sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

A COMPOTEIRA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 22-2-2019
Em “Baú de Ossos”, Pedro Nava (1903-84) relembra Irifila, “fera familiar, esposa-proprietária de Iclirérico Narbal Pamplona, dos irmãos mais velhos de minha avó paterna, pois nascera no Aracati [CE] a 14 de outubro de 1830”.
“Ninguém compreendia seu casamento” com o Comendador . “Ele era alto, desempenado, elegante, cheio de calma e distinção. [A] mulher era baixota, atarracada, horrenda, permanentemente irritada – de alma amarga e boca desagradável”.
Irifila odiava receber “e quando era constrangida a isso, fazia-o com ostentação e grosseria”. Já o marido “gostava [da] conversa de amigos, [a] degustação de bom porto e bons charutos, sua rodinha de jogo. E reunia os parceiros uma vez por semana para o voltarete e para a manilha”.
Um dia, Irifila chamou o marido e decretou: “não quero mais jogatina em minha casa”. Mesmo assim, o Comendador insistiu e “arrumou um grande encontro, justamente para obsequiar seu compadre, o terrível Visconde de Ouro Preto”.
A mulher fingiu satisfação, mas preparou o bote. “À hora da ceia, requintou-se. Nunca suas bandejas, seus bules e seus açucareiros de prata tinham tido tal polimento. Nunca tirara tanta toalha de renda das arcas e das cômodas perfumadas a capim cheiroso. Nunca seus guardanapos de linho tinham recebido tanta goma".
E que fartura, prossegue o memorialista. “Chá, chocolate, moscatéis, madeiras, portos. Os licores da França, da Hungria e os nacionais de piqui, tamarindo e jenipapo. E a abundância dos doces e dos sequilhos: língua-de-moça, marquinhas, veranistas, creme virgem e tudo o que é biscoito”.
Para culminar, “no meio da maior bandeja, a mais alta compoteira com o doce do dia – aparecendo todo escuro e lustroso, através das facetas do cristal grosso, de um pardo saboroso como a da banana mole, da pasta de caju, do colchão de passas com ameixas pretas, do cascão de goiaba com rapadura".
"O comendador resplandecente destampou a compoteria: estava cheia, até as bordas, de merda viva”. Nunca mais o Iclirérico recebeu ninguém em sua casa.
(Citações da terceira edição de Pedro Nava, “Baú de Ossos”. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974, págs. 29, 30 e 50.)

LUÍS, IVANIRA E OS OUTROS

Gustavo Maia Gomes
Recife, 20-2-2019
Filho de Laurentino Gomes de Barros (1881-1958) e Amália Maia Gomes (?-?), Luís Alípio Gomes de Barros (1922-91), primo em primeiro grau de meu pai, foi um destacado jornalista com quem, burramente, nunca encontrei, mesmo tendo viajado tantas vezes à cidade onde ele vivia, o Rio de Janeiro.
Nascido em Branquinha, AL – seu pai foi um dos sócios-fundadores da Usina Campo Verde (1920) –, Luís Alípio mudou-se para a então capital federal. Ali ele trabalhou em revistas e jornais à época importantes, como O Cruzeiro, A Cigarra, A Cena Muda, Diário da Noite, Diário de Notícias, Correio da Manhã, A Manhã, Revista da Semana, O Jornal e, sobretudo, a Última Hora.
Além de colunista de gastronomia e de cinema, Luís Alípio fez reportagens sobre assuntos diversos, a exemplo de manifestações folclóricas em seu estado natal e (em 1940!) a maconha e o sururu em Alagoas. Viajou muito. Participou de festivais internacionais de cinema. Liderou uma caravana de artistas que foi visitar as tropas brasileiras estacionadas no Egito, devido à crise de Suez (1956).
Luís Alípio casou-se temporariamente com Maria Luíza Gonçalves Cavalcanti de Melo e definitivamente com Maria Ivanira Teixeira, moça bonita, capa de O Cruzeiro e da Manchete, irmã de Humberto Teixeira, o autor, com Luiz Gonzaga, do hino nordestino Asa Branca (1947).
A filha eletiva Ana Catharina McGregor (médica e proprietária do Hotel Fazenda St. Robert, Piraí, Rio de Janeiro) mandou-me fotos do arquivo familiar e histórias de seu pai, que serão aproveitadas em meu próximo livro. Elas mostram, entre outras coisas, que Luís Alípio Gomes de Barros soube viver a vida.

FÁBULA DA IGUALDADE

Gustavo Maia Gomes
Recife, 17-2-2019
Zeraldo Cifu era o homem mais vegano, mais anti-homofóbico, mais defensor dos direitos humanos e animalescos, dos líderes populares, dos pobres, das cotas raciais, sociais, emocionais, mais adepto da ideologia de gêneros que se podia imaginar.
Um dia, ele escreveu um livro. Mas não o quis publicar sem antes ter a aprovação dos amigos, todos progressistas, espiritistas, ambientalistas e esquerdistas. Tirou seis cópias em papel, mesmo sabendo que aquilo seria criticado, e as fez circular.
“Veja se há alguma afirmação racista”, pedia a um leitor; “grife tudo o que for homofóbico”, exigia de outro; “o que parecer de direita, escrache”, de um terceiro...
Passado um tempo, recebeu o “aprovadíssimo” de todos os amigos. Menos um. Darcy Zumbi, exibiu o cenho franzido. Ele lera romances em que personagens mantinham o cenho franzido. Na vida real, nunca vira ninguém assim, nem mesmo sabia o que significava, mas, naquele momento, pareceu-lhe de bom tom franzir o cenho. “Estou fazendo uns cálculos. Preciso de uma semana”, decretou.
Sete dias depois, Zeraldo bateu à porta de Darcy. Encontrou-o soterrado em papeis, quarenta lápis caídos no chão, manuseando duas calculadoras eletrônicas com as baterias descarregadas. “Seu livro é xenófobo e elitista. Fere os princípios da igualdade”, foi logo dizendo.
Era tudo o que Zeraldo não queria ouvir. “Explique, explique”, implorou ao amigo.
– A maior palavra tem 19 letras; a menor, apenas uma.
– Nunca tinha pensado nisso.
– Sabe quantas vezes aparece a letra “a”?
– Não sei.
– E o “y”?
– Menos ainda.
– A letra “a”, rica e poderosa, 147.701 vezes; o “y”, relegado à insignificância, 525. Só porque é imigrante.
Execrado, desde então, como sendo um homem de direita, Zeraldo Cifu suicidou-se um dia antes de alguém descobrir um fato que o reabilitaria, talvez, para sempre: seu nome tem apenas um “a”. Nenhuma letra nele se repete. A igualdade absoluta. Do mesmo jeito que em Darcy Zumbi.

