÁVEL

Gustavo Maia Gomes
Lourdes Barbosa, minha muito querida Lourdes Barbosa, foi à Ilha do Marajó a fim de rever um lugar histórico para sua família. E fez fotos maravilhosas. Eu também queria ir, mas não pude, desta vez. Haverá uma próxima, em breve.
Há tantas perguntas a serem feitas. O que sustentava essa opulência? A pecuária, imagino. De bois? Búfalos? A mão de obra era local? De índios, certamente. Como eram as relações de trabalho? Duvido que fossem pagos em dinheiro. Deviam receber permissão para plantar suas próprias culturas alimentares, e criar seus bois, em lotes da terra.
Essa e as outras fazendas similares vendiam carne para Belém? (Ainda hoje?) Por que elas decaíram tanto, se se trata de um fenômeno não restrito à fazenda que Lourdes mãe chamava de "Meu Sossego"?
O que justificava esse gigantismo do conjunto residencial, muito maior, por exemplo, do que as maiores casas-grandes do Nordeste açucareiro? Famílias numerosas? Desejo de ostentar? Excesso de dinheiro sem outra aplicação possível? Tudo isso junto?
Três andares! Devia ser por falta de terras para construir casas térreas ou, vá lá, sobrados de dois pavimentos. ("Rs", como se diz no linguajar algo primitivo das redes sociais.) A pergunta é séria: por que fazer casas de três andares (com elevadores internos!!!) num lugar onde havia sobra de terras? Era para ostentar, provavelmente, impor respeito. Fantástico.
Parabéns, minha Linda. Isso tudo reforça nossa intenção de escrevermos juntos um livro sobre as raízes históricas de sua família e da sociedade onde seus parentes viveram. De uma coisa, não abro mão. Vamos lançar o livro nesse local, no terceiro andar da casa maior.
Depois de ter ensinado os índios remanescentes a ler e escrever, se eles ainda não o sabem.

O TANGO

Gustavo Maia Gomes
Podemos entender a Argentina?, pergunta Helga Hoffmann. Não sei, mas vou tentar. É o tango. A dança. Belíssima. Irracional, porém. Nada de dois pra lá, dois pra cá. Trinta e sete para frente, dezoito para um lado, quarenta e três para trás. E, da próxima vez, será diferente.
Num dado momento, dama e cavalheiro caminham ombro a ombro, como se tivessem o mesmo alvo. Então, o homem dá uma guinada, desmanchando tudo. A mulher perde o equilíbrio. Vai cair. É amparada pelo parceiro. Ela desce, desfalecida. Ele a ergue, triunfante.
O casal se desfaz. Passearam muito, sem chegar a lugar nenhum. Nem se sabe se estavam coreografando a beleza, o amor, o ódio, ou a vacuidade. Lá fora, há incêndios, inundações, atentados. Com o baile rolando, só um alguém vai à rua lançar gasolina no fogo, água na enchente e retratos de Guevara sobre os corpos partidos.
No salão, novos pares se formam. É o tango, outra vez, ainda e sempre. Vinte e cinco para frente, setenta e um para um lado, trinta e três para trás. Da próxima vez, será diferente. Portanto, será igual.

MEMÓRIAS NA ESTANTE

Gustavo Maia Gomes
Dentre os livros da juventude que preservo até hoje, há nove que quero lembrar aqui. São autobiografias ou memórias pessoais. Relaciono-os de acordo com o ano (em alguns casos, estimado) em que os li pela primeira vez.
Cinco estão comigo: “O Retrato” (Osvaldo Peralva, 1963), “Meu Encontro com Marx e Freud” (Erich Fromm, 1963), “Carta a Meu Pai” (Franz Kafka, 1967), “Solo de Clarineta” (Érico Veríssimo, 1979), “Autobiografia Intelectual” (Karl Popper, 1979).
Outros quatro ainda não encontrei, mas devem estar por aí: “Memórias” (Ilya Ehrenburg, c.1965), “As Palavras” (Jean-Paul Sartre, c.1966), “Entre a Água e a Selva” (Albert Schweitzer, c.1967), “Autobiografia” (Bertrand Russell, c.1968).
“O Retrato” narra a desilusão de um jovem militante com a União Soviética. Li-o quando estudava no Colégio Marista do Recife. Devíamos resumir um livro por mês. O de Osvaldo Peralva (recentemente reeditado) esteve entre os melhores.
Já “Meu Encontro com Marx e Freud” eu o descobri fora do colégio. Na época, gostei muito. Fromm era seguidor crítico das ideias freudianas e nutria uma espécie de marxismo homeopático com raízes na Escola de Frankfurt. Combinação ideal, pensava eu. Havia então muita gente ávida por ingerir aquele cozido improvável, feito com pedaços de dois ícones (a rigor, incombináveis) do pensamento ocidental.
A “Carta a Meu Pai” me fez conhecer Kafka e seus problemas psicológicos insolúveis. Sua leitura impactou-me. Felizmente, compreendi que meus conflitos interiores, ao contrário dos do escritor checo, se deviam apenas a eu não ter ainda conseguido uma namorada. Passaram rápido, portanto. A admiração por Kafka, ao contrário, ainda hoje me acompanha.
“Solo de Clarineta”, mais precisamente, seu primeiro volume, me fez amar Érico Veríssimo, que comunica no livro a imagem de um homem simples, despojado de vaidades. O II Volume, relatos de viagens, me pareceu monótono, talvez, porque eu jamais tivesse ido aos lugares descritos por ele.
Num ponto, a autobiografia intelectual de Popper, tem semelhança com o “Solo de Clarineta”: ela também transmite uma imagem despida de afetações do seu autor, o mais importante filósofo da Ciência do século XX. Estudei muito esse assunto, até me mudar para São Paulo (1971), quando tive de focar em leituras mais distintamente econômicas.
Bertrand Russell (“Autobiografia”) foi e continua sendo um de meus ídolos. De Sartre, não gosto, mas, de “As Palavras”, sim. Schweitzer me impressionou menos. As “Memórias” de Ehrenburg li com enorme prazer: o cara conviveu com boa parte dos gênios artísticos e literários de nosso tempo, numa fase da vida em que eles eram todos miseravelmente pobres.

