terça-feira, 2 de abril de 2019

ACHADOS E PERDIDOS

Gustavo Maia Gomes
Serra do Pirauá, PE e PB, 23-2-2019
Terminada a sessão, um corpo sem cabeça e uma cabeça sem corpo foram achados. Perdido para sempre, o último pensamento de Luís 16 deve ter sido: “sei não, mas alguma coisa parece ter acontecido ao meu pescoço“.
Em frangalhos, Benito Mussolini foi achado pelos seus perseguidores. A caminho da execução, perguntou à amante Clara Petacci: “sabes onde deixei meu gel para o cabelo? Está perdido.”
— Achou a corda? perguntou um. — Achei, disse o outro. Foi quando Saddam Hussein compreendeu que iriam enforcá-lo. Sua última esperança, a corda perdida, estava agora ali, à sua frente.
Nicolae e Helena Ceauşescu achavam tudo o que queriam. Na crise, eles reuniram o povo para mostrar que mandavam. Um dia depois, foram mortos por balas perdidas, que nem perdidas eram.
Consta que a mãe de Nicolás Maduro chamou-o à sua presença. Perguntou-lhe se ele já tinha achado uma rota de fuga. — Não irei fugir, retrucou. — Estás perdido, disse-lhe a mulher.

(Publicado no Facebook, 23-2-2019)

DOIS NA SERRA

Gustavo Maia Gomes
Entre os Alpes suíços e a Serra do Pirauá (a 130 km do Recife), Lourdes Barbosa e eu preferimos a segunda. Pelo menos, no fim de semana terminado hoje. Já tínhamos estado lá duas vezes. Esta não será a última.
Na região nasceu ou morou a ancestral mais antiga que pude identificar: Maria Madalena da Silva (1811-99). Ela e o filho (o marido, se existiu, desapareceu pelas brechas da história) Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa (1853-1906), meu bisavô.
Além do padre Francisco Raimundo da Cunha Pedrosa e seu irmão Pedro, que viria a ser senador federal pela Paraíba. Este último, pai de Mario Pedrosa (nascido em Timbaúba, cidade pernambucana próxima), crítico de artes de renome internacional. Comunista e inspirador do PT, imaginem.
O arruado de Pirauá tem dupla estadualidade. Divide-o uma rua. De um lado, Macaparana (PE), de outro, Natuba (PB). Há um restaurante bom, afastado do centro, e um hotel satisfatório, embora (pela sua arquitetura urbana) em desarmonia com o potencial turístico do lugar, atrativo como serra (650 metros de altitude, mais do que em Gravatá, no Agreste pernambucano), não como cidade.
A altitude garante cinco ou seis graus a menos de temperatura em relação ao tórrido Recife. À noite, faz frio. Desfrutamos de seus vinte graus — dezoito, com a brisa. A serra também cria amplidão de vistas: adoramos contemplar as paisagens deslumbrantes.
Ainda não existe movimento turístico apreciável em Pirauá. O restaurante enorme teve apenas dois clientes (adivinha quem) no jantar da sexta-feira e no almoço do sábado. O hotel de bom tamanho, da mesma forma, só teve nós dois como hóspedes no fim de semana.
A fábrica de queijos estava fechada, a feira terminou antes de percebermos que ela havia começado, a belíssima formação rochosa conhecida como Pedra do Bico tem acesso difícil e mal sinalizado. Em matéria de transformar aquelas paragens em ponto turístico, tudo está por fazer.
Em resumo: foi ótimo!
(Publicado no Facebook, 24-2-2019)

SERRA DAS FLORES

Gustavo Maia Gomes
Se estiver no campo ou na montanha, desça do carro. Ande a pé. Descalço. Pergunte a quem passar... (cruzou a estrada um calango): Faz frio? Vai chover? Uma cachacinha? Um tô-fraco pra vender? Um ganso? Galinhas? Respire a bosta cheirosa de bois e vacas. Olhe as montanhas. Veja as flores. Sobretudo, as miudinhas, invisíveis de longe. De volta pra casa, ponha na vitrola aquele disco de Luiz Gonzaga.
Quem é rico anda em burrico
Quem é pobre anda a pé
Mas o pobre vê nas estradas
O orvalho beijando a flor
Vê de perto o galo campina
Que quando canta muda de cor
Vai molhando os pés no riacho
Que água fresca, nosso Senhor
Vai olhando coisas a granel
Coisas que, "pra mode" ver
O cristão tem que andar a pé