FALSAS VERDADES

Gustavo Maia Gomes
Recife, 15-2-2019
Li, recentemente, que “as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres”. Teria sido dito pela Oxfam, a ONG que defende os pobres com o dinheiro dos ricos. Seus técnicos garantem estar havendo “avanço da desigualdade e concentração de riqueza [no mundo], enquanto metade da população perde mais renda do que ganha”. Isso eu copiei da Rede Brasil Atual.
Não consultei o relatório da Oxfam – portanto, não falo, especificamente, sobre ele – mas a facilidade com que afirmativas desse tipo são apresentadas como se fossem verdades científicas me espanta. Todas as vezes que tentei calcular a “riqueza” pertencente a um grupo de pessoas, desisti. Por muitas razões, das quais cito duas.
A primeira: Eike Batista era, realmente, tão rico quanto se dizia? Sua riqueza desmanchou no ar em poucos minutos. A barragem rompeu? O Titanic afundou de novo? Uma fonte inesgotável de energia barata foi inesperadamente descoberta? Tais teriam sido boas razões para a súbita destruição da riqueza daquele senhor. Mas, ela sumiu sem precisar nada disso.
A opulência, no caso, era medida em ações. Mas, se as empresas do Sr. Batista valessem mesmo o que as ações diziam, estas não teriam passado a valer nada do dia para a noite. Assim, enquanto os frouxos fundamentos econômicos daquele senhor não se evidenciavam, sua riqueza consistia apenas na capacidade de transformar ações em bens materiais e imateriais. A “verdadeira riqueza” do magnata estava nos castelos, iates, aviões, obras de arte, patentes valiosas, etc. que ele (em tese) podia comprar.
Ora, mas até que as vendas-e-compras acontecessem, estes castelos, iates, etc. pertenciam a outros milionários. A Oxfam – se não ela, muitos economistas de tendências políticas semelhantes – foi lá e somou a riqueza de Eike Batista com a dos donos dos castelos, iates, etc. Dessa maneira, multiplicou na estatística a riqueza dos ricos. E era uma soma de ventos, como os fatos logo viriam a demonstrar.
A segunda razão: dificuldades de medir não acontecem apenas com a riqueza dos ricos. Também com a dos pobres. Severino Silva mora há cinquenta anos numa casa modesta, mas que tem valor econômico. Embora, no papel, a moradia pertença aos herdeiros de algum rico, que nunca conseguirão terminar o inventário, na prática, Severino jamais pagou aluguel e poderia até vendê-la, informalmente, se quisesse. Nos registros oficiais, o imóvel pertence a um milionário. Na verdade, ele é parte da riqueza de um pobre.
Os problemas mostrados acima estão longe de serem os únicos. A soma deles me levou a concluir ser impossível fazer estimativas minimamente válidas de “riqueza”, ainda menos de todo mundo e no mundo todo. De modo que esses cálculos atribuídos à Oxfam e a divulgação subsequente de falsas verdades do tipo “as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres” cheiram mesmo é a picaretagem.

BRUNO E O MOLHO MADEIRA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 14-2-2019
Almoço com Bruno Fernandes Pedrosa no Restaurante Leite, que ainda guarda as lembranças de meu pai e seu avô Mauro Bahia de Maia Gomes (1916-97). O garçom, sem me perguntar, decretou: "Língua ao molho Madeira".
Foram duas línguas e duas madeiras, pois Bruno também segue os preceitos que nos impedem de pedir outra coisa naquele lugar. Assim como, pelos mesmos motivos, foram duas as "cartolas" (banana frita, queijo assado, açúcar e canela) na sobremesa.
Terminados os trabalhos, cada um tomou seu rumo: eu chamei um sucessor dos táxis, Bruno me acompanhou até certa altura e Mauro seguiu a pé para o seu escritório de advogado no edifício Vieira da Cunha, a poucos metros dali.
Ou, pelo menos, era o que meu pai teria feito, se esse encontro houvesse acontecido quarenta anos atrás.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