O LIVRO MAIS ANTIGO

Gustavo Maia Gomes
Mantenho em minha casa com Lourdes Barbosa cerca de três mil livros. Tirando os que são, originalmente, dela, os outros devem corresponder à metade dos que comprei ou ganhei, ao longo da vida. Os demais se perderam, vitimados por cupins, excesso de umidade, ou acidentes vários ocorridos durante ausências prolongadas do Recife.
Também houve os livros que joguei fora por serem demasiadamente ruins, mas esses foram poucos. Com a recente mudança do nosso escritório para o primeiro andar da mesma casa, rearranjamos os volumes nas novas estantes, um trabalho difícil, demorado e ainda inconcluso.
De todo modo, agora posso contemplar sem esforço obras que li na juventude. A mais antiga (das que se conservaram) é de 1958: “Maravilhas da Ficção Científica”. Ganhei-a de meus pais, ao visitar com eles uma feira de livros a céu aberto que acontecia nas calçadas da Rua da Aurora, em frente ao Cine São Luís, zona central do Recife.
Sessenta anos passados, algumas das “Maravilhas” se prestam a exclamações. “A primeira hora na Lua”, privilégio de uma tripulação de astronautas soviéticos, iria acontecer em 27 de novembro de 1974. Na verdade, veio a se dar em 1969 e foi vivida por norte-americanos.
Dentre os autores dos contos reunidos no livro mais antigo de minha biblioteca, havia os que já eram mortos e famosos (caso de H. G. Wells, 1866-1946); outros viriam a se tornar celebridades (por exemplo, Isaac Asimov, 1920-92; Robert Heinlein, 1907-88; e Ray Bradbury, 1920-2012).
Lembro-me, especialmente, dos contos “Arena” (Frederic Brown, 1906-76) e de “O pequeno robô perdido” (Isaac Asimov). O primeiro se passa num deserto, e descreve a luta entre um homem e uma coisa dotada de poder mental avassalador.
O homem percebe que aniquilaria o seu oponente se pudesse chegar até ele, mas há um muro invisível entre os dois, que somente dá passagem a objetos inanimados. A coisa arremessa pedras a todo momento, ferindo o inimigo do lado de cá.
O conto termina com a descoberta pelo narrador e herói humano de que seres vivos, desde que inconscientes, também têm trânsito livre entre um lado e outro da arena. De modo que o homem se encosta no muro e aplica em sua própria cabeça um golpe de pedra que o faz desmaiar.
Quando acorda, está sendo contemplado pela coisa, mas tem tempo suficiente para desfechar-lhe um golpe destruidor, após o que o muro (possivelmente, uma criação mental do inimigo) desaparece. O homem havia vencido.
Recontei a história acima baseado apenas em minhas memórias de sessenta anos atrás. Devo ter cometido imprecisões, portanto. (Sobre o “

“BONDADE DA BOA”

Gustavo Maia Gomes
Muitos anos atrás, o comediante Ary Toledo apresentou-se no programa de TV “Fino da Bossa”, de Elis Regina e Jair Rodrigues. Quase completamente desconhecido até aquele momento, pegou o violão e começou assim:
Eu um dia cansado que estava da fome que eu tinha
Eu não tinha nada, que fome que eu tinha
Que seca danada no meu Ceará
O cara -- refugiado no Rio de Janeiro -- fazia de tudo e não conseguia comer direito. Num dado momento, Toledo declamou: “Tem uma senhora bondosa lá no Leblon que gosta muito de ver eu comer é caco de vidro. Já juntei uns quinhentos mil reis".
E completava: “Isso é que é bondade da boa”.
Elis Regina teve um acesso de riso.
Lembrei-me do episódio depois de ler reações a um pensamento do jornalista João Roberto Guzzo que reproduzi aqui: “Não existe ‘agrotóxico’ nem ‘veneno na comida’. Existem fertilizantes, inseticidas para combater pragas e produtos para melhorar a qualidade da agricultura. São usados no mundo inteiro. No Brasil, são armas da ‘esquerda’ para tentar sabotar o sucesso do capitalismo no campo”.
Houve comentários favoráveis, mas também os houve indignados. Talvez eu possa deduzir dessas últimas reações que os autores delas são favoráveis à agricultura orgânica, com suas cenouras mirradas, alfaces inexpressivos e tomates descoloridos. Por isso, resolvi ler um pouco da literatura científica sobre o assunto. Encontrei o seguinte:
“As estimativas (...) de produtividade orgânica devem retornar aos fundamentos da BNF [Fixação Biológica de Nitrogêneo], [segundo as quais somente] cerca de metade da população mundial atual poderia ser alimentada organicamente”. (David J.Connor. “Organic agriculture and food security: A decade of unreason finally implodes”, Field Crops Research, August 2018.)
Ou seja, se a agricultura dos agrotóxicos e fertilizantes fosse substituída pela orgânica, como querem a esquerda e os amigos do meio ambiente, metade da população mundial morreria de fome.
Isso é que é bondade da boa.

UM HOMEM BOM

Gustavo Maia Gomes
Zeferino Cefálico era um homem bom, defensor dos animais, amante das causas justas, ambientalmente consciente. Heterossexual solteiro, por solidariedade aos gays e lésbicas atendia a todas as chamadas de telemarketing, em penitência.
Amava os cachorros. Tinha ao redor grande número deles, que o lambiam de alto a baixo. Comendo no prato do dono e dormindo em sua cama, os cães emporcalhavam a casa toda, nela depositando montinhos de cocô, uns mais duros, outros mais moles, em que os visitantes pisavam.
Inconformado com a matança de animais, Zeferino desenvolvera hábitos alimentares de ruminantes: só comia capim, seis vezes ao dia. Era, digamos assim, radicalmente vegano. Além disso, amanhecia amaldiçoando os transgênicos, ia dormir combatendo os agrotóxicos.
Na sua casa, tudo era reciclado. Do sanitário, os resíduos iam para um tanque especial. Dali voltavam, para serem outra vez consumidos. O homem bom produzia o próprio alimento: o quilo de sua mandioca sustentável lhe saía por 280 reais. Da vaca ecológica, tirava o leite mais caro do mundo.
Praticava ioga, desenvolvendo a paz interior necessária para matar as muitas baratas que a sujeira ideologicamente justificada atraía e alimentava. Tinha coach e personal trainer. Durante trinta e cinco anos pagou sessões de terapia, ansioso por se curar de doenças inexistentes.
Em política, era de esquerda, por amor aos pobres, aos negros, aos direitos humanos e às causas ambientais. Defendia a ampliação das reservas indígenas. Queria a ressocialização dos assaltantes, a segunda chance para os estupradores, a décima-terceira oportunidade para os padres pedófilos.
Mas, havia um problema. Zeferino herdara do pai um mal que o faria esquecer tudo. Um processo lento, porém, inelutável. O médico diagnosticou: – Esquecimento global. O mar vai subir; as pessoas, derreter. Você de nada lembrará. Nem de seus cachorros, nem da ioga, nem dos pobres, nem dos gays, nem da mulher que não teve, nem das que sempre quis ter.
Cefálico ficou arrasado. Foi para casa. Ao entrar, viu os cães imundos prontos a lhe lamber, com a volúpia dos seres libidinosos. Agarrou-os todos e os jogou embaixo do trator que passava na rua naquele instante. Da carne moída, preparou um churrasco. E chamou os amigos.
Entortou os canos, fazendo o esgoto desaguar no chão da cozinha. Trocou as sessões de ioga por touradas na Espanha. Processou o terapeuta, acusando-o de charlatão. Mandou o personal trainer pagar as contas do coach. E vice-versa. Fez todo mundo saber que detestava índios. Defenestrou negros, gays, lésbicas e aleijados.
A verdade é que, depois do esquecimento global, Zeferino Cefálico nunca mais foi o mesmo.

