sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Bolinha de Cambará


Gustavo Maia Gomes
Recife, 11-1-2019

Bolinha de Cambará, em foto publicada no
Diário de Pernambuco, em 28/4/1974


– “Seu” Gilberto Freyre, o senhor quer bolinha de cambará, sinhozinho?

– Entra, Bolinha de Cambará. Madalena, uma cadeira pro Bolinha descansar.

O diálogo foi reproduzido por Reinaldo Belo (Diário de Pernambuco, 16/4/1972). Era assim, continua o jornalista, “fácil, fácil, que Manuel Vicente de Lima [o Bolinha de Cambará] tinha acesso às casas mais ilustres da província”. Não apenas a de Gilberto e Madalena Freyre. Estácio Coimbra, governador deposto em 1930, o recebia em palácio. Deputados ilustres, igualmente.

Ontem, falei de Chá Preto e Pente; hoje, relembro outro tipo marcante das ruas recifenses: Bolinha de Cambará. “Não houve ambulante a quem as crianças quisessem mais bem”, disse o poeta Mauro Motta (1955). Eis como fazia para preparar seu produto: “Se pega uma porção de cambará, outra de casca de angico, outra de malva-rosa, outra de agrião e imburana e se bota pra cozinhar tudo junto com açúcar. Aí, depois do ‘ponto’, faz-se as bolinhas ou bombons e já se foi a gripe, a constipação e o resfriado”. (Diário da Manhã, 8-3-1976).

A mais antiga referência que encontrei a Manuel Vicente de Lima data de 1931. Cito-a para mostrar que ele já era famoso naquele tempo. Comparecera à delegacia um certo José Alves de Araújo Nolasco para prestar queixa “de indivíduo muito conhecido de alcunha ‘Bolinha de Cambará’ que, com ele se inimizando, agrediu-o na Rua Frei Caneca”. O agressor, “não possuindo nenhum instrumento perfurante, mordeu [o reclamante], produzindo ferida contusa com secção de músculos” (Diário de Pernambuco, 2/9/1931). Dentes de aço!

Isso pode não ter se passado como descrito ou, quem sabe, o homem reviu seus caminhos. Fato é que, 45 anos depois, Ana Maria Guimarães entrevistou Bolinha de Cambará e escreveu na matéria ser ele muito religioso. “Sou pegado com Papai do Céu, os santos e os anjos. Ai de mim se não fossem eles. Nunca chamei um nome feio, nunca faltei com respeito a ninguém” (Diario de Pernambuco, 6/3/1976). Esqueceu a dentada, ou o outro exagerou?

Em 1955, Bolinha de Cambará ainda ocupava “um pedaço do coração das crianças”, mas já era dado como velho. “Vem de longe, do tempo de nossos avós, quando ele já entoava as mesmas canções e já dava os mesmos passos. É um dos tipos populares da cidade. Forma o pequeno grupo de homens do povo, arrancados da massa e que são verdadeiramente conhecidos e admirados” (Jornal Pequeno, 18/10/1955).

Quase ao mesmo tempo, Mauro Motta, que chegou à Academia Brasileira de Letras, escreveu, assinando-se apenas “M”, na coluna Coisas da Cidade, do Diario de Pernambuco: “Era um transeunte esperado e infalível nas tardes do bairro [da Boa Vista]. Principalmente, no Pátio de Santa Cruz, na Rua das Ninfas, na Rua do Progresso, na [Avenida] Conde da Boa Vista e na [Rua] Barão de São Borja, com uma parada para as cantorias e lorotas na calçada do Politeama [antigo cinema]” (Diario de Pernambuco, 23/7/1955, republicado com a assinatura completa do autor em 20/10/1970).

Quatro anos depois, em 1959, portanto, veio ao Recife o compositor Lamartine Babo. Na recepção que lhe foi oferecida, “lá para as tantas, apareceu um elemento precioso do nosso folclore, o negro Bolinha de Cambará. Sem se fazer de rogado, Bolinha cantou o seu pregão, conhecido por três gerações nesta capital. Lamartine não teve dúvidas. Apanhou um pedaço de papel, riscou um pentagrama e registrou a partitura musical de ‘Bolinha de Cambará’. Pretende aproveitar o tema para uma composição sobre o Recife” (Diario de Pernambuco, 8/3/1959).