O HOMEM QUE CONSTRUÍA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 12-2-2019
"A casa [que já existia] era péssima, mal dividida, estragada e suja", escreveu tia Heloisa de Araújo Pedrosa (1916-2007) em suas memórias, referindo-se ao Engenho Velho, em Santa Rita, PB, comprado em 1899 pelo avô dela, Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa (1853-1906) e herdada pelo pai (1889-1936), de mesmo nome.
Ela prossegue: "o dono anterior [do engenho] não tinha nenhuma noção de higiene. A estrebaria era dentro de casa. Porém, era uma boa propriedade. A casa [ficava] no alto, com a vista linda para o engenho em baixo, com o Rio Paraíba passando atrás e serpenteando pelas várzeas".
Por ser tão ruim a casa existente no Engenho Velho, os pais de Olga Dias Cardoso (1895-1978) condicionaram o casamento dela com o segundo Manoel Sebastião à construção de outra. O noivo obedeceu, claro: em 1914, a nova casa estava pronta; pouco depois, em outubro, meus avôs maternos se casaram. A notícia, não sei bem por quê, saiu em O Paiz, jornal do Rio de Janeiro.
Foi esta casa (depois do Engenho Velho, no mesmo local, vieram as usinas Pedrosa, Santana, Agroval) que eu fotografei na semana passada. Minha mãe, Maria Stella de Araújo Pedrosa (1917-2001), a visitou em 1987. Ela não seria a única a ser construída por seu pai, Manoel Sebastião. Em 1925, situação parecida à de 1914 aconteceu: ele e a família se mudaram para Atalaia, AL, onde ficava a Usina Uruba, que meu avô havia adquirido.
Novamente, a casa já existente era péssima. De modo que Manoel decidiu construir outra. Desta vez, ainda segundo as memórias de Heloísa, o estilo seria inteiramente moderno, europeu. É que Olga colecionava plantas de casa reproduzidas em jornais. Num deles ela encontrou a morada que queria ter em Atalaia. E teve.
Essa segunda casa feita pelo "homem que construía", concluída em 1936, ainda está lá. Visitei-a em muitas ocasiões, a última delas há uns três anos. (Lourdes Barbosa, Demetrio Neto e Marcus Antonio Pedrosa Ferreira estavam comigo.) É bonita e imponente. Mas foi marcada por uma tragédia. Na semana em que a mudança se faria, meu avô pegou uma infecção grave. Em poucos dias, morreu.
A mudança dos sobreviventes foi feita em clima fúnebre. Stella morou lá até se casar, seis anos mais tarde. Tinha todas as razões do mundo para não gostar muito daquela casa marcada por uma grande frustração. Manoel Sebastião a construiu com esmero. Mas nunca dormiu uma noite ali.

A PRAÇA É DO POVO?

Gustavo Maia Gomes
Recife, 8-2-2019
Sabia que ela não existia mais, a fábrica de tecidos de Tibiri, em Santa Rita, PB, mas me decepcionei, assim mesmo, em ver o triste fim de Policarpo Quaresma que lhe foi dado. Construída em 1891-92 por meu bisavô engenheiro Francisco Dias Cardoso Filho (c.1865-1917), a então mais importante unidade industrial da Paraíba funcionou até 1976.
Não pôde resistir à concorrência de outras fábricas, especialmente, as localizadas em São Paulo, muito mais modernas. Sucumbiu junto com toda a velha indústria têxtil do Nordeste, que chegou a ter peso comparável ao do setor açucareiro, na primeira metade do século XX.
Nem os esforços da Sudene nos anos 1960 conseguiram evitar o fim melancólico de tecelagens como a Tibiri, na Paraíba. Ou, em Pernambuco, as da Madalena, da Torre, da Macaxeira, da Tacaruna, de Santo Amaro, de Goiana, de Paulista, de Moreno e outras. Em Sergipe, a de Propriá. Em Alagoas, a de Fernão Velho, onde o trem para Branquinha sempre parava.
Mas, tudo isso aconteceria muito depois da morte de Francisco. Eis o que sua neta Heloisa Pedrosa tem a dizer sobre ele, especialmente, em relação à Companhia Parahybana de Tecidos, dona da fábrica de Tibiri:
"Depois de formado em engenharia [no Rio de Janeiro], Francisco aceitou um emprego numa empresa que iria construir a usina de açúcar São João, na Paraíba. Ele foi, então, morar [naquele estado]. Quando a usina já estava terminada, recebeu convite para construir uma fábrica de tecidos. Ergueu a fábrica, a casa do gerente, as casas dos empregados, dos operários, o escritório e o almoxarifado. [Encerradas as obras, ele assumiu a posição de gerente da fábrica] e lá ficou por muitos anos" (Heloisa Pedrosa, Memórias).
Em 2008, segundo informação que colhi na internet, o que restava em pé foi demolido. Um observador lamenta: "Quem nasceu e se criou em Tibiri Fábrica [o bairro ganhou este nome] traz na sua lembrança, se não a velha Tibiri funcionando, as ruínas [dela], até a sua criminosa demolição, para a construção de um grande descampado denominado Praça do Povo" (Cleyton Ferrer, no Facebook).
A Praça do Povo, minhas senhoras e meus senhores, como as fotos que de lá tirei amplamente comprovam, é uma merda. Uma MERDA. Um grande cimentado e só. Derrubaram a história para por em seu lugar um deserto de mau gosto. Tomara que o prefeito que fez isso só seja culpado de ignorância, pois a outra hipótese é que tenha roubado, mesmo.
“A praça, a praça é do povo", disse Castro Alves, "como o céu é do condor. É antro onde a liberdade cria águias em seu calor!” Pode ser. Mas não tinha outro lugar na Paraíba inteira onde se contentasse o poeta sem agredir a história em geral e a memória de Francisco Dias Cardoso Filho, em particular?