A REVOLUÇÃO

Gustavo Maia Gomes
Acabo de ler no espaço de meu primo e dileto amigo professor André Maia Gomes Lages: “informações não oficiais dão conta de que os galetos estão em falta em alguns pontos de Maceió”. Na continuação, ele explica: “as exportações causaram tal situação conjuntural”.
Minhas fontes secretas dizem outra coisa. Os galetos não estão em falta. Estão em greve. Preparam uma revolução. São contra morrer jovens para alimentar os alagoanos que, até outro dia, viviam felizes comendo sururu. Atribuem seus males à luta de classes, à exploração da galinha pelo homem, ao capitalismo financeiro internacional.
Têm um líder: Primo Canto. E um guia espiritual. Nada de Marx, Engels, Lênin, Stalin, Gramsci, Dirceu ou Dilma. Olavo de Carvalho. Só ele diz coisas que os galetos entendem. Banqueiro é comunista. Soros quer destruir o capitalismo. Bill Gates defende a dialética. Weintraub é ministro da Educação.
Galetos unidos jamais completarão esta frase dizendo aquela idiotice que estamos todos cansados de ouvir.
Viva a Revolução!

LUÍS ALÍPIO E SEUS AMIGOS

Aos meus parentes baianos Sulamita SiqueiraAmazonina PereiraAlipio MaiaRafael MuricyMarília Muricy (deve haver outros, que me desculpo por não citar), todos descendentes de Alípio Maia Gomes (1878-1916).
Luís Alípio (Gomes) de Barros (1922-91) foi um jornalista nascido em Alagoas que fez carreira no Rio de Janeiro. Era sobrinho de Alípio e, com certeza, seu nome foi escolhido para homenagear o tio precocemente falecido em Santo Amaro, Bahia, onde morava.
Sobre Luís Alípio e seus amigos celebridades nacionais e internacionais já escrevi bastante neste espaço. (Ele terá um capítulo no meu próximo livro, "Uma noite em Anhumas", ainda sendo escrito.)
Agora, lendo Samuel Wainer (1912-80), "Minha razão de viver: Memórias de um repórter" (1987) deparo-me com esta foto do sobrinho de meu avô Nominando Maia Gomes em companhia de Wainer (um dos jornalistas brasileiros mais importantes na segunda metade do século XX) e de Nelson Rodrigues, que dispensa apresentações.
Fica o registro, também dedicado à sua filha Ana Catharina Mcgregor, que mora no Rio de Janeiro, e à viúva Maria Ivanira Teixeira Gomes de Barros.

THÉO DO RISO FRANCO

Gustavo Maia Gomes
Ele fez um ano. (Na minha opinião de historiador, amante dos tempos longos, isso não devia ser permitido a crianças tão novas.) É calmo. A mãe dele acha bom. Eu, também.
Calmo, mas participante. Reage às brincadeiras; convida-nos a continuá-las; emite uns sons quando provocado. Sobretudo, gosta de frutas: não trocaria uma goiaba madura nem por todos os ratos daquele lugar horroroso aonde os filhos são levados porque seus pais querem ir.
Antes, para mim, seu nome evocava o irmão de Vincent, que sustentou material e espiritualmente o pintor meio gênio, meio louco. A partir desse domingo, foi promovido a Théo da alegria. Théo do interesse no mundo à sua volta. Théo da minha filha querida. Théo do riso franco.

PRESOS E SOLTOS

Gustavo Maia Gomes
Basiliano vende um galo de campina, um patativo, um curió, um canário, um extravagante, um caboclinho e um sofreu amarelo. “Sofreu” é o concriz; de extravagantes, nunca tinha ouvido falar.
Eu ia dizer: “corram, pois o estoque é pequeno”, mas percebi que o anúncio foi publicado em Pilar, no interior alagoano. Muito longe daqui. E apareceu em 1874. Os canarinhos, curiós, caboclinhos já devem ter morrido.
Meu pai tinha pássaros em gaiolas, apreciava seu canto. Canários, sabiás, rolinhas, xexéus, concrizes, guriatãs, galos de campina, azulões, ferreiros, patativas, papa-capins... O Ibama fique tranquilo, isso foi há cinquenta anos.
Sempre gostei de pássaros. Mas, soltos. Hoje, aparecem no Alto do Céu sabiás, bem-te-vis, sibites, garrinchas, sanhaços, rolinhas, frei-vicentes... Jandaias passam por alto, sem pousar. Também há gaviões ocasionais.

AÇAÍS DA ESPERANÇA

Gustavo Maia Gomes
Há 16 anos, quando Lourdes e eu viemos morar no Alto do Céu, cercamos com buganvílias o terreno da nossa casa. Elas cresceram mais que o previsto, até subindo em telhados alheios. E ainda brigam entre si pelo pouco espaço disponível.
Então percebemos que nem todas as buganvílias são igualmente fortes. Roxas invadem o espaço das amarelas; brancas triunfam, vermelhas sucumbem. Para assegurar seu direito ao brilho, tivemos de ajudá-las podando as rivais.
Mas, nem só de buganvílias vive o mundo. Apreciamos pincelar o verde com outras plantas de cores diferentes. Um painel de jiboias amarelas alto de seis metros, largo de quase dez é, talvez, o ponto alto do nosso jardim.
Elas foram plantadas em 90 cestas penduradas. O detalhe importa. Se os ramos da jiboia descem, suas folhas não mudam de tamanho; se sobem, (os das plantadas no chão, por exemplo), elas aumentam, produzindo efeitos diferentes.
Exigentes, as flores gostam, quase todas, de muito sol, fator escasso em jardins cercados de buganvílias, plantados à sombra de árvores. Recusam-se a aparecer se a terra não é boa, a irrigação inadequada ou a fertilização insuficiente.
Mas, se bem tratadas, na hora certa, desabrocham. Aqui temos jasmins com cheiro e sem cheiro; brancos e vermelhos, orquídeas várias, e tantas outras cujos nomes nem sabemos... Samambaias, também merecem registro especial.
E os açaizeiros trazidos por Lourdes de Belém? Palmeiras belíssimas, que alcançam dez ou doze metros, crescem em silêncio. Algum dia, por causa deles, sonhamos atrair alguma ONG dessas boazinhas para nos financiar.
Se esse não for um sonho sustentável, pouco importa. Desfrutar de jardins é uma das coisas boas da vida. Eles dão trabalho e custam caro. Mas, devolvem com sobras, em prazeres de quem os aprecia, cada minuto e centavo gastos.