(Publicada no Facebook, 25-2-2019)

LAURENTINO TREME-TERRA

Gustavo Maia Gomes

Ano provável, 1850, pouco mais, pouco menos. O local, Maragogi, belíssima praia, hoje um ponto turístico no Litoral Norte de Alagoas. Ali aparece um homem estranho, que desconhece o próprio nome, ignora de onde veio, não tem ideia de para onde estava indo.
Se tem parentes, ninguém sabe, nem os viu. “Provavelmente seria português” – relata o tetraneto Arnoldo Gomes de Barros, “pois dizia-se jocosamente que ele chegara à praia dentro de uma barrica de bacalhau e bacalhau é coisa de português”.
Cedo, o amnésico evidencia que veio para ficar. O povo de Maragogi inventa-lhe o nome de Laurentino Gomes de Barros. Aos poucos, ele vai se recuperando. Mostra-se tão brabo que ganha a alcunha de Treme-Terra. Laurentino Treme-Terra. Apesar disso, passados alguns meses, ainda sem confessar ou saber quem era ou tinha sido, ou como e porque chegara ali, já vivia uma vida normal.
“Fico pensando que tipo de homem seria meu tetravô e porque escondeu a sua identidade”, reflete o médico Arnoldo Gomes de Barros, que mora e trabalha em Maceió. “Não seria um bandido, pois não há história que desabone a sua conduta. Certamente fugia de alguém, de algo ou de si mesmo”.
De qualquer modo, Laurentino Treme-Terra ganhou aceitação local, tanto que se casou com a filha de um fazendeiro da terra, cujos nomes – o do fazendeiro e o da filha – parece terem sido perdidos na memória familiar. Desse casamento nasceu Carlinda Gomes de Barros, que viria a ser a mulher de Luís Ferreira da Silva Rego. Carlinda e Luís ficaram conhecidos entre seus descendentes como Mãe Nenê e Pai Lulu.
“Mãe Nenê era brava; Pai Lulu, suave. Os filhos do casal receberam o sobrenome Gomes da Silva Rego, com exceção do meu avô que, por se parecer com o avô dele, foi chamado Laurentino Gomes de Barros. Era branco sanguíneo, os olhos de um azul intenso; tinha vasta cabeleira branca, altura mediana e porte esguio”, diz Arnoldo Gomes de Barros.
Prossegue o médico: “Meu avô Laurentino Gomes de Barros [1881-1958] casou-se com Amália Maia Gomes e, juntamente com o sogro, Manoel Gomes dos Santos, e com os cunhados, fundou a Usina Campo Verde [em Branquinha, 1920]".
Por desavenças com os cunhados, Laurentino desligou-se da sociedade [c.1934]. "Morou em Matriz de Camaragibe, estabeleceu-se no Engenho Amapá, em Colônia de Leopoldina. Então, mudou-se para a Fazenda Riachão, na atual Joaquim Gomes, onde fundou a Usina Santa Amália [em 1943]”.
Branquinha, Matriz do Camaragibe, Colônia Leopoldina e Joaquim Gomes, são todas cidades alagoanas da mesma região canavieira ao Norte do Estado. Além de empresário, Laurentino Gomes de Barros foi vereador em Passo do Camaragibe (AL) e prefeito da cidade alagoana de Leopoldina (1936).
Muitos descendentes seus e de Amália Maia Gomes se destacariam na política alagoana, como os filhos Antônio, Mario e Carlos, deputados estaduais e federais, e o neto Manoel (deputado estadual, prefeito de União dos Palmares, 1977-82, e governador, 1997-99). E também nas áreas empresarial (Geraldo), médica (Arnoldo), jornalística (Luís Alípio) e jurídica (Humberto, que chegou a ser presidente do Superior Tribunal de Justiça, em 2008). Todos, com o sobrenome Gomes de Barros.
Se pudesse saber disso tudo em seu tempo de vida, talvez Laurentino Treme-Terra tivesse chegado a Maragogi uns dois anos antes.