A CASA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 8-2-2019
Em 1988, aos 70 anos de idade, minha mãe visitou a casa onde havia nascido, em 4 de dezembro de 1917, no Engenho Velho, Santa Rita, Paraíba, hoje, Usina Agroval. Neste ano, o engenho que tinha meu avô como herdeiro e único administrador era “um dos melhores, se não o melhor, da Várzea do Paraíba”, segundo disse no “Diário de Pernambuco” (29-1-1917) o padre e escritor Francisco Raimundo Pedrosa.
Stella ficou emocionada. Desde 1925, quando seus pais dali se mudaram, carregando os filhos, para Atalaia, Alagoas, ela não mais pusera os pés naquelas terras. Encontrar a casa bem conservada, percorrer suas salas e quartos e terraços, ouvir os sons da infância, sentir os cheiros de um tempo perdido, tudo isso lhe despertou sentimentos de felicidade e tristeza, depois descritos em carta à irmã Heloisa.
Pois, ontem, fui ao Engenho Velho, pela primeira vez na vida. É época de moagem, e de grande movimento na Usina. Mesmo assim, permitiram-me subir uma pequena ladeira, ao fim da qual, encarando-me -- majestosa, secular, pintada de azul e branco, sorrindo um sorriso franco de brotinho encantador e portando na testa a inscrição "1914" -- estava ela: a casa.
Da parte de sua história que mais me interessa, tomei conhecimento por meio de Heloisa Pedrosa, irmã de Stella, que também nasceu ali. Escreveu minha tia: “Papai [Manoel, ou "Nezinho"] conheceu a mamãe [Olga] quanto ele estava com doze anos e ela com seis. As famílias eram muito amigas; as propriedades, próximas. Todos os domingos papai ia visitar [os futuros sogros e, sobretudo, a filha deles]. Era muito bem recebido, todos gostavam muito dele.”
“A vovó Fifi [Josephina, mãe de Olga], então, tinha um especial carinho por ele [a quem] conhecera desde menino, filho que era de sua melhor amiga. Sabia o quanto ele era bom, trabalhador, ótimo filho e irmão. E, além de tudo, bonito. Que melhor marido ela poderia sonhar para sua filha?”
Feito o namoro, “a duração do noivado foi marcada pelos pais dela: dois anos. Fifi achava que seria preciso este tempo para que Nezinho construísse uma casa nova, pois a existente no Engenho [Velho] era muito ruim. E assim foi feito.”
Meu avô, o pai dela, construiu “uma casa maravilhosa”, escreveu Heloisa. Pude constatar, ontem, que ela tinha razão. “Papai e mamãe casaram-se em 1914, parece que em setembro, não sei o dia”. Nezinho havia cumprido as condições impostas pela sogra. Em particular, esperado os dois anos dos quais Fifi não abriria mão.

RATOS NO ARAME

Gustavo Maia Gomes
Recife, 4/2/2019
Pedro Nava (1903-84) em Baú de Ossos (3a. edição, 1974) conta a seguinte história passada no Rio de Janeiro de sua infância. Era o tempo de Oswaldo Cruz e do combate, no caso, à peste bubônica, cuja transmissão aos humanos passava pelos ratos.
”Rato, rato, rato. Corria de dentro das casas o tropel das mulatas, meninos, patroas, moleques e crioulas com suas ratoeiras e todos despejavam o conteúdo dentro de uma espécie de sorveteira enorme que continha um líquido que dava fumaça sem ferver. (...)
O homem, em vez de receber, pagava. Duzentos reis a ratazana, um tostão por camundongo. Pagava, tampava, punha na cabeça e seguia soltando o pregão que virou música: rato, rato, rato / camundongo, percevejo, carrapato – que ficamos devendo ao empresário da compra que era o Dr. Oswaldo Gonçalves Cruz.
Infelizmente, a providência, em vez de acabar com a bicharia, industrializou sua criação. Havia especialistas que os tinham em viveiros e que só os vendiam adultos e gordos, porque assim eram mais bem cotados.” (Nava, págs. 311-12.) Ratos de criação!
Maravilha de história, que me fez lembrar de outra contada por Nilson Holanda (1936-2015), na época em que trabalhamos ambos em Brasília, ele na Secretaria de Políticas Regionais, eu no Ipea. Isso foi nos anos 1995/98. Tornamo-nos amigos. Sei que muitos de meus possíveis leitores também guardam ótimas lembranças de Nilson Holanda.
Eis a história. Possivelmente, ainda em seu primeiro governo (1930-45), Getúlio Vargas pôs em prática uma política de subsídios ao arame farpado. Algum economista idiota deve tê-lo convencido de que se tratava de uma ideia magnífica, parecida com aquelas que anos à frente assolariam o país na era da mulher sapiens Dilma Rousseff.
Para, simultaneamente, estimular a pecuária e a indústria siderúrgica recém implantada, o governo decretou que o arame farpado seria vendido por 50%, algo assim, do preço do arame comum. O Tesouro Nacional (quem mais?) pagaria diretamente à fábrica a diferença.
Logo, logo, surgiu uma indústria de “desenfarpar“ arame. Os empresários “quase schumpeterianos” compravam o arame farpado por 500 reis o quilo, digamos, retiravam-lhe a farpa e vendiam o produto resultante por 800 reis. Como o arame sem farpas (mas não “desenfarpado”) custava 1.000 reis o quilo, pois não tinha subsídios, a nova indústria foi um sucesso. (E o Tesouro pagou o pato.)
Se não tivessem sido tão diferentes os tempos de uma e outra histórias, tenho certeza de que muitos ratos de Pedro Nava e Oswaldo Cruz teriam sido engaiolados nos arames de Nilson Holanda e Getúlio Vargas.
-- Rato, rato, rato.
-- Arame, arame, arame.

EU ACHO ISSO BOM. E VOCÊ?