PROXIMIDADE LONGÍNQUA

Gustavo Maia Gomes
Alagoanos, ambos. Conhecidos, sim; amigos, não. Nem poderiam. Graciliano Ramos (1892-1953) odiava a classe à qual Benon Maia Gomes (1901-48), filho de usineiro, dono de terras, pertencia ("Memórias do Cárcere", v. 1, pág. 32).
Duplamente primo de meu pai, Benon, além de agricultor e sócio da Usina Campo Verde, foi engenheiro agrônomo, chefe do "Serviço do Algodão" em Alagoas, depois renomeado “Serviço das Plantas Têxteis”.
Graciliano, até 1933, escrevia romances secretos e relatórios públicos. Para viver, foi comerciante, prefeito de Palmeira dos Índios, diretor da Imprensa Oficial e da Instrução Pública de Alagoas. Isso tudo antes de se mudar para o Rio de Janeiro.
Descobri evidências – duas delas, na imprensa; a terceira, nas memórias do escritor – de que Benon e Graciliano se encontraram (ou estiveram programados para se encontrar), em Maceió, algumas vezes. Dentre elas:
(1) Em setembro de 1931, na despedida ao poeta Aloísio Branco, que ia morar no Rio de Janeiro. Não sei se o jantar (“de caráter íntimo”), efetivamente, aconteceu, mas, um dia antes, os organizadores contavam com as presenças de Jorge de Lima, José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda, Rui Palmeira e Valdemar Cavalcanti, além de Graciliano e Benon e outros.
(2) Em janeiro de 1935, quando os dois foram nomeados pelo interventor federal em Alagoas para, em comissão, “estudarem a aplicação das conclusões [do Congresso de Ensino Regional, realizado na Bahia] na organização do ensino em Alagoas”. Tampouco posso garantir que a comissão tenha mesmo chegado a se reunir, embora isso seja provável.
(3) Em março de 1936, quando Graciliano, preso por razões políticas, era conduzido no trem da Great Western de Maceió para o Recife. Este encontro, registrado em três passagens das “Memórias do Cárcere” (págs. 31-32, 61 e 67-68, vol. 1) não foi amistoso.
Ao relatar o desagradável episódio, Graciliano recorda que Benon o visitava na Imprensa Oficial, onde ele (o escritor) "bocejava a olhar, sob um telheiro próximo, um homem que enchia dornas e uma mulher que lavava garrafas" (pág. 31).
Os textos e respectivas legendas reproduzidos em anexo contam um pouco mais dessas histórias.
Referência: Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere”, Rio de Janeiro, Livraria Martins Fontes, 4ª. Edição, 2 vols. 1960.

CARLOS RELEMBRA

Gustavo Maia Gomes
Quatro décadas depois de deixar União (desde 1943, União dos Palmares, AL), o advogado, jornalista e escritor Carlos Povina Cavalcanti (1898-1974) foi, em 1969, rever a cidade onde nascera. Depois, relembrou a infância num livro precioso para quem, como eu, gosta das histórias dos primeiros anos 1900 (e de outras épocas, também) nos rincões canavieiros.
Ainda mais quando essas histórias envolvem personagens de livros meus. É o caso: em Maceió, Povina foi recebido por Antonio Gomes de Barros (1915-76); em União, ele circulou guiado por Mariá Sarmento (1898-1974). De ambos, em “Uma Noite em Anhumas”, contarei episódios da vida, embora apenas Antonio seja meu parente.
Carlos relembra nomes de ruas palmarinas aos quais a gente se afeiçoava – como os das ruas recifenses antigas, que encantaram poetas. Em União, “a Rua do Comércio [hoje] tem outro nome: Correia de Oliveira, cronologicamente, o primeiro poeta [local]” (pág. 11); “a Rua da Fábrica era assim chamada porque uma companhia inglesa explorava o fabrico de óleo extraído do caroço de algodão” (pág. 24).
“A casinha ficava além da Rua do Carvão, numa elevação sombreada por altos castanheiros” (30). “Meu pai, (...) adquirira a casa da Rua do Virador” (32). Corria “a notícia de que a Chiquinha Máximo era mula-de-padre: [à] meia-noite, abandonava sua palhoça da Apertada Hora e demandava o caminho do cemitério, chocalhando guizos” (36). Havia a Rua do Cangote Liso (37); a das Cordas, em que moravam as mulheres da vida (52); a do Boi, próxima de onde um bando de ciganos acampou (54).
Ciganos, sim: “Tendas de lona, mulheres vestidas de pano multicor, argolas, brincos, colares de várias voltas envolvendo o pescoço, um lenço de seda na cabeça” (55). Espíritos também havia, em União. Os Cavalcanti foram morar em “um casarão de esquina, com grande quintal. (...) Meus pais ouviram que [a casa] era mal-assombrada, mas não não deram a menor atenção aos boatos”. Exceto por mandar “cortar o enorme pé de maracujá [pois] aquela planta (...) atraía maus olhados” (16). Na dúvida, duvide.
Superstições: “uma ave agourenta, [a] rasga-mortalha, quando, em noite escura, desferia seu canto, imitando o rasgar de um pano, até os adultos se benziam” (36). E o corcunda Vilela? “Meu pai me aconselhou que o evitasse: – É o sujeito mais azarento do mundo. Seu olhar fulmina como um raio; seus fluidos magnéticos têm um poder de morte irresistível” (37). Coitado do Vilela: ninguém lhe devia dar sossego. E o “preto velho, cachaceiro inveterado, mas inofensivo, que bebia até cair na rua”? (39) Era o Casemiro.
A feira, as comidas, as festas, os banhos de rio, os meses de Maio, as festas da padroeira, os pássaros, os poucos ricos, os muitos remediados, os pobres, as cavalhadas, quilombos e paus-de-sebo, a escola primária, a palmatória, o peru do Natal embebedado com aguardente, o “costurar-pra-fora”, o cavar botija, o primeiro palmarino padre... Tudo isso União tinha.
Chega! Em uma página, não posso fazer jus a 180 outras, bem escritas e ricas em conteúdo. Para quem quiser desfrutar de mais histórias da velha União, o livro de Povina Cavalcanti ainda pode ser adquirido num sebo virtual – essa oitava maravilha do mundo. Foi o que eu fiz, sem arrependimentos.
(Referência: Povina Cavalcanti, “Volta à Infância: Memórias”. Rio de Janeiro, Editora José Olympio / Instituto Nacional do Livro, 1972.)