(Publicado no Facebook, 
27-2-2019)

ASSASSINATOS DE CEM BOIS

Gustavo Maia Gomes
Impressiona a quantidade de matanças registradas na crônica política pernambucana dos últimos anos imperiais e primeiros republicanos. Sem contar as menores, identifiquei seis, cujos nomes correspondem ao local onde ocorreram. São as “hecatombes” da Vitória (1880), de São José (1884), da Inveja (1884), de Jatobá (1886), de Garanhuns (1917) e de Belmonte (1922).
Das matanças, apenas uma ocorreu no Recife (a de São José, nome da igreja em que houve o tiroteio). Todas as demais se deram no Interior, onde as diferenças políticas eram mais frequentemente resolvidas a bala. Com raras exceções, as disputas, nessa época, contrapunham proprietários a proprietários, barões a barões, coronéis a coronéis, a gente comum delas participando apenas como pistoleiros, capangas, jagunços ou forças policiais regulares.
Hecatombe, informa o Dicionário Online de Português, é um substantivo feminino com os significados de “massacre de muitas pessoas, chacina ou matança; desastre ou catástrofe em proporções gigantescas; calamidade; assassinato de cem bois (na Antiguidade)”. Em somente um dos casos acima se disse que os mortos chegaram a cem. E não foram bois, mas gente. Para os matadores, essa distinção tinha pouca importância.
(Publicado no Facebbok, 2-3-2019)

A HECATOMBE DA VITÓRIA (1880)

Gustavo Maia Gomes
“A 27 de junho último (1880), na cidade da Vitória, Comarca de Santo Antão, deu-se um fato horroroso. Nunca a história das campanhas eleitorais de Pernambuco se manchou de tanto sangue”, escreveu Félix Cavalcanti, em seu diário comentado por Gilberto Freyre (“O velho Félix e as ‘Memórias de um Cavalcanti’”, Rio de Janeiro, 1959, pág. 58).
Aconteceu o seguinte: “após ter subido ao poder do Império em 1878 [tendo o alagoano João Visconde de Sinimbu, como chefe do Conselho de Ministros], o Partido Liberal [em Pernambuco] dividiu-se em dois grupos. Um, composto dos membros da família Souza Leão, tinha por chefe o bacharel Luís Felipe; o outro era dirigido pelo bacharel Antônio Epaminondas de Mello” (pág. 59).
Esses últimos foram chamados democratas, os primeiros, leões. Seus chefes em Vitória eram, respectivamente, Ambrósio Machado da Cunha Cavalcanti e José Felipe Souza Leão. Na votação para juízes da paz e vereadores, os democratas se uniram aos conservadores e alcançaram a vitória, despertando o ódio dos leões.
Assim, na próxima eleição, estava estabelecido o clima para um confronto armado. Os dois lados arregimentaram forças. “Os chefes governistas [leões], entre os soldados de polícia e os capangas que puderam reunir contavam 300 homens, suficientes [para] resistir a um exército” (pág. 60).
Essas forças ocuparam a igreja do Rosário, onde se realizaria a eleição. “Diziam então os leões mais arrogantes que não haveriam de deixar que os democratas entrassem para votar” (pág. 60). Seus oponentes também arregimentaram um bando armado e foram para a igreja.
Acompanhava as tropas democratas o Barão da Escada, Belmiro da Silveira Lins. Foi o primeiro a morrer fuzilado. Ao final do tiroteio ocorrido na igreja – que não seria o único do dia – um relato da época contou 17 mortos.
Dentre os gravemente feridos, estava Ambrósio Machado. Diante dessas baixas importantes, os homens se dispersaram após, mas foram perseguidos. O Diário da Manhã (Recife), 62 anos depois (28-5-1942) afirmou que, no total, mais de cem pessoas haviam morrido, a maioria do lado democrata.
A crise repercutiu no Recife. Em discurso inflamado, o deputado José Maria de Albuquerque Melo atribuiu toda a culpa pelos incidentes e mortes à família Souza Leão, a quem chamou de “ladrões de estrada”, salteadores” e “passadores de cédulas falsas”.
No mesmo tom falou José Mariano Carneiro da Cunha, veemente abolicionista e democrata. Além disso, “saiu um boletim pregando o extermínio de tudo o que fosse Souza Leão: homem, menino, mulher. Todos deviam desaparecer. Parecia um episódio da Revolução Francesa” (pág. 62).
Foi assim, nos traços essenciais, que se deu a Hecatombe da Vitória, primeira de uma série de muitas ocorridas em Pernambuco entre os anos 1880 e 1922.