Gustavo Maia Gomes
Recife, 4-2-2019
“Embora as primeiras formas de comunicação escrita datem de cerca de 3.500-3.000 a.C., a alfabetização permaneceu durante séculos uma tecnologia muito pouco difundida e intimamente associada ao exercício do poder. Foi somente a partir da Idade Média que a produção de livros começou a crescer e a habilidade de ler e escrever da população em geral a se tornar importante no mundo ocidental. De fato, apesar da ambição da alfabetização universal na Europa ter sido uma aspiração do Iluminismo [anos 1800], ela levou séculos para acontecer.” [Max Roser e Esteban Ortiz-Ospina (2019) - "Global Rise of Education", blog.]
Os gráficos constantes daquele trabalho explicitam os dados: em 1800, 88% da população mundial com mais de 15 anos era analfabeta; em 1900, essa mesma proporção havia baixado, porém, pouco, para 79%. A mudança radical veio no século XX, e continua em marcha. Tanto que em 2016 (dado mais recente), os analfabetos no mundo não chegavam a 14%.
O mundo desenvolvido de hoje, onde essas mudanças foram primeiro realizadas, é uma criação da Revolução Industrial, capitalista, iniciada na Inglaterra e Escócia no último quartel do século XVIII e depois difundida para a Europa continental, Estados Unidos, Canadá, Japão...
Eu acho isso bom, e você?

MARIO SETTE E O CAIS DA LINGUETA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 2-2-2019
Existe nome mais delicioso para um lugar do que “Cais da Lingueta”? Pois ele existiu, no Recife, até os primeiros anos do século XX. Ficava próximo ao atual Marco Zero, cartão postal muito conhecido da cidade. Com as obras do porto, o velho cais desapareceu. Mas, uma parte dele foi encontrada embaixo da terra, em 2011, quando se estava construindo o Museu do Sertão.
No seu livro Arruar: História pitoresca do Recife antigo (Rio de Janeiro, Editora CEB, 1948), Mario Sette conta casos relacionados ao Cais da Lingueta. Transcrevo o que achei mais interessante.
“A Lingueta tinha, sempre, uma novidade. Hábito velho, de quem fica à porta da cidade. Não fora dali que o popularíssimo Garrafuz, no século XVIII, embarcara de modo inédito para Lisboa? Era ele filho de um fogueteiro, e um boêmio integral. Certa vez, dá-lhe o pai uma moeda, um patacão, para trocar ali pelas redondezas. Sai Garrafuz de loja em loja, e nada. Já havia dificuldade de moeda miúda sem existirem ainda as passagens de bondes... De déu em déu, Garrafuz chega à Lingueta, de onde costumava admirar os navios e os marujos. Ali, um grupo desses convida-o:
-- Vamos a Portugal, Garrafuz?
E o rapaz responde.
-- Vou, sim.
E com a maior naturalidade do mundo desceu a rampa, tomou o bote e meteu-se na barca. Estava uns dois anos ausente sem dar novas de si. Até que um dia desembarca na Lingueta, toma o caminho de casa, entra na tenda do pai e como se tivesse saído meia hora antes, restitui-lhe o patacão dizendo:
-- Não achei troco, não.”
(Pág. 81)

TOMEM O VENENO, MENINAS!

Gustavo Maia Gomes
Recife, 28-1-2019
No Colégio de Órfãs da Jaqueira – um bairro do Recife –, as atividades em 6 de janeiro de 1912 começaram cedo. Como acontecia a cada mês, doses de vermífugo foram dadas às internas. Dois dias depois, 45 meninas tinham morrido por envenenamento.
Constâncio Pontual, médico da Santa Casa de Misericórdia, proprietária do Colégio, explicou, na ocasião: há 25 anos, o remédio Sêmen-Contra era usado ali. Dias antes, ele o encomendara ao Hospital Pedro II que, não dispondo do produto, transferiu o pedido à Farmácia Conceição, de Alfeu Raposo.
Noventa e quatro doses foram ministradas às órfãs. Eram 7 horas da manhã. Houve resistência, pois a substância tinha gosto intolerável. Mas, uma interna mais velha insistiu – como se dissesse “Tomem o veneno, meninas!” – e as demais lhe obedeceram.
Às 9 horas, se sentiram mal. Mais um dia de intenso sofrimento e metade das que haviam tomado o líquido perderiam a vida. Era cólquico, veneno fortíssimo. Deu no jornal: “Vimos algumas crianças mortas. [Elas] botavam sangue pela boca e estavam completamente roxas”.
À Polícia, Alfeu Raposo disse que recebera o pedido do Semen-Contra, mas, como não tinha o medicamento, encaminhara a requisição para a Farmácia dos Pobres, de Gerôncio de Melo. A troca de substâncias e a colocação no pacote do rótulo com a informação errada quanto ao conteúdo aconteceram neste estabelecimento. Foram erros fatais.
No domingo teve início a autópsia das meninas: Elvira Francisca, 8 anos de idade, 1 m e 15 cm de altura; Josefa Maria, 7 anos, 1 m e 15 cm; Luíza Barbosa, 7 anos, 1 m e 14 cm; Maria Rosa do Nascimento, 7 anos, 1 m e 7 cm; Maria Luíza de Mello, 5 anos, 1 m e 10 cm; Josefa Inês Costa, 9 anos, 1 m e 20 cm; Joana da Natividade ... Quatro dezenas mais ainda viriam.
Das meninas mortas, extraíram-se estômago, fígado e rins, colocados em pequenos frascos para exame posterior. Sobre os cadáveres, derramaram-se flores e ramos de pitangueiras. Postos numa carreta, os corpos foram conduzidos ao cemitério de Santo Amaro e sepultados na vala comum do quarteirão Padre Diogo.
O inquérito responsabilizou Alfeu Raposo, Gerôncio de Melo, seu empregado Manoel Francisco de Moura, e um farmacêutico do Hospital Pedro II, mas o juiz aceitou apenas os indiciamentos de Gerôncio e Manoel Francisco. Ambos viriam a ser julgados e absolvidos por unanimidade, vinte meses depois da tragédia.
Como suprema ironia, as autópsias revelaram que poucas daquelas meninas tinham vermes.
(Informações extraídas dos jornais recifenses da época. As fotos do Educandário Casa da Providência, sucessor do Colégio da Jaqueira / Casa dos Expostos -- que podem ser vistas no Facebook -- foram tiradas por mim em 25-1-2019.)