IGARASSU

Gustavo Maia Gomes
Fomos, ontem, Lourdes e eu, a Igarassu (Litoral Norte, PE) admirar mais uma vez a beleza do seu acervo arquitetônico. Anotamos o estado de conservação (em geral, bom) dos prédios históricos. Também louvável é a limpeza das ruas. Digo isso com satisfação, tantos são os exemplos negativos que temos visto por aí.
Por outro lado, tivemos que lidar com potenciais ameaças à segurança. Num caso, um sujeito com cara de mau dirigiu-se para onde havíamos estacionado o nosso carro. (Achamos prudente tirar o veículo dali.) Mais à frente, lemos no muro de uma casa que o seu proprietário já tinha sido assaltado cinco vezes.
Somando tudo, surge um paradoxo. A despeito da história multissecular, do acervo arquitetônico invejável, da localização tão próxima ao Recife, Igarassu não recebe um número compatível de visitantes. Para ser sincero, Lourdes e eu não vimos um só turista transitando pelo centro histórico, ontem. E era um domingo ensolarado.
Igarassu “é considerado o primeiro núcleo de povoamento do país” (IBGE). Foi onde Duarte Coelho (1485-1554), escolhido dono do lugar pelo Rei João III (1502-57), de Portugal, iniciou seus trabalhos de colonizador, em 1535.

A área era habitada por índios caetés que, nem um pouco satisfeitos com a chegada dos europeus, opuseram-lhes forte resistência. Foram vencidos. Em 1537, Duarte Coelho fundou a Vila de Igarassu, cujo nome significa “canoa grande” (IBGE).
Fundar uma vila significava erigir o prédio da cadeia pública e construir conventos e igrejas. Uma, duas, três, quatro, cinco... quantas igrejas suportassem os parcos orçamentos locais, aplicados quase exclusivamente nesses projetos.
Nos seus 482 anos de existência, Igarassu viveu episódios eletrizantes. Seus moradores foram, em alguns casos, perseguidos pelos holandeses, que puseram fogo na então Câmara e Cadeia (1632), hoje Sobrado do Imperador. Seu convento franciscano de Santo Antônio abrigou os líderes da Revolução Praieira (1848). Sua igreja matriz, dedicada aos santos Cosme e Damião, carrega a fama (subscrita pelo IBGE, embora alguns contestem isso) de ser a mais antiga do Brasil.
Todos esses prédios ainda estão lá, para o desfrute de quem valoriza a História e a Arquitetura. E, no entanto, os mesmos pernambucanos que se atropelam nas filas do Consulado Americano mendigando permissão para uma viagem demorada, cara e insensata à Disneyworld, muitas vezes, nem sequer sabem que Igarassu existe, embora a cidade fique meros 30 km distante do Recife.

DORIS DAY NO AMAPÁ

Gustavo Maia Gomes
Em meados dos anos setenta, morando em São Paulo, eu trabalhava na Copersucar, a cooperativa dos usineiros. A empresa chegou a ser a maior do Brasil, em faturamento, entre 1972 e 1974.
Formávamos um time maravilhoso, de gente competente e amiga como Julio Maria Borges, Norberto Antônio Batista, Akio Tanaka, José Santana, Diogo Galhardo, Reinaldo Alcântara, Roberto Moura Campos e outros, comandados por Marcio Diniz Gotlib. (Claudio Peçanha entrou pouco depois.)
O que me fez lembrar disso agora? A morte de Doris Day.
Explico.
Um dia, fomos surpreendidos pela presença de Fernando (Coutinho, se bem me lembro) entre nós. Tinha sido advogado da Icomi, empresa mineradora de manganês no Amapá. Acho que foi contratado para agradar algum poderoso em Brasília. Na Assessoria Econômica, não teria muito a fazer. Ou nada. Nem estava ali para isso. Grande contador de histórias, com frequência, tomava horas de nosso tempo relembrando casos como este de Doris Day no Amapá.
Certa manhã, estando na sua sala da Icomi, ele foi chamado com urgência ao cartório da cidadezinha próxima, pois um trabalhador da mineradora estava no local, perturbadíssimo, ameaçando agredir o homem que o atendera.
— Qual é o problema? — falou Fernando, ao chegar.
— Pergunte ao seu funcionário — respondeu o tabelião.
Foi o que fez. O operário humilde, semianalfabeto, logo reconhecido pelo advogado, parecia outra pessoa de tão irado:
— Eu quero registrar minha filha como Doris Day e eles não deixam.
Absurdo, pensou Fernando: se ele quer que a filha se chame Doris Day, como pode o cartório impedi-lo? E foi ter com o tabelião, de quem ouviu uma explicação simples:
— O homem já tem uma filha Doris Day registrada aqui mesmo.
Fernando retornou, então, ao pai indignado, na esperança de convencê-lo a escolher outro nome para a menina.
— Mentira dele, dotô, minha primeira filha é Doris Dái. Esta, eu quero que seja Doris Dei!

BURRICE TEM LIMITE?

Gustavo Maia Gomes
O presidente faz declarações desastradas, uma após a outra; submete-se a um pseudo-filósofo, cujo linguajar remete ao baixo meretrício. Um ministro da Educação idiota sucede outro retardado mental e vai à Câmara agredir os deputados, de quem o governo precisa para aprovar suas propostas.
Filhos do presidente, promovidos a eminências pardas, agem como sabotadores. Sem qualquer necessidade, abrem-se, ao mesmo tempo, várias frentes de luta, aglutinando os inimigos. Criando inimigos! Promove-se agressão indiscriminada à Universidade, onde há pessoas de todas as posições políticas e variados méritos acadêmicos.
Com tudo isso (e mais o que me dispensei de relembrar), o governo conseguiu, entre outras coisas, provocar protestos de multidões vermelhas -- não quero dizer que tenham sido apenas petistas --, até ontem, silenciadas pelo repúdio nacional às práticas corruptas e administração desastrosa de seu principal partido.
Rotular de idiotas todos os manifestantes -- como fez o presidente --, além de ser ofensivo, tira a legitimidade das multidões anteriores, cujos protestos foram um dos elementos que levaram à eleição do Sr. Bolsonaro.
Se permanecer assim, ele pode dar adeus à reforma da Previdência, ou a qualquer outra. E, como não parece ter nada mais a propor (o pacote anti-crime morreu antes do parto), apenas lhe restará assistir à caminhada de seu governo para um fim prematuro e melancólico. O triste fim de Policarpo Quaresma.
Há o real perigo -- seria, realmente, uma tragédia -- de que isso tudo nos traga de volta a quadrilha petista. Aí eu me pergunto: burrice tem limite?

POR QUE VIÇOSA FOI ESPECIAL?