Assim cantou o velho homem:

Eu tenho bolinha de cambará
Um pacote é um tostão
Eu tenho bolinha de cambará
Cura tosse e constipação

Não sei se a promessa de Lamartine Babo foi cumprida. Nem precisou ser, pois, em 1969, Gilvan Chaves gravou a música e letra do que Manuel Vicente de Lima, o Bolinha de Cambará, tanto cantara pelas ruas da cidade. Está no disco “Pregões do Recife”, que eu destaquei com um link em postagem de hoje (11/1/2019) mais cedo no Facebook. Há, no mesmo disco, também uma declamação de como Chá Preto e Pente anunciava seus produtos, entre uma malcriação e outra.

E este outro mote que eu ainda sabia de cor: “Vassoureiro! Vasculhador, espanador, esteira d’Angola, colher de pau, raspa de coco e greia”. A última palavra, pronunciada com ênfase digna de ator dramático, queria dizer, no português da norma culta, “grelha”. Ah, Gilvan Chaves também cantou o “Chora menino, pra comprar pitomba; chora menino pra comprar pitomba”; “Eu tenho lã de barriguda pra travesseiro”. E, ainda, o pregão do vendedor de macaxeira: “Caxeira! É Rosa e Bahia. Cozinha na água fria, dona Maria”. Maravilhas.

Assim cantavam os vendedores ambulantes do Recife. Em 1980, muitos deles haviam sido silenciados pelo progresso que cria e destrói. Ou tinham morrido. Gustavo Krause era prefeito do Recife. Visitou uma escola municipal e ali ouviu os alunos cantarem os pregões tradicionais, fadados, talvez, ao esquecimento. Disse, então: “Provar a bolinha de cambará tem sabor de saudade, ouvir ‘chá preto e pente’ é ouvir o som da saudade, escutar os pregões da cidade é escutar a saudade” (Diário da Manhã, 13/3/1980).

Desconheço quando Manuel Vicente de Lima, o Bolinha de Cambará, nasceu. Ainda havia a escravidão, segundo os jornais. Sei, contudo, que ele manteve a mesma idade durante bastante tempo. Em 1973, o apresentador de TV Fernando Castelão o entrevistou (Diario de Pernambuco, 16/5/1973). Bolinha tinha 120 anos. Em 1976, segundo a já citada reportagem de Ana Maria Guimarães, ele continuava com os mesmos 120 anos. Não sei qual das duas contas estava certa. Provavelmente, nenhuma.

A longevidade de Manuel Vicente de Lima bem poderia ser usada como propaganda das bolinhas de cambará, embora ele deva ter morrido pouco depois da entrevista acima referida. Com sorte, entretanto, qualquer um de nós ainda ouvirá Gilberto Freyre dizer, no velho casarão de Apipucos, hoje sede da fundação com seu nome, aquela frase acolhedora: “Madalena, uma cadeira pro Bolinha descansar”.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

CHÁ PRETO E PENTE

Gustavo Maia Gomes
Recife, 10-1-2019
Não me lembro de jamais tê-lo visto nas ruas. Meu irmão Ivan, quatro anos mais velho que eu, sim. Ou creio que sim. Mauro, meu pai, com certeza, nas suas andanças do escritório de advogado até o Palácio da Justiça.
Ele comentava: “a pessoa vende duas coisas que não têm nada em comum. Chá preto e pente. Nada mais. Pois Chá Preto e Pente virou seu nome. Se já teve outro, caiu no esquecimento”. As palavras de Mauro podem não ter sido, exatamente, essas. O sentido, sim.
Branco, mas pobre, vendedor de rua carregando uma pequena caixa, Chá Preto e Pente foi uma celebridade local, em meados do século passado. Há muitos testemunhos disso. Por exemplo: “Quem não conheceu esse tipo recifense que, entre um grito e outro de ‘chá preto e pente’, introduzia uma observação maliciosa, algumas vezes soprada por alguém que lhe dava uns trocados?” (Waldimir Maia Leite, jornalista, 1977).
Ou esta: “Nas ruas do Imperador e Duque de Caxias, todo mundo conhece o ‘homem do chá preto e do pente’. Vive do produto da venda dessas bugigangas. Mas não vive essencialmente disso. É o porta voz alugado do povo. Não raro, ouvem-se os seus pregões contra determinado cidadão, contra certo político. Mete o pau. ‘Lasca a lenha’ contra qualquer ser vivente – ou morto mesmo” (Ronildo Maia Leite, jornalista ,1954)
Zezito Neves, poeta, definiu-o como “o velhinho conhecido das ruas do Recife que, com suas caixinhas vendendo os mesmos objetos, encontra na rotina algo novo e grita ‘novidade’!” (1968) Ao que completou Lourdes Sarmento, também poeta”, no mesmo ano: Chá Preto e Pente "vai pelas ruas dando sermões, fazendo críticas, com sua filosofia particular de um dos tipos mais interessantes do Recife”.
Não obstante vender sempre as mesmas coisas, Chá Preto e Pente propagandeava seu negócio gritando “Novidade, novidade”. Essas palavras também grudaram nele. Tanto que, uma vez, o jornalista Fernando Luís, da Revista do Rádio, perguntou a um entrevistado qual deveria ser o novo presidente da República. Jacques Gonçalves, ator do rádio pernambucano, respondeu – “Chá Preto e Pente. [Ou seja] novidade!” (1954).
Entre 1967 e 1970, frequentei diariamente o centro do Recife, trabalhando como repórter do Jornal do Commercio. Nunca encontrei Chá Preto e Pente. Neste mesmo ano, Severino Barbosa, jornalista, escreveu: “Já se foi o tempo [dele]”. Eu chegara tarde, portanto. Que pena!