(Publicado no Facebook, 3-3-2019)

SINAL AMARELO

Gustavo Maia Gomes
Quando a Revolução (ou, menos pomposamente, um movimento político que altera de algum modo o curso da História) começa a devorar seus líderes ou aqueles que a ajudaram a acontecer, é tempo de levantar o sinal amarelo.
Isso ocorreu agora, durante o carnaval. Refiro-me à exoneração do diplomata Paulo Roberto de Almeida da direção do IPRI (lnstituto de Pesquisa em Relações Internacionais). Sobre ela, escrevi o seguinte em comentário que transcrevo aqui para lhe dar maior visibilidade.
“Paulo: tenho acompanhado há bastante tempo sua trajetória de intelectual erudito, independente, combativo, aberto ao debate de ideias. Sua crítica pertinente e persistente do descalabro petista representou contribuição importantíssima à superação desse período triste de nossa história. É lastimável que o governo eleito pelos que combateram o petismo o tenha tratado com tamanha deselegância.
Não estou contestando o direito de o ministro preencher os cargos de confiança com as pessoas de sua preferência. Estou chocado com o fato de você ter recebido uma “reprimenda” (cf. Carmen Lícia Palazzo) por ter publicado em seu blog pessoal três artigos com opiniões diferentes sobre a Venezuela. Isso, infelizmente, não passa de macartismo.”
PS. O próprio PRA, li depois, identifica um comentário crítico seu ao Sofista da Virgínia, o semi-filósofo Olavo Pornográfico de Carvalho, como um possível detonador de sua exoneração. Mais um motivo para que acendamos todos a luz amarela.

(Publicado no Facebook, 5-3-2019)

A INTRIGA DE PINGA FOGO

Gustavo Maia Gomes
Na cidade alagoana de Viçosa, terra de meus ancestrais Bahia, nem todo mundo era amigo de todo mundo. Não no século 19, pelo menos. Prova disso é que, em um certo dia, alguém assinando-se Pinga Fogo publicou no jornal Gutenberg, de Maceió, a seguinte nota:
“CONSELHO. Aconselho ao Sr. JB que entregue as chaves do cofre ao Sr. LS, comerciante nesta cidade, pois não é lícito este meio de adquirir fortuna. Este conselho é de teu amigo, pois bem conheço o Sr. LS e ele não se sujeitará ao que se sujeitou a Sra. Lulu, negociante em Pindoba. Viçosa, 20 de agosto de 1896. Pinga Fogo”.
O “Conselho” do Pinga Fogo saiu em várias edições do jornal. Uma semana depois, apareceram duas notas, parcialmente transcritas abaixo:
“REPTO AO PINGA FOGO. Peço ao autor de uma publicação da Viçosa inserta no Gutenberg de ontem que, sob pena de passar por vilão covarde e sofrer a imputação só a si mesmo cabível, queira declarar se entende comigo as iniciais JB em relação ao negócio da chave do cofre. Conforme sua resposta, tomarei a atitude conveniente para salvaguardar minha reputação, para o que já constitui advogado. Maceió, 22 de agosto de 1896. Joaquim Menandro Batista”.
“CHAVES PERDIDAS. Sob a desagradável impressão que a todo homem de bem causa a leitura do conselho do Sr. Pinga Fogo, venho declarar ao público que as chaves de que trata aquela publicação, as quais desde anteontem me foram entregues, não estiveram em poder de pessoa alguma com intenções funestas e é uma prova disso o estado em que elas me vieram às mãos – cobertas de ferrugem, estando uma delas amassada – bem como o lugar em que foram apanhadas, por onde passei no dia de domingo em que caíram do bolso de minha calça que verifiquei estar dilacerado. Não cabem, pois, as alusões do Sr. Pinga Fogo, em cujas faces ficam gravadas as setas da calúnia. Viçosa, 21 de agosto de 1896, Luiz Sá”.
Não quero fazer intriga, ainda menos depois de tanto tempo, mas acho que Luiz Sá teve, mesmo, as chaves do cofre surrupiadas quando visitava Joaquim Menandro. Ao se dar conta disso, procurou este último que, entretanto, não admitiu nada. Foi quando o comerciante resolveu dar pelo jornal um “conselho” a Joaquim, lembrando-lhe que ele – Luiz – não era nenhuma Dona Lulu de Pindoba.
Diante da ameaça velada, Joaquim Menandro Batista pensou duas vezes e se entendeu com Luiz Sá, devolvendo-lhe as chaves. Desta forma, as notas assinadas por cada um dos dois, no Gutenberg de 28 de agosto de 1896, foram apenas uma encenação. Um pingou fogo, dois apagaram o incêndio e a paz voltou à Viçosa alagoana.