Gustavo Maia Gomes
Uma vez, lancei aos meus alunos de História do Pensamento Econômico – deve ter sido em 2007, ou 2008 – o seguinte desafio:
– Por que a Grécia Clássica, na verdade, a civilização helênica, produziu tantos filósofos?
As razões não foram econômicas: se Atenas foi rica, Roma foi mais. Nem geográficas: se havia algo especial naquelas terras de Tales, Pitágoras e Aristóteles, teria deixado de haver, desde então? O mar continuou o mesmo, as costas escarpadas, o calor e o frio, as terras áridas ou férteis... Os filósofos, contudo, desapareceram.
Teriam sido razões culturais? Talvez, mas a hipótese não nos leva muito longe. Apenas troca a pergunta: por que, então, essa cultura especialíssima, incubadora de gênios, desenvolveu-se na Grécia e em seu mundo e somente lá? Não em Roma, no Egito, Japão, China.
Arrisco-me a dizer que a melhor resposta está num fator não-econômico, não-geográfico, não-cultural. Os gregos antigos tinham uma genética única, uma propensão à genialidade inscrita no sangue, nos nervos, nos ossos, nalguma parte do corpo. Só pode ter sido isso. (É claro que se poderia perguntar: por que eles, não os vizinhos? Mas, neste ponto, passo a bola para biólogos, fisiologistas, neuro-cientistas ou quem mais entenda do assunto.)
Ao redigir o capítulo sobre Viçosa (AL) de “Uma Noite em Anhumas”, meu próximo livro, experimentei o choque de descobrir naquela cidade, na primeira metade do século XX, uma quantidade enorme de homens intelectualmente brilhantes. (Muitas mulheres devem ter sido tão ou mais inteligentes do que seus maridos e irmãos, mas deixaram poucos registros públicos disso. Tributo a uma cultura que as oprimia.)
– Por que Viçosa foi especial?
Porque aquela gente tinha um parafuso a mais. Manuel Neném – analfabeto, maior cantador do Nordeste –; os josés Pimentel de Amorim e Maria de Melo, médicos, escritores; os Brandão: Manuel, Alfredo, Aloísio, Théo, folcloristas; Octavio, quase um Lênin brasileiro; Teotônio, senador, Avelar, padre.
Filhos de uma cidade canavieira igual a tantas outras, eles atingiram níveis intelectuais, políticos, religiosos superiores. Alcançaram reconhecimento nacional. Ganharam prêmios em São Paulo, no Rio de Janeiro. Publicaram livros, fundaram museus, academias, venceram eleições, comandaram a redemocratização. Um virou o cardeal primaz do Brasil.
Em Viçosa – como em nenhum outro lugar – a civilização do açúcar descolou-se do engenho, do localismo imbecilizante, para alçar voos impensáveis. Nem Gilberto Freyre acreditaria que isso pudesse acontecer. Ter acontecido.

THÉO ENCONTRA ÉLIDE

Gustavo Maia Gomes
A forte atração pelos folguedos populares, principalmente os encenados nas casas-grandes das fazendas, levava o menino Théo Brandão a deixar Maceió nas férias escolares para ficar com o tio, Olegário Vilela, no engenho Boa Sorte, em Viçosa (AL).
Foi numa dessas férias que ele conheceu Élide Bahia de Almeida. Era o carnaval de 1921 e Théo estava com o amigo Djalma Loureiro quando avistou uma moça fantasiada de Pierrô Negro prestes a entrar no único cinema da cidade. Perguntou:
– Djalma, quem é aquela menina?
– Por que você quer saber?
– Estou achando-a tão bonita.
– Eu também acho, mas ela é danada –, disse o amigo, revelando ciúmes.
Théo fingiu não entender e começou a namorar Élide, filha de Olímpio Almeida, comerciante, e de Aládia Bahia de Almeida, a quem meu pai, Mauro Bahia de Maia Gomes, sempre se referia como “Tia Mocinha”. Os primeiros encontros ocorreram na pracinha de Viçosa. Mas, as férias terminaram e o rapaz retornou a Maceió, enquanto Élide foi enviada para o Recife, a fim de estudar em regime de internato.
Restou-lhes trocar cartas e se verem muito pouco, no longo período (1924-29) em que Théo esteve na Bahia e no Rio de Janeiro cursando e se formando em Farmácia e em Medicina. Terminado o curso médico (1929), o agora doutor estava de novo em Alagoas. Foi procurar o pai da namorada, que então morava na Praça Sinimbu (região central de Maceió), numa casa ainda existente que eu visitei mais de uma vez. Queria tratar do casamento. Mas, ouviu isso:
– Meu jovem, quando uma filha minha entra nos estudos, só sai depois de formada.
E então, sem confrontar o futuro sogro, mas para ficar perto da noiva nos fins de semana, Théo montou consultório no Recife e aqui trabalhou (1930-32), até que Élide concluiu sua instrução formal no Colégio Nossa Senhora do Carmo. O casamento foi realizado na Igreja do Livramento, em Maceió (1935).
Tiveram quatro filhos: Walter, Vólia, Vera e Válnia. Theotonio Vilela Brandão faleceu no dia 29 de setembro de 1981. (Tinha nascido em 1907.) Élide viveu mais alguns anos (ainda não consegui saber quantos), continuando a morar no sítio do casal na praia de Jatiúca, Maceió.
PS. Élide faleceu em 1992, segundo me informou nos comentários sua neta Vólia Brandão de Lavanère Machado.
Referência:
“A forte atração pelo folclore o levou a conhecer a esposa Élide”, Tribuna de Alagoas (Especial Théo Brandão), Maceió, 26/1/1982. Em Arquivo Digital do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

ALOÍSIO

Gustavo Maia Gomes
José Aloísio Brandão Vilela (1903-76) – um dos quatro folcloristas da “Escola de Viçosa” (AL) que deram fama à cidade, em meados do século XX – foi um intelectual diferente. Pesquisou muito; publicou pouco. Mas foi amplamente considerado profundo conhecedor dos assuntos que lhe interessavam.
Morreu na madrugada de 4 de setembro de 1976, em acidente de carro nas imediações de Arapiraca (AL). Seu irmão Teotônio Vilela (1917-83), senador de Alagoas, líder da luta pela redemocratização, escreveu: “[Aloísio] tinha pela cultura popular uma obsessão quase mística”. E disse mais, no mesmo “Boletim Alagoano de Folclore” (1977-1, edição em memória de José Aloísio Vilela):
“Caçava as manifestações de inteligência por toda a parte. Nas festas de rua, nos pagodes, nos desafios à viola entre cantadores, nos reisados, cheganças, guerreiros, nos pastoris, no coco das Alagoas, nas cavalhadas, na roda de Zé Rubina, no cego cantando toada, no aleijado tocando reco-reco, nas narrativas dos ex-cabras de Lampião e Antônio Silvino, na fé dos romeiros do padre Cícero, na admiração popular aos oradores políticos”.
Dentre os poucos livros que José Aloísio publicou em vida, o mais conhecido é "O Coco das Alagoas: Origem, evolução, dança e modalidades" (1961). No respectivo prefácio, assim falou Luís da Câmara Cascudo (1898-1986): "Alagoas, (...) pode apresentar um autêntico recriador da ciência coletiva, alma clara e ampla para onde convergem, bramindo e sonhando, as águas vivas do folclore alagoano, um José Aloísio Vilela, meu compadre pela graça de Deus e unânime aclamação dos povos".
Incluo nesta postagem dois conjuntos de fotos. O primeiro é do acervo familiar preservado desde o tempo de meus avós Nominando Maia Gomes e Josefa (Maninha) Bahia. Este contém fotos com dedicatórias de José Aloísio, de Laura Bahia (sua mulher, irmã de Josefa) e de três de seus filhos. O segundo, copiado do “Boletim Alagoano de Folclore”, inclui flagrantes da vida pública de José Aloísio.