DE ZURIQUE AO RIO DE JANEIRO

Gustavo Maia Gomes
Recife, 7-1-2019
O suíço Leonhard Kuhn (1830-1903) mudou-se de Zurique para o Recife em 1850. Aqui conheceu Maria Margarete Gertrud Gartner (1834-93), filha de alemães nascida em Pernambuco. Casaram-se (1861) e foram morar no Poço da Panela, à época, um arrabalde aprazível, mas distante do centro do Recife; hoje, um bairro valorizadíssimo, com muitas construções do século XIX ainda preservadas.
Depois de se estabelecer no Recife, Leonhard aportuguesou seu nome. Foi, inicialmente, guarda livros, ou seja, contador, de empresas importadoras e exportadoras; em anos mais maduros, exerceu atividades empresariais na indústria, agricultura e comércio. Sua mulher, como era quase obrigatório naqueles anos, cuidou da casa, teve filhos e os criou. Apenas dois: Maria Margarida Kuhn (1864-1947) e Cornélio Otto Kuhn (1872-1946).
Leonhard e Maria Margarete foram meus trisavôs. A filha do casal, de mesmo nome da mãe (Margarida, na grafia portuguesa), casou-se com Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa (1853-1906). Os dois viriam a ser meus bisavôs. Manoel Sebastião era pernambucano. Formou-se em Direito, mas preferiu continuar dono do Colégio Onze de Agosto. Até 1899, quando virou senhor de engenho em Santa Rita, Paraíba.
Os filhos, netos e bisnetos de Maria Margarida e Manoel Sebastião não tiveram sobrenomes Kuhn. No meu caso, por exemplo, sobreviveu apenas o “Pedrosa”. O mesmo não aconteceu com os descendentes de Cornélio Otto, o irmão da Maria Margarida: o nome Kuhn foi mantido, exceto em alguns casos, por razões de casamentos. Há um ano, Lourdes Barbosa e eu prazerosamente recebemos para um jantar em nossa casa Judith Kuhn e sua filha Isabella. Neta e bisneta de Cornélio Otto.
Para seguir a carreira militar, Cornelio Otto Kuhn trocou o Recife pelo Rio de Janeiro, em 1890. Casou-se na então capital federal com Maria Luiza Couradina Rieken (1886-1968). Ela sobreviveu 16 anos ao marido. Era, também, como Maria Margerete Gartner, filha de alemães.
Cornélio e Maria Luiza tiveram quatro filhos: Edith Luiza (1907-66), que se casou com Clóvis Pedrosa (1902-68), num segundo encontro das duas famílias; Leonardo Otto (1910-95), Maria Luíza (1912-2002) e Dagoberto Otto (1923-95). Dos quatro filhos, somente Dagoberto, casado com Neusa Pinto do Nascimento (1924-2015), gerou herdeiros: Judith, Guilherme, Luciano e Inês. Todos estão vivos e saudáveis.
No Natal de 2018, os quatro irmãos Kuhn se reuniram no Rio de Janeiro. Não apenas eles, também seus filhos e netos. Tiraram fotos, a mim enviadas por Judith, com a gentileza que lhe é própria. Ela me autorizou a publicá-las. As legendas que as acompanham identificam as pessoas. Os Pedrosas que também são Kuhn, embora não explicitamente, podem ter interesse em vê-las.