(Publicado no Facebook, 6-3-2019)

PASSARINHO NO LAÇO

Gustavo Maia Gomes
Nelson Rodrigues (1912-80), nascido no Recife, mas com a carreira feita no Rio de Janeiro, teve predecessores. Fui descobrir em Maceió, mais precisamente, no jornal Gutenberg (1881-1911), notícias e crônicas narrando crimes, perversões sexuais e adultérios. Embora os autores desses textos raramente sejam identificados, o gostinho de “A vida como ela é” (coluna que consagrou o pernambucano na imprensa carioca) está bem presente. Dou um exemplo, de 1905, em transcrição literal.
DEFLORAMENTO
Daniel Antônio de Oliveira há oito anos passados amasiara-se com Domingas de Jesus, que levara para a companhia desse indivíduo uma filha de sete anos chamada Maria.
Das relações de Daniel e de sua amásia houve seis filhos, correndo tudo na paz do senhor. Mas Daniel, manhoso como Plutão, trazia oculto no peito uma extraordinária paixão por Maria, filha de sua amásia.
À proporção que ela foi tomando a forma de mulher, o Tartufo cada vez mais se apaixonava.
– Que belos olhos os seus Hia!
– Mas o que é que têm os meus olhos, Sr. Daniel?, respondia-lhe sempre a mocinha, desconfiando de suas lábias.
Mas... a mulher é parte fraca e como [era tal a pressão] de Daniel, o passarinho de lindas plumagens caiu no laço, isto é, cedeu aos desejos libidinosos do amásio de sua mãe.
O fato verificou-se na terça-feira desta semana e a autoridade policial recebeu queixas de Domingas e procedeu o exame para apurar a verdade.
(Gutenberg, Maceió, 25-11-1905, sem autor identificado. Fiz pequeníssimas edições, além de atualizar a grafia.)

(Publicado no Facebook, 7-3-2019)

CIÚME QUE MATA

Gustavo Maia Gomes

O tenente Bernardo da Câmara Sampaio era médico da Marinha. Nascido em Pernambuco, ali serviu até ser transferido para Maceió, onde estabeleceu clínica oftalmológica, sendo o único médico que no Estado se dedicava a esta especialidade.
Solteiro, arredado da família, Câmara Sampaio incumbira a uma pobre senhora de nome Rita Francina de cuidar de sua roupa. Desse comércio, nasceu o seu conhecimento com uma das filhas dessa senhora, chamada Maria da Conceição.
Tomou-se o médico de violenta paixão por essa criatura, a ponto de fazê-la sua amásia, vivendo com ela maritalmente e sem vislumbre de escândalo. Houve dessas relações uma filha, Maria Eulália, que Câmara Sampaio legitimou.
Um dia, o militar foi mandado de volta para Pernambuco. Maria da Conceição, acompanhou-o, mas ia muito a Alagoas visitar os parentes residiam. No carnaval, viera o médico a Maceió, quando soube que a mulher entretivera palestra com um mascarado em sua casa.
Caráter impetuoso, Câmara Sampaio retornou ao Recife, conduzindo amásia e filha. Em seu espírito, contudo, combalido por uma paixão doentia e ardente, penetrara a dúvida cruel, a dúvida que tortura, a dúvida que arma o braço ao ímpeto insensato, ao ditame de um cérebro que desvaira.
Desde então, a paz deixou de reinar na sua casa, a ponto de ele mandar a mulher e a filha de volta para Maceió. Não se continha, porém, muito tempo longe das prendas de seu coração. Agora mesmo, achava-se aqui, desde domingo.
Anteontem, às 10 horas da noite, a população da cidade se surpreendeu com a notícia de que um médico matara, para os lados do Liceu de Artes e Ofícios, uma pobre mulher, de nome Maria da Conceição. Seu cadáver está no Necrotério Público, para onde foi transportado, numa rede, à meia-noite.
(Recife, 8-3-2019. Adaptado de Gutenberg, 2-11-1905.)