CASAMENTOS NA COZINHA

Gustavo Maia Gomes
“Comes e bebes no Nordeste”, do pernambucano Mario Souto Maior (1920-2001), vai muito além de um dicionário de alimentos legitimamente regionais. Relaciona em ordem alfabética as comidas destas bandas do Brasil, sim, e nisto parece um dicionário, mas também dá muitos outros detalhes e explicações a respeito de cada prato ou copo, qualificando-se, portanto, como uma obra de sociologia.
Até meados do século XX, nas famílias proprietárias de terra, assim como naquelas de classe alta ou média urbana (chefiadas, talvez, por um bacharel em Direito) da sociedade canavieiro-açucareira nordestina, uma moça tinha três modelos de vida adulta dentre os quais escolher, ou ser forçada a seguir: (1) casar-se, (2) virar a tia solteira que acompanhava os pais na velhice e ajudava as irmãs casadas a criar os filhos, e (3) entrar num convento.
Algumas moças, é verdade, decidiam seguir carreiras profissionais – Nise da Silveira (1905-99) e Lily Lages (1907-2003), alagoanas, foram médicas. Mas eram uma ínfima minoria. A opção preferencial era mesmo casar. E, uma vez casadas, manter o casamento. Para tanto, havia receitas culinárias que podiam ajudar, como a do doce Amarra Marido.
“Batem-se as claras de seis ovos até o ponto de suspiro. Juntam-se, então, as gemas, dois pires de batatas doce cozidas e machucadas, um pires raso de farinha de trigo, uma colher de sopa de manteiga, um copo de leite de vaca, uma pitada de canela em pó e açúcar até adoçar. A forma [de ágata, para o doce não ficar preto] deve ser untada com manteiga e levada ao forno regular” (pág. 25 da 2ª edição, 1985).
Explica Souto Maior: “uma mulher que, além das qualidades próprias de seu sexo, soubesse fazer pratos gostosos tinha maiores possibilidades de segurar seu marido” (idem).
Havia também o bolo Engorda Marido, uma receita já antes recolhida por Gilberto Freyre: “Doze ovos batidos como para pão-de-ló, 500 gramas de farinha de trigo, 500 gramas de manteiga, leite de dois cocos espremidos em um pouco de água morna e uma colher de chá de canela em pó. Vai ao forno em forma untada de manteiga” (Souto Maior, pág. 39).
“Há umas três décadas atrás”, acrescenta o autor, “quando a mulher nordestina era exclusivamente de prendas domésticas (...) procurava (...) enfeitar a mesa com pratos diferentes, guloseimas tentadoras, verdadeiros pecados de gula para o marido e os filhos” (idem).
E tome bolos (Iaiá, milho seco, Cabano, de amor, de bacia, à moda de Pernambuco, de batata doce, de caroço de jaca, de castanha de caju, de coco, de coco Sinhá-Dona, de fruta-pão, de macaxeira, de mandioca, de mel de engenho, de milho verde, de milho seco, de nata, de Rolo Pernambucano, de São João, de um ovo só, do Diabo, de massa de mandioca, Manuê, ouro e prata, pão-de-ló, Padre João, paraibano, Pé de Moleque, Pé de Moleque com rapadura, Perna de Moça, Souza Leão, Tia Sinhá, 13 de Maio... (págs. 34-42)
As mulheres não paravam por aí. Depois dos bolos, tratavam de manter filhos e maridos felizes e gordos com os doces: de abacaxi, abacaxi em calda, abacaxi cristalizado, araçá, banana em rodinhas, batata doce, caju, carambola, coco, gergelim, goiaba em lata, goiaba em calda, guabiraba, jaca-dura, jaca-mole, jerimum, laranja da terra, de leite, de leite com ovos, limão, mamão à moda sertaneja, manga, mangaba de Pernambuco, maracujá, sapoti, umbu, japonês, quebra queixos... (págs. 55-62)
Se eu ainda tivesse espaço aqui, diria para vocês de quantos desses bolos e doces já experimentei na vida. Não foram poucos.

"ME INCLUAM FORA DISSO"

Gustavo Maia Gomes
Estou farto de expressões pedantes, muitas delas mal traduzidas do inglês, cada vez mais repetidas. Deus me livre de "pensar fora do quadrado"; ninguém espere de mim "dar o meu melhor"; nem me ouvir falar em "zona de conforto".
Quem está louco para "pensar fora do quadrado" é Lula; quem todo dia "dava o seu melhor" se batendo contra a polícia era Lolita, tipo popular pernambucano; de "zona de conforto", quem entende é marinheiro desembarcado.
Não sou contra a assimilação no linguajar formal ou informal de palavras ou expressões estrangeiras. Só que nem todo estrangeirismo se justifica. Alguns são, realmente, insuportáveis. Deveríamos evitá-los.
Sim, "futebol" é melhor do que "ludopédio"; "show", mais simples do que "exposição". Quem tem uma palavra para substituir "feedback"? Enquanto você escreve "correio eletrônico", seu concorrente já enviou três "e-mails".
Aborrece-me o pedantismo macaqueado por gente que não pensa, nem com caixa, nem sem caixa. O último jogador de futebol que disse ter "dado o seu melhor" na partida tinha acabado de fazer um gol contra. Na "zona de conforto" estava o técnico do mesmo time, dois minutos antes de ser demitido.
Eita, esqueci do tal "núcleo duro". Mas, já escrevi aqui mesmo, faz um ano, talvez: núcleo duro é caroço!