PESADELO

Gustavo Maia Gomes
Recife, 7-1-2019
Muita gente tem feito ácidas críticas ao governo Bolsonaro, que ainda nem completou uma semana. Não estou me referindo a petistas e simpatizantes, mas a pessoas supostamente capazes de entender do que nos livramos.
Temos, como cidadãos, o direito de expressar contentamento ou repúdio a decisões que nos afetarão a todos. Mas, será razoável, a esta altura, assumir uma posição derrotista com respeito ao governo?
Por pior que tenha sido a primeira semana de Bolsonaro presidente (eu não a achei ruim, ao contrário), ela evitou situações que, provavelmente, teriam acontecido, houvesse o outro candidato vencido a eleição.
Meditem sobre estas ocorrências hipotéticas, dignas do pior pesadelo:
1. A Ministra da Agricultura, Dilma Rousseff, prometeu combater imediatamente a raiz quadrada (e, num segundo momento, também a cúbica), que somente têm servido aos interesses dos grandes proprietários.
2. Formado o governo, o PP rouba na Infraestrutura, o PMDB nos bancos públicos, o PTB vende licenças para sindicatos e o PT fica com os restantes 80% da grana. O PSDB ainda não decidiu o que fará.
3. Lula foi solto um dia após a vitória de seu poste. Pediu habeas corpus para ser ministro de alguma coisa. Gilmar Mendes autorizou. "Lula Livre" é o slogan do governo.
4. Paulo Crédito Consignado e Gleisi Codinome Amante — ele, diretor da Polícia Federal; ela, procuradora geral da República — vão retomar a obra interrompida pelo golpe.
5. Autorizado pelo STF, José Dirceu deixou o país. Foi para Cuba concluir o curso de terrorismo iniciado há muitos anos, quando ele tinha outro nariz.
6. O MST começou a reforma agrária incendiando todos os laboratórios da Embrapa. Stédile ocupou com seu exército a sede da ONU em Nova York.
7. A Força Nacional de Segurança Pública invadiu 150 fazendas produtoras de soja alegando que o agronegócio negocia com o agro.
8. No ensino das crianças, não haverá mais Matemática e Português, substituídas pelas disciplinas Ideologia de Gênero, Democracia na Venezuela e Aquecimento Global.
É isso o que queremos de volta?

MINHAS DESCULPAS, DALMARES

Gustavo Maia Gomes
(Recife, 4-1-2019, nove horas depois)
Quando escrevi, hoje mais cedo, sobre a "periferia" do governo Bolsonaro, avaliei apenas o que já estava disponível. Isso incluía o discurso de posse da ministra Dalmares Alves, mas não o conteúdo de sua entrevista à Globo News.
O discurso, continuo achando, parece uma novela mexicana. Insuportável, histérico. A entrevista, entretanto, apesar de ter altos e baixos, é muito melhor. Em particular, CONCORDO INTEGRALMENTE com o que a ministra disse (ver trecho 2:00 a 7:00 no link) sobre a ideologia de gênero e sua prática nas escolas de crianças.
Se a Sra. Damares Alves não tivesse dito mais nada, somente por isso ela mereceria este meu pedido público de desculpas, que faço com inteira tranquilidade, conforme havia dito a Eliane Teixeira que faria, se fosse o caso de mudar de opinião. Nem por isso me furtarei no futuro ao direito de elogiar ou criticar membros do governo, quando for necessário.
Votei em Bolsonaro e torço muito para que seu -- nosso! -- governo tenha pleno êxito. O Brasil não aguentava mais essa dominância esquerdista -- socialista, sim, nas suas raízes profundas -- que produziu ódio racial, insegurança pública, ignorância, emburrecimento, corrupção e caos econômico. Não podemos perder a oportunidade que nos foi dada pelo resultado das eleições de outubro.