(Publicado no Facebook, 8-3-2019)

MIOLOS À MOSTRA

Gustavo Maia Gomes

Havia oito anos que José Tavares, praça de infantaria do Exército, desposara Silvana Tavares de Melo. Dessa união tinham seis filhos e viviam felizes numa casinha do curato de Santa Cruz: ele com o soldo, ela com os rendimentos de lavar e engomar.
Passou a residir também nesse lugar o praça de polícia Manoel Joaquim de Santana, que um dia foi à casa dos dois, a fim de encarregar Silvana do preparo de sua roupa. Esta, satisfeita pela aquisição de mais um freguês, empregava esforços em servi-lo bem.
Verdade é que no fim de certo tempo amizade notável os ligava. Entregue às suas ocupações, Tavares não percebeu essa tão íntima relação do seu camarada e de sua esposa, e jamais cogitava que ela lhe fosse infiel. O procedimento, porém, da adúltera dia a dia se tornava público e notório, servindo de acendalha para as más línguas.
Foi então que ao espírito de Tavares chegaram as primeiras suspeitas, que logo originaram indisposições e desarmonia no lar. Daí que, há poucos dias, depois de forte discussão com o marido, assim que este retirou-se para seu trabalho, Silvana abandonou a casa, levando consigo os filhos.
De regresso, à tarde, o infeliz encontrou o lar vazio, deserto. Perguntando aqui e ali, veio a saber onde estava Silvana residindo com o amante. Ato contínuo, partiu a seu encalço. Ao chegar na casa, bateu à porta. Apareceu a mulher que, ao ver o marido ultrajado, foi acometida de uma crise nervosa e, entre soluços e lágrimas, pediu-lhe perdão dizendo: – Não me mates, José!
Tavares disse que não a queria matar. Desejava, apenas, ter as crianças de volta. Silvana, a princípio, concordou, mas, depois de aprontar os filhos, recuou em sua decisão, recusando-se a entregá-los. Foi neste momento que apareceu Santana, o policial sedutor.
Os dois homens, a princípio, conversaram amistosamente. Num dado momento, entretanto, abespinhou-se em extremos Santana que, de sabre em punho, atirou-se contra o outro que também de sabre nu, esperou-o. Travou-se, então, uma luta mortal.
Em dado momento, vibrou Tavares o sabre com força e este cravou-se na cabeça de Santana, abrindo-a meio a meio, pondo-lhe os miolos à mostra. A cambalear, o policial ferido encostou-se à parede e novo golpe recebeu em pleno peito. Foi o fim.
No seu depoimento, Tavares não negou o crime e narrou todos os antecedentes do fato, manifestando-se comovido ao falar dos filhinhos. Enquanto isso, os pedaços de seu rival eram reunidos e levados ao Necrotério público.
(Mais uma crônica rodrigueana. Copiada com adaptações do jornal Gutenberg, Maceió, 24-12-1905. A cidade onde se passaram os eventos narrados é o Rio de Janeiro.)