TEIMOSO OU NESCAU?

Gustavo Maia Gomes
Recife, 23-1-2019
Foi o segundo automóvel que tive, comprado de Ivan, com meu salário de repórter do Jornal do Commercio e a ajuda de nosso pai, Mauro. Em 1970. Um Renault Gordini tipo popular, aquele do qual a fábrica havia tirado tantas peças que o carro restante só andava de teimoso. Ganhou esta alcunha, claro. Teimoso.
O modelo não-popular também tinha um apelido: Nescau. – Por que Nescau? – Porque, assim como aquele chocolate em pó, desmanchava sem bater. Fora isso, era um carro bom, com melhor desempenho que o rival Fusca e mais gostoso de dirigir. Tenho saudades do meu.
Tenho e não tenho. Arrumei um companheiro de viagem, Benjamin, filho de Severino da Vara, e levei o carro para São Paulo. Na estrada, ele deu problema, mas, como estávamos perto de uma cidade – Estância, Sergipe –, o incômodo logo foi resolvido. – Quando viajei? – Em 1971, julho; ou 1972, janeiro. Tinha de ser em mês de férias, pois eu ainda era estudante de mestrado na USP, nesse tempo.
Em São Paulo, aí sim, o fantasma do desmancha sem bater mostrou que existia, mesmo. Em julho de 1972, recém-casado, eu ganhava uma micharia como professor em tempo parcial na USP e na Universidade de Campinas. Ter um carro se tornara muito importante. Sem ele, dificilmente eu poderia atender os compromissos assumidos. Foi quando vivi um prolongado pesadelo, pois o Teimoso ou Nescau queria gastar nas oficinas mais do que eu ganhava nas salas de aula.
Conto dois episódios desse tempo.
O primeiro ocorreu em São Paulo. Estou dirigindo em rua movimentada quando o carro (pela centésima vez) para de funcionar. Dou um jeito de estacioná-lo precariamente, alguém me informa sobre a oficina mais próxima, eu tomo um táxi e chego lá.
O dono me atende com atenção, eu explico o que aconteceu, ele diz que é bronca pequena, pega sua caixa de ferramentas e, de súbito, faz-me a pergunta: – Qual é o carro? – Gordini. – O quê? Não vou de jeito nenhum. Eu o conserto, uma hora depois, ele quebra de novo. Você vai virar meu inimigo –. Tive que procurar outra oficina.
Segundo episódio: pelas razões já expostas, eu precisava ir de São Paulo a Campinas duas vezes por semana. Era mais cômodo viajar de carro, até porque, na volta, tinha o hábito de almoçar num posto-de-gasolina-etc-e-tal que existia entre as duas cidades. Só que, sendo usado intensamente, o Gordini começou a dar ainda mais problemas, irritando-me no limite do suportável.
Pois eis que, num desses retornos para casa, o carro passou a funcionar mal. Com muito jeito, consegui chegar ao posto-restaurante. Estacionei o Gordini. Tomei um chopp e duas batidas de limão. Comi a feijoada. Peguei um ônibus que me levaria a São Paulo, deixando o problema para trás. Dez anos depois, ele ainda estava lá -- teimoso, sim; Nescau, não era --, todo enferrujado e coberto de poeira. Foi a última vez que o vi.

UMA TRAGÉDIA RECIFENSE (1912)

Gustavo Maia Gomes
Recife, 22-1-2019
Em 5 de setembro de 1912, cerca de cem meninas órfãs internas no Colégio da Jaqueira, Recife, ingeriram veneno. Quarenta e nove, numa conta; 45, em outra, morreram. As freiras pensavam estar administrando um vermífugo, procedimento repetido mensalmente. Mas, desta vez, o hospital mandara, por engano, uma substância altamente tóxica.
Soube disso por Mario Sette (Arruar: história pitoresca do Recife antigo. Rio de Janeiro, Editora CEB, 1948, págs. 340-41). Fui ler os jornais da época: A Província, Jornal Pequeno, Jornal do Recife. Todos trazem coberturas detalhadas do episódio. (O Diário de Pernambuco ficou fora de circulação durante a maior parte do ano de 1912, devido à briga política entre seu proprietário Rosa e Silva e o governador Dantas Barreto.)
Relata Mario Sette: “Aconteceu que, mal ingeriram o remédio, todas as órfãs começaram a sentir-se mal. Uma intoxicação violenta e gravíssima. Algumas meninas já agonizavam. Alarmam-se o colégio, a vizinhança, a cidade inteira. Correm médicos às dezenas para o orfanato. (...) 88 meninas intoxicadas. 18 já estão prestes a expirar. (...) Às quatro da tarde havia 35 cadáveres; à noite, 42. E eram cenas terríveis.”
Leandro Gomes de Barros (“As órfãs do Colégio da Jaqueira no Recife", s/d, disponível no blog Cordel no Mundo), que não foi meu parente, apesar do nome, versou sua tristeza, a nossa, a de todos, em canto que começava assim:
A serpa mais venenosa
A fera mais traiçoeira
Os próprios alienados
Que estão na Tamarineira
Chorariam vendo a cena
Do Colégio da Jaqueira
(...)
Era um teatro de horror
Ou cena desconhecida
Até a alma de Nero
Vendo-a ficava abatida
Um espetáculo de sangue
Um quadro negro da vida