NOVELA MEXICANA

Gustavo Maia Gomes
(Recife, 4-1-2019)
Ouvindo (em gravação) partes do discurso de posse dessa senhora Damares Alves, só consegui lembrar das velhíssimas novelas mexicanas de rádio em que a mulher chorava histericamente o tempo todo.
Está visível no horizonte um governo com um núcleo de gente qualificada e com as ideias certas e uma periferia de trôpegos que falam grego entre si e assistem missa diariamente, pendurados numa goiabeira.
Tomara que o núcleo se fortaleça como tal e a periferia jamais consiga dominar a cena, caso em que eu aconselharia a convocação de Dilma Rousseff, depois de ela ter se confessado e recebido a absolvição.
Afinal, nenhum conjunto de idiotas que se preze deveria dispensar o concurso da sua mais perfeita representante.
(PS -- No mesmo dia, oito horas mais tarde -- Não apago esta nota em respeito aos comentaristas que tanto contribuíram para o debate em torno do tema, mas convido todos a lerem também o que escrevi nove horas depois: "Minhas desculpas, Damares".)

MINISTROS E MINISTROS

Gustavo Maia Gomes
Recife, 3-1-2019
Ontem foi um dia de ministros tomando posse. Destaco quatro deles: Paulo Guedes, Augusto Heleno, Ernesto Araújo e Ricardo Velez. Gostei muito do que disseram os dois primeiros (Economia e Segurança Institucional). Gostei pouco, ou nada, das manifestações dos titulares das Relações Exteriores e da Educação. Como, a curto e médio prazos, o sucesso ou insucesso do governo será medido pelo desempenho da economia, no conjunto, fiquei satisfeito com o que vi e ouvi.
PAULO GUEDES, em pronunciamento notável, pôs em realce o recorrente e jamais resolvido problema fiscal brasileiro, que ele julga ser a raiz de todas as nossas crises econômicas. Adiantou que os pilares da sua estratégia serão a reforma da Previdência, as privatizações e a simplificação tributária. Trata-se de um chamado ao bom senso, após o desvario iniciado no segundo governo Lula e continuado pela Mulher Sapiens. Reviravolta que, sob condições políticas desfavoráveis, já havia sido iniciada pela equipe do ex-presidente Michel Temer.
AUGUSTO HELENO, o general, (em entrevista ao Globo News) falou sobre a segurança do presidente, a inteligência (coleta e análise de informações), o “fim do socialismo” a que se referiu Jair Bolsonaro, as reservas indígenas e outras coisas. Pressionado pelos jornalistas, como sempre, predispostos contra ele, respondeu brilhantemente a todas as perguntas, incluindo aquelas sobre assuntos delicados que nem são de sua área específica.
ERNESTO ARAÚJO, o chanceler, começou falando grego, emendou com tupi-guarani, citou Cervantes, Renato Russo e Raul Seixas; falou em Deus, em “globalismo” e terminou compondo um samba do crioulo doido. Pareceu mais doutrinador que diplomata. Deu ideias gerais sobre o que pretende a fazer no Ministério. Se o entendi bem, já que não falo grego nem tupi, retirará o apoio do Brasil às ditaduras cubana e bolivariana. Promoverá os interesses comerciais do nosso país sem predeterminações ideológicas. Palmas para ele. Tomara que tenha tempo de fazer isso, mesmo estando tão ocupado com a coleta de citações eruditas para seu próximo discurso.
RICARDO VELEZ, discípulo do suposto filósofo Olavo de Carvalho (assim como Ernesto Araújo), confirmou o que já havia dito o presidente Bolsonaro: a prioridade será a educação básica. Mas não foi convincente quanto aos meios de implementar essa diretriz. Também mais afeito às grandes ideias do que à merenda escolar, introduziu a seguinte frase em seu discurso: "Combateremos o marxismo cultural, hoje presente em instituições de educação básica e superior. Trata-se de uma ideologia materialista alheia aos nossos mais caros valores de patriotismo e de visão religiosa do mundo".
Também sou antimarxista. Se por “combater o marxismo cultural” Velez entende difundir as bases de outra visão do mundo, muito bem, pois essa não poderá deixar de ser uma batalha ideológica. Se, entretanto, o seguidor do Pornográfico de Carvalho pretende ressuscitar a Santa Inquisição, torço para que arranje logo outro emprego. No Arcebispado, talvez.