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Opiniões sobre Manoel Neném, "o maior cantador do Nordeste"


Gustavo Maia Gomes
Tendo participado como julgador – provavelmente, no Rio de Janeiro – de festival de cantadores e repentistas nordestinos, Manuel Bandeira compôs estes versos, parte de um poema mais extenso:
Saí dali convencido
Que não sou poeta, não;
Que poeta é quem inventa
Em boa improvisação [1]
Ignoro que festival foi aquele, nem isso importa muito. Pode ter sido o de 1960, sobre o qual Théo Brandão escreveu “O cantador que faltou”, no Diário de Notícias (RJ), explicando: “Reporto-me a Manuel Floriano Ferreira, ao velho Manuel Neném, de quem Aurélio Buarque de Holanda divulgou em 1939 (...) os repentes extraordinários que causaram admiração nos meios intelectuais do Brasil”. Neném, “nascido em Bom Conselho de Papacaça, Pernambuco, mas radicado desde novo em Viçosa, Alagoas, (...) sempre se declarou viçosense”, depõe o historiador Frederico Pernambucano de Melo.
Volto a Théo Brandão:
[Manuel Neném] não era cantador como os de hoje, afeitos aos grandes auditórios de rádios e televisões, que falam linguagem correta e nunca rimam pé macho com pé fêmea. Não, Neném era um poeta rude, trabalhador agrícola que ainda hoje o é e que cometia erros imperdoáveis, cantava versos errados e sem sentido mas que, de súbito, em duas ou três estrofes, redimia-se inteiramente e alçava-se aos voos mais puros e admiráveis da poesia repentista.[2]
E, de novo, Frederico Pernambucano de Melo: “a edição de 28 de junho de 1938 da Gazeta de Alagoas (...) dava notícia da cantoria ocorrida em casa de Theo Brandão”. No centro da festa regional, prossegue, estava “o poeta e repentista Manoel Neném, nome artístico de Manoel Floriano Ferreira”. E ainda: “a frequência à casa de Brandão [em Maceió] depõe a favor da qualidade de quem era considerado ‘o melhor cantador do sertão alagoano”, como o apresenta a folha. Que diz ter o poeta versejado por três horas, fazendo louvores aos presentes, cantando a história de Lampião, improvisando uma interessante história do mundo...”[3]
Até meia noite, ouviram-se os aplausos de José Aloísio Brandão Vilela [casado com Laura Bahia, tia de Élide Bahia, esposa de Théo], de Eloy e de Manoel Brandão, do padre Diégues Neto, de Jacques Azevedo, de Nominando Maia Gomes [meu avô paterno; sua mulher era tia de Élide], de Freitas Cavalcanti, de Humberto Bastos [economista e jornalista, fez carreira no Rio de Janeiro], de Aurélio Buarque de Holanda [dicionarista], de Olympio de Almeida [sogro de Théo], de Joaquim e de Manuel Diégues Jr. [sociólogo, pai do cineasta e membro da Academia Brasileira de Letras Cacá Diégues][4]
Trabalhador agrícola, “poeta rude”, Manoel Neném era analfabeto. Expressou isso, uma vez, de forma a não deixar dúvidas:
Sou cantador atrasado
E meus erros ninguém note
Eu só canto porque Deus
Foi quem me deu este dote
Mas eu só conheço um O
Devido à boca do pote [5]
Gostava de cantar, certamente, mais do que do trabalho na terra:
A viola é minha cruz.
Tou crucificado nela
Enquanto eu vida tive
Eu não deixo o braço dela
Eu sou dela e ela é minha
Ela é minha e eu sou dela [6]
“Qual será, no meio de tantos cantadores o maior de todos”, perguntava, em 1947, José Aloísio Brandão Vilela. E respondia: “Manoel Neném é o maior cantador do Nordeste”. Opinião de quem entendia do assunto. “Basta se fazer um estudo comparativo entre a sua poesia e a dos outros cantadores para se notar a enorme diferença”, dizia o folclorista de Viçosa.
Os seus repentes são originais, as suas imagens são deslumbrantes, a sua veia poética é inesgotável. E além de tudo é o poeta matuto que mais se volta para os motivos regionais. Suas imagens são tiradas do ambiente em que vive, suas comparações palpitam de um forte e delicioso nativismo. Há momentos em sua cantoria em que ele se transfigura e atinge, pela naturalidade e pela expressão, os elevados domínios da poesia pura.[7]
As cantorias de Manoel Neném, como toda boa literatura, não importa se oral ou escrita, exprimem de forma bela, envolvente, emocionante, a realidade de seu meio. Como nestes versos, recolhidos por José Aloísio Brandão Vilela:
Criei-me sem pai nem mãe
No meio deste sertão
Andando de déo em déo
Fui criado, meu patrão,
Com o sol e com a chuva
Como as ramas do algodão [8]
E, finalmente, um último depoimento, o de Aleixo Leite Filho, publicado em 1983: “Manoel Neném, apesar dos noventa e três anos e de paralisia recente que o prende à cama, continua lúcido e capaz de improvisar, como o fez recentemente, glosando o mote ‘Adeus até outro dia’ com que um companheiro mais moço se despedia dele”.[9]
Eis o improviso:
Estou quase de ida,
Pra ir pra eternidade
Já estou sentindo a saudade
Da hora da despedida;
É breve minha partida,
E parto sem companhia;
Eu vou fazer poesia
Pra os anjos celestiais
E você não me vê mais
Adeus até outro dia [10]
Manoel Floriano Ferreira, o célebre Manoel Neném de Viçosa deve ter morrido pouco depois disso. Desde meados do século XX, ele, que havia nascido em 1894, já mostrava sinais de que os anos não lhe haviam passado sem cobrar seu preço.


[1] Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro, 25ª ed., 1993, págs. 256-57.
[2] Théo Brandão, “O cantador que faltou”, Diário de Notícias (RJ), 1/5/1960. A citação anterior é de Frederico Pernambucano de Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[3] Frederico Pernambucano de Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[4] Frederico Pernambucano de Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[5] Cf. Manuel Diégues Jr. “Poetas que nascem feitos: Os cantadores do Nordeste”. Américas, 1958, em http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=cdu&pagfis=10395
[6] Cf. Théo Brandão, “O cantador que faltou”, Diário de Notícias (RJ), 1/5/1960.
[7] “A vida dos cantadores” (publicado originalmente em 1947), em José Aloísio Brandão Vilela, Coletânea de assuntos folclóricos, Maceió, Museu Théo Brandão, 1982, pág. 39.
[8] Cf. “A vida dos cantadores” (publicado originalmente em 1947), em José Aloísio Brandão Vilela, Coletânea de assuntos folclóricos, Maceió, Museu Théo Brandão, 1982, pág. 39.
[9] Aleixo Leite Filho, “O glosador genuíno”, Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, 1983, nos 35-36, em http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/Boletim%20de%20Folclore/boletim%20folclore/BFC1983DEZ035-036.pdf Acesso em 6/5/2019.
[10] Cf. Aleixo Leite Filho, “O glosador genuíno”, Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, 1983, nos 35-36, em http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/Boletim%20de%20Folclore/boletim%20folclore/BFC1983DEZ035-036.pdf Acesso em 6/5/2019.