CORINA E OUTRAS MULHERES DE SEU TEMPO

Gustavo Maia Gomes
Recife, 21-1-2019
Irmã de minha avó materna, Corina Dias Cardoso (1912-82) jamais se casou. Com isso, furtou-se a cumprir o principal roteiro reservado à mulher na antiga sociedade canavieiro-açucareira nordestina, incluindo seus prolongamentos urbanos: chegar virgem ao casamento, ser esposa fiel de marido nem tanto, e parir filhos anualmente.
Em tempos mais remotos, só lhe teriam restado entrar no convento ou ser a tia que ajudava a criar os filhos alheios. Mas, Corina nasceu no Recife, não numa fazenda de cana; em 1912, não cem anos antes. Já havia, então, outros caminhos trilháveis por mulheres solteiras: estudar além das primeiras letras, seguir uma profissão liberal, empregar-se na indústria ou no comércio.
Minha tia-avó, a quem conheci bastante bem, fez um pouco das duas coisas: foi morar com a irmã casada, ajudou na criação dos sobrinhos, seguindo as recomendações tradicionais, mas também estudou na Escola Técnica de Comércio do Recife, aprendeu inglês e francês e ganhou seu dinheiro em empregos duradouros ou ocupações temporárias.
Em 1947, proferiu palestras sobre “Vacances à Fortaleza” para a Associação de Cultura Franco Brasileira. Um ano depois, recitou “A l’Etendard de Jeanne d’Arc”, na mesma instituição. Em 1958, deu aulas de inglês no Sindicato dos Médicos. Em 1964, sentou-se à mesa dirigente secretariando os trabalhos nas assembleias gerais da Coperbo, à época, a principal indústria do Estado. Foi o que consegui saber, pesquisando jornais antigos.
A partir de 1972, o nome de Corina Dias Cardoso aparece na imprensa apenas em comunicados de falecimento de parentes. Lá está ela em 1972, com a morte de Henriqueta, sua irmã; em 1977, com o passamento trágico de Luiz Martins, genro de Helena, sua irmã; em 1979, na comunicação do falecimento de Eduardo Marques, marido de Helena, com quem Corina morou durante muitos anos e, pouco depois, de Raul Dias Cardoso, irmão; finalmente, em 1982, quando ela própria morre.
Faltou a Corina, talvez, audácia para dar passos mais largos nos estudos e na carreira profissional, como o fizeram as alagoanas Lily Lages (1907-2003) e Nise da Silveira (1905-99), médicas, ambas; e também deputada estadual, a primeira; escritora, a segunda. Sem serem minhas parentas, ambas cruzaram caminhos com os Maia Gomes e os Pedrosas. Corina fez o que pôde. Se foi feliz, não sei, mas não sucumbiu inteiramente à sociedade que reservava para as mulheres papeis e posições subalternas.

LOLITA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 20-1-2019
De todos os tipos relembrados neste espaço, em dias recentes, o único que avistei vivo e bulindo, nos anos 1960, foi Lolita. Era improvável alguém ir com frequência ao centro do Recife e jamais vê-lo. E ainda mais difícil ignorar que aquele homem baixo, negro, cabelos desgrenhados e mal vestido era quem era. Pois, antes de a palavra e a profissão terem sido inventadas, Lolita foi um grande marqueteiro de si mesmo.
Diz Rivaldo Paiva: “Vi Lolita, o maior ‘frango’ do Recife, cantar e encantar a todos os jovens anarquistas (...) e aos senhores pedestres ‘chapelados de uma pêga’ de conservadorismo” (Saudades de 60: O Recife ao Sabor de um tempo, 2002). “Frango” era a gíria pernambucana para homossexual.
Para compor seu tipo, ele pode ter-se inspirado no célebre Madame Satã, do Rio de Janeiro. Fato é que ambos atraíram a atenção de muita gente. Manuel Barbosa escreveu seguidas vezes sobre Lolita na Última Hora (1962-64) e no Diário da Noite, depois de 1964.
Geraldo Pereira, médico e cronista, perguntou: “E Lolita? Quem não lembra? Com o andar afeminado e cheio de trejeitos, [percorria] a cidade de ponta a ponta, se requebrando e cantando, muitas vezes, ou simplesmente cobrindo de pilhérias os incautos passantes, que coravam de tanta vergonha, com as espirituosas graças do homem que gostaria de ter nascido mulher e bem mulher” (2006).
Ou o sociólogo Roberto Martins: “Não vou transformá-lo em Jean Genet, tal como fez Sartre na França com o escritor e teatrólogo homossexual e também encrenqueiro. Mas Lolita não pode ser resumido. Lolita traz para as ruas do Recife a explosão das contradições sociais do Brasil” (Blog Sinal +, 5-3-2010). Não sei se isso é bom ou ruim, mas deve ser importante.
Pernosticismos sociológicos à parte, Lolita era um homossexual pobre, com fortíssima personalidade e intenso desejo de aparecer. Nas condições muito desfavoráveis de sua existência, conseguiu tornar-se famoso, ainda que o custo dessa fama fosse levar surras semanais da polícia. Numa dessas, em plena Avenida Guararapes, no centro do Recife, ele gritou para o soldado que o agredia: “bate, bate neste corpo que já foi teu”.
No dia seguinte, quase com certeza, Manuel Barbosa registrou a frase no Diário da Noite. E Lolita ficou ainda mais famoso e prestes a explodir, devido às contradições sociais que encarnava, sem sequer desconfiar disso.