DAQUI PRA FRENTE, TUDO SERÁ DIFERENTE

Os que apoiaram Bolsonaro desde o primeiro turno, como eu, ou apenas no segundo, como tantos outros, compomos um conjunto definido quase unicamente pelo desejo comum de derrubar o partido quadrilha (e seus satélites) que destruía o país há dezesseis anos.
Conseguimos isso, derrotamos os bandidos petistas. Mas, o significado das eleições de outubro supera, creio eu, nossa melhor capacidade atual de avaliação. O governo que assume amanhã pode até nos decepcionar em curto prazo. Nem assim deixará de ser um marco na nossa história.
As divergências entre os apoiadores do novo presidente, entretanto, logo aparecerão. Tomara que possam ser absorvidas no quadro de uma concordância mais ampla sobre os pontos fundamentais. Para mim, estes incluem, antes de tudo, as opções pela democracia e o capitalismo.
Sugiro que leiam o artigo do ministro indicado Ernesto Araújo (link abaixo). É bem escrito e representativo de uma das correntes ideológicas que se reuniram para derrotar o partido dos ladrões. Concordo com uns pontos, discordo de outros. É assim mesmo numa democracia.
Contrariamente ao chanceler, não tenho nenhuma simpatia por Olavo de Carvalho, um filósofo anti-iluminista. Tampouco concordo em trazer Deus de volta à política. Foi o absolutismo, não a democracia, que buscou o respaldo da religião para se legitimar. Não precisamos disso.

ADEUS AOS BONDES

Gustavo Maia Gomes
30-12-2018
Tenho vagas lembranças dos bondes do Recife, que pararam de circular em 1956 ou 1957. Sobre eles, Mario Sette (1886-1950) escreveu belas páginas. Como esta a seguir transcrita, que fala do dia em que os bondes puxados por burros deram lugar aos que se moviam pela força elétrica.
“A 13 de maio de 1914 correram pelo centro da cidade os primeiros bondes elétricos. Ouviu-se, para nunca mais, o estrépito, tão familiar aos recifenses, das patas de burros no calçamento das ruas. E os estalidos dos chicotes dos boleeiros, quase sempre acompanhados de exortações ou ameaças:
– Anda, burra! ... Corre, diabo! ...
(...)
Os bondes de burros recolhiam-se aos arrabaldes para não voltarem à cidade – àquele Recife que eles ajudaram sobremodo a democratizar, no convívio popular de seus bancos, aproximando o capitalista do largo do Corpo Santo do ‘capoeira’ de Santo Amaro; a dama lorde da Passagem da Madalena, da costureira pobre da Torre; a menina rica do Colégio Pritaneu, da órfã da Estância; o chefe de seção de cartola e fraque, do amanuense de paletó de alpaca e chapéu de massa.
Nesses bondes discutia-se a Abolição, a República, a Revolta da Armada, a Guerra de Canudos, o Quebra-quebra Lampião, a Peste Bubônica, o Balão de Zé da Luz e a Campanha Dantista, com todos os seus boatos e entusiasmos.
Era um grande capítulo da vida da cidade a se encerrar. O Recife ia ser um outro Recife.”
(Mario Sette, “Arruar: História pitoresca do Recife antigo”. Rio de Janeiro, CEB, 1948, págs. 118-19)
“Arruar” é um livro gostoso de ler. Ainda hoje, setenta anos passados desde sua primeira edição.

ARRUAR NA MANGABEIRA DE CIMA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 29-12-2018
Publicado originalmente há setenta anos, o livro do escritor pernambucano Mario Sette (1886-1950) “Arruar: História pitoresca do Recife antigo” (Rio de Janeiro, CEB, 1948) ainda hoje se lê com proveito e prazer. É o que tenho feito, nestes últimos dias de 2018.
Considere-se o trecho abaixo:
“Quem não se identifica de pronto com as raízes populares de denominações claríssimas como Caminho Novo, Porto da Madeira, Ponte Velha, Ilha do Retiro, Água Fria, Espinheiro, Fora de Portas? Meditemos nesses nomes, e cada um deles será um pequeno capítulo do romance do Recife.” (Pág. 12)
Desses, apenas dois caíram em desuso, ou foram trocados. O “Caminho Novo” é a atual e importante Avenida Conde da Boa Vista, na zona central e deteriorada da cidade; “Fora de Portas” ficava onde hoje está a muito pobre Comunidade do Pilar, próximo ao Forte do Brum, bairro do Recife. Seu nome (li isso em algum lugar, mas posso estar errado) deriva da fábrica de biscoitos Pilar, que ainda existe nesse local.
Mario Sette continua:
“Que dizer, por exemplo, de Mangabeira de Cima, a contrastar com a Mangabeira de Baixo, ali na Estrada do Arraial, que por si mesmo já constitui um cenário histórico? As duas árvores, no caminho há pouco rompido, eram duas balizas dos transeuntes. Mangabeira, a de baixo, Mangabeira, a do alto da ladeira. Orientavam os que iam ali, e quando o trem suburbano substituiu a diligência do Cláudio, deram nome às respectivas estações que nós ainda frequentamos.” (Pág. 12)
Na Mangabeira de Cima, mais especificamente na rua que se chamou Moura Esteves e, depois, Olímpio Tavares, vivi grande parte de minha infância e juventude. Na época, eu não conhecia esses nomes antigos. Que morava colado ao histórico Arraial Velho, de onde Matias de Albuquerque comandou a resistência aos invasores holandeses, entre 1630 e 1635, entretanto, eu sabia muito bem.
Dona Inês de Souza, minha professora primária, cuja casa-escola ficava ainda mais perto do Arraial Velho, não me deixava esquecer.

FAZENDO ARTE MOSTRANDO AS PARTES

Gustavo Maia Gomes
Recife, 27-12-2018
Lourdes Barbosa e eu assistimos, recentemente, dois filmes. Para a crítica especializada, “Roma” (Alfonso Cuarón, diretor, 2018) é uma obra prima; “A Dama Dourada” (Simon Curtis, 2015), um filmezinho qualquer.
Minhas impressões sobre o primeiro:
(1) Vendo o filme, ninguém adivinha que Roma é essa. Dou um doce para quem acertar um palpite, sem ler as resenhas. Mas, como disse Lourdes: se precisa manual de instruções, não pode ser bom.
(2) Embora existam momentos de emoção, são raros. Para mim, a cena mais impactante é a do pneu esmagando cocô de cachorro na garagem da casa. Foi m. pra todo lado.
(3) A descrição do cotidiano da empregada Cleo tem certo valor sociológico. Mas, segundo consta, a intenção do diretor não era essa. Não me pergunte qual era; sem ler os críticos (que, certamente, entrevistaram Cuáron com antecedência), duvido que alguém fique sabendo.
(4) Nenhum personagem, exceto Cleo e a mãe dos meninos, é representado satisfatoriamente. A avó parece uma jaca mole posta em pé; a outra empregada só faz repetir “maninha, maninha”; o pai chega em casa num Galaxy e sai num Fusca – é tudo; do namorado de Cleo, somos obrigados a ver a parte do corpo que um certo João gostava de mostrar às clientes. (Imagino que esse tenha sido considerado o ponto alto do filme.)
(5) A fotografia, em preto e branco, é bonita. Não tanto quanto um livro-álbum de Sebastião Salgado, mas, vá lá, bonita. Daí a evitar o naufrágio da obra, vai uma grande distância. "Roma" é uma chatice metida a besta. Não para os críticos que lhe deram o Leão de Ouro em Veneza.
E, sobre o segundo:
“A Dama Dourada” não recebeu prêmio algum, apesar de Helen Mirren ter sido indicada para melhor atriz. O consenso da crítica (site Rotten Tomatoes) é que o filme dá “tratamento decepcionante [dull] a uma fascinante história real”.
Discordo de cabo a rabo. Assistir “A Dama Dourada” deu-nos grande prazer, a Lourdes e a mim. Além da “história [real] fascinante", os personagens são bem descritos e interpretados, a fotografia é belíssima, a interpenetração de cenas do passado e do presente (os dois tempos, às vezes, coincidindo) é bem feita e impactante, o enredo se desenvolve na velocidade certa e nos faz pensar, o filme não precisa de manual de instruções para ser entendido.
Por fim, não há em “A Dama Dourada”, nenhuma exposição gratuita dos órgãos genitais da mulher madura ou do homem jovem. Os críticos devem ter dito: "onde já se viu tamanha insensibilidade artística?"