FACADINHA, LESEIRA E PENSAMENTO

Gustavo Maia Gomes
Recife, 17-1-2019
Já escrevi aqui sobre “Arruar” (Mario Sette. Arruar: História pitoresca do Recife antigo. Rio de Janeiro, CEB, 1948. Há uma reedição da Cepe). É um livro que se lê com gosto. Ajudou-me muito, somado a outros, a imaginar como foi o Recife nos anos 1890-1920, pouco menos, pouco mais.
No capítulo XXI (o penúltimo), Mario fala sobre os “tipos de voga popular. Uns que ficaram conhecidos pela boemia, pela intemperança, pelo ridículo, pela turbulência; outros de melhor naipe pela evidência política, pelo ressalto intelectual, por uma projeção pública, ou por uma peculiaridade de feitio ou bom humor” (pág. 357).
Selecionei três: Dr. Facadinha, Leseira e Pensamento.
“Metido num fraque, com uma pasta vazia debaixo do braço, [Facadinha] passava apressado, como se tivesse a chamá-lo importantes negócios... Mas, ao ver uma cara estranha, parava e, com uma choradeira de doenças em casa, pedia-lhe cinco mil reis [a moeda da época] ‘emprestados’. Se a vítima pretextava não dispor dessa quantia, diminuía-a para dois, um, até 500 reis e, por fim, para um tostão. Era uma fachadinha, apenas” (pág. 359).
Na Rua Nova, “no ponto em que os bondes de burros paravam a fim de tomar a ‘sota’ [parelha de burros de reforço] que facilitava a subida da ponte, havia o cego Leseira. Ele próprio assim se chamava”. Pedia esmolas e, em retribuição, “tocava uma gaita e nela executava músicas em voga. Como esta: Sussu sossega / vai dormir teu sono. / Deixa essa menina / que já tem seu dono” (págs. 359-60).
“Pensamento vestia fraque e tocava flauta. De quando em quando parava numa esquina ou sentava na calçada e executava suas músicas prediletas. Não dispensava uma grande flor ao peito, nem a bacorinha. Contam que certa vez, diante de uma casa onde alguém se esforçava por acertar um compasso ao piano, sem consegui-lo, perdeu a paciência e bateu ao postigo. Aparece a moça que não aprendia a lição. E Pensamento ensinou-lhe como sair da dificuldade” (pág. 360).
Muitos outros tipos populares do Recife de há cem anos aparecem em “Arruar”: Padre Marreca, o subdelegado Pataca de Angu, Quaresma, Padre Carapuceiro, Bode Ioiô, Maracujá de Gaveta, Bairrinhos, Ô Ferro!, Tinisco, Madama Papoula, Cariri, Major Pataca, Budião de Escama... Deliciosos nomes. Havia também os tipos genéricos, como vendedores de caranguejo e de bonecas de pano.
De todos, gostei mais do Facadinha. Esse tipo não morre nunca. Devem ser poucos, no Recife, os que jamais foram abordados por alguém pedindo dinheiro para “inteirar” sua passagem de ônibus. Facadinha, facadinha.

ONDE HOUVER MURO, HAVERÁ FHC

Gustavo Maia Gomes
Recife, 15-1-2019
“Fernando Henrique Cardoso, em entrevista à Radio France Internationale (RFI), disse que a percepção do mundo em relação ao Brasil foi afetada negativamente após a eleição de Jair Bolsonaro” (O Antagonista, 15-1-2019).
Será que ele também disse que, quando “a percepção do mundo em relação ao Brasil” era positiva, o país estava sendo saqueado por uma quadrilha de ladrões que produziram, além dos milhões roubados, a maior recessão da nossa história?
Será que ele também disse que esse brutal erro de avaliação dos que pensam representar o mundo desmoraliza completamente a sua percepção da realidade, difundida nos bares parisienses entre uma e outra taças de vinho pagas, em grande medida, com dinheiro de duvidosa origem?
Fica cada dia mais claro que o PSDB nunca foi oposição. Era, sim, sócio da velha ordem, agindo como um bobo da corte a recolher restos de comida atirados por reis e bufões. Continuará para sempre em cima do muro, confortado pelas infantilidades sociológicas de seu ideólogo maior.

UM LUGAR

Gustavo Maia Gomes
Recife, 14-1-2019
Atapuz morreu? Parece. Fomos lá, ontem, Lourdes Barbosa, seu sobrinho Antônio e eu. Fica no litoral Norte de Pernambuco, próximo ao Pontal de Itamaracá. Entre os dois, o Canal de Santa Cruz. E as águas do Atlântico, mais adiante. Morreu Atapuz? Parece. É um lugar belíssimo. Por que foi esquecido? Porque não oferece nada ao visitante? Ou não oferece nada ao visitante porque foi esquecido?
Almoçamos na pousada nossa antiga conhecida, agora sob nova administração. Simpática, a moça trouxe carne fria e cerveja quente. Prometeu melhorar. Sei que vai. Acho que vai. Tomara que vá. Não tenho certeza. Pois Atapuz caiu no esquecimento. Quando, finalmente, a cerveja estiver fria e a carne quente, pode já ser tarde demais.
Deixamos Atapuz. No vilarejo, quase ninguém vimos. As casas vazias. Dois homens bebendo na calçada. Tristeza. Um domingo à tarde e, na cidadezinha, só dois homens bebendo na calçada. Mais à frente, um carro berrando música ruim à beira do caminho. Como se fosse para fazer os cadáveres bulirem. Debalde. Já não se enterram os mortos ali. O cemitério mudou-se para onde foi o progresso.
Eis tudo. Atapuz morreu. Morreu Atapuz. Ainda bem que continua lindo. Talvez, até, mais agora do que nunca.