VEADO, PAVÃO, FACADA E MIJO

Gustavo Maia Gomes
Recife, 24-12-2018
Pedi ao taxista que me levasse ao Beco da Facada. Falo isso até mesmo quando nem quero ir lá. É um teste. Poucos passam. O beco, há anos, ganhou uma placa: Rua Guimarães Peixoto. Dia desses, um motorista levou-me sem questionar. Avaliei seus conhecimentos: de que outros becos sabia?
Ele foi dizendo: do Queijo, Estrela, Pavão, Marroquim, Veado Branco. Se bem me lembro, do Alface. Alguns não têm mais esses nomes, que só os nascidos há mais tempo insistem em reter. Por que chamar o Beco do Veado Branco de Travessa de São Pedro? Ou de Rua da Indústria o Beco da Bomba?
Sei lá que outros nomes insignificantes alguém dará, ou já deu, aos becos Passa Quatro, das Miudinhas, do Escuro, do Padre, do Esparadrapo, da Fome, do Relojoeiro, do Marroquim, da Beliscada, do Peixe Frito, da Lingueta, dos Ferreiros, do Supapo, do Ganso. O Beco da Boia virou Travessa do Tuyuty. O do Camarão é a Rua Martins Júnior.
Muito se escreveu sobre os nomes poéticos de ruas recifenses (as que escaparam de virar Eduardo Campos ou Miguel Arraes): Rua da Harmonia, da Saudade, do Sossego, da União, da Aurora, da Amizade, do Sol. E das estradas: Velha de Água Fria, do Arraial, das Ubaias, de Belém, da Imbiribeira. (Esta última, hoje, Avenida Mascarenhas de Morais, coitada.)
Sobre os becos, entretanto, há um quase silêncio. Não do grande Mario Sette (1886-1950): “Essas passagens estreitas nasceram de um imperativo de sociabilidade. Comunicações mais curtas e rápidas por necessidades de relações, de visitas, de comércio, de amores. Ia-se mais depressa por ali, por entre casas. E a passagem como serventia pública persistiu na paisagem urbana.”
Mais: “Sua fisionomia, seu préstimo, sua figura popular veio a dar-lhe o nome. Beco da Viração, do Serigado, da Luxúria, do Sarapatel, do Veras, do Calabouço, da Roda, do Quiabo, das Sete Casas... Cada denominação dessas ressalta uma origem. É uma tela, é um retrato. Tem cor, tem cheiro, tem malícia...”
Existe até um beco a ser tombado pelo Iphan. (Fica além fronteiras, é verdade.) Sobre ele, disse Walter Cavalcanti, historiador: “O Beco do Mijo é parte do patrimônio líquido e imaterial de Olinda. Quem nunca (...) se aliviou no local não passou pela verdadeira experiência olindense. O Beco é considerado memória afetiva e olfativa da cidade”.
Olinda e o Recife já lutaram uma contra a outra, mas hoje são (quase) a mesma cidade. O Beco do Mijo também é nosso.
(As citações são de Mario Sette, “Arruar: História pitoresca do Recife Antigo”. CEB, Rio de Janeiro, 1948, pág. 15, e de Giuseppe Niochio, “Beco do Mijo, em Olinda, será tombado pelo Iphan”, Blog Diário Pernambucano, 14/9/2015)

COMO IR E VOLTAR, NO RIO DE JANEIRO, EM 1900

Gustavo Maia Gomes
Recife, 23-12-2018
Cornelio Otto Kuhn (1872-1946), meu tio-bisavô na ascendência materna, nasceu no Recife, mas se mudou, em 1890, para o Rio de Janeiro, a fim de estudar na Escola Militar da Capital. Ele estava lá em 1894, quando José do Patrocínio (1853-1905), jornalista e abolicionista, trouxe de Paris o primeiro automóvel jamais visto na cidade, um triciclo Serpollet.
Mas, não é de Cornélio e sim de Luiz Edmundo (“O Rio de Janeiro do meu tempo”, segunda edição, Rio de Janeiro, Conquista, 1957) que desejo falar agora. O “meu tempo” do autor é 1900. Já me referi ao livro, em postagem anterior (21-10). Ali, falei sobre os tipos humanos de rua. Agora, destaco os meios de transporte.
“O Rio de Janeiro do meu tempo”, publicado originalmente em 1938, caiu no esquecimento. Grande injustiça. Nele, Luiz Edmundo escreve a história de uma forma magistral. Foca nas pessoas, nos tipos de gente, nos meios de transporte, nas ruas, nos cafés, nos jornais, nos pontos de encontro, nos morros. O recurso de ilustrar a obra com uma profusão de desenhos feitos pelos melhores cartunistas da época lhe aumenta em muito o valor. É um livro fascinante.
Estou lendo ou relendo essas descrições do velho Rio de Janeiro porque muitos parentes de gerações anteriores se mudaram de Pernambuco, Alagoas e Bahia para a capital federal. Não apenas Cornelio Otto. Há outros, que serão apresentados no meu próximo livro, “Uma Noite em Anhumas”.
Eu tento, com as leituras, recuperar um pouco do que eles viram, sentiram e viveram na grande cidade. Tomara que o consiga.