(Publicada no Facebook,  9-3-2019)

CARTA A RIVALDO PAIVA, ESCRITOR

Gustavo Maia Gomes
Li “Saudades de 60: O Recife ao sabor de um tempo” (2002). Para todos os efeitos, Rivaldo Paiva, somos da mesma cidade, da mesma idade, da mesma saudade. Eu deveria gostar do livro. E gostei.
Não só por causa disso. Afinal, deleite-me com Luiz Edmundo (“O Rio de Janeiro de meu tempo”), carioca, e estou apreciando as memórias de Pedro Nava (“Baú de Ossos”, “Balão Cativo” e mais quatro volumes), mineiro.
E aí me deparo com uma foto de Nara Leão bem no comecinho do texto. Covardia, Rivaldo: Narinha foi uma de minhas paixões sessentistas. Covardia botar uma foto dela no primeiro capítulo. Elis Regina canta pouco adiante, Mauro Ramos ergue a taça Jules Rimet, o Repórter Esso é mencionado nalgum outro ponto. As lâminas Gilette; a loção Aqua Velva, o creme dental Kolynos... Esse era o nosso mundo, mas, nada se compara a Narinha Leão.
Também “vi o Recife das pontes nas filas do Cine São Luiz em plenas domingueiras de regatas pelo Capibaribe da rua da Aurora, de paletó e gravata, atento aos lanches da Arcádia e aos sorvetes com saladas de frutas do Gemba”. Como você, eu passava pela Avenida Guararapes (hoje, um lixo), parando no Café Sertã, no bar Savoy, nas bancas do Gasolina ou Patrocínio.
Conheci jornalistas boêmios citados em seu livro (jornalista eu era; boêmio, não; hoje, me arrependo): Ronildo Maia Leite, Wladimir Calheiros, Wilson Soares, Ernani Régis, Garibaldi Sá, Anchieta Hélcias. E outros, nem todos amantes das noites e bares: Aldo Paes Barreto, Selênio Siqueira, Ricardo Carvalho, Paulo Barreto, Gilberto "Betoca" Prado, Ivanildo Sampaio, Mauro e Ricardo Correa, Divane Carvalho, Maria das Graças Lima e Silva, Jeová Franklin, Antônio Brito, Geraldo Seabra, Marcílio Viana Luna, “seu” Netto, Jodeval Duarte...
Em Boa Viagem, também passei em frente à Casa Navio, um monumento ao mau gosto que, entretanto, devia ter sido conservado; bebi no Veleiro, no Castelinho; jantei no Barril, no Costa Brava. No Pina, pouco mais ao Norte, havia o cano de esgoto, (emissor submarino, se preferir), o restaurante Maxime, a sorveteria Daqui, rival da Xaxá, que ficava na Boa Vista.
Não frequentei o Colégio Nóbrega, mas, certamente, nos encontramos muitas vezes nos Jogos Colegiais, aquele tempo maravilhoso em que as alunas em flor, lindas como elas só, se concentravam nas quadras e nas torcidas. De algumas, você fala, de outras, não: Brunilde Trajano, Martha Pontual, Solange Collier, Chianca, uma certa Conceição, do Colégio Eucarístico. E as Fátimas, Cristinas, Reginas, Terezas, Veras? Sem trocadilhos, como eram abundantes as meninas bonitas.
Como você, também “dancei no Clube Internacional em inesquecíveis Encontro de Brotos, das seis às dez horas de domingos, marotos noturnos, ao som vibrante dos conjuntos de Mario Griz, Fernando Borges (...)”, mas me livrei, por morar em lugar alto, do “16 de junho de 1966, a maior cheia que atormentou o Recife, [inundando] ruas e praças, (...) quase cobrindo nossas pontes” (pág. 35).
Meu espaço acabou, caro amigo virtual Rivaldo Paiva. Seu livro é uma delícia. Irei relê-lo muitas vezes. Obrigado. 

(Publicado no Facebook, 10/3/2019)

MANDIOCAS DA IRA

Gustavo Maia Gomes
Muito amigos, os lavradores José Eugênio e João Gomes, moradores em Cordovil, arrabalde do Rio de Janeiro, tinham um trato, pelo qual o segundo entregava ao primeiro as mandiocas de sua roça, que este transformava em farinha e vendia. O lucro era repartido equitativamente entre os dois.
De acordo com o costume, neste ano, João Gomes entregou sua mandioca a José Eugênio. Mas o amigo nada fez com aquilo. Até que Chico Batista, conhecido dos outros dois, procurou João Gomes, para dizer-lhe que vira na casa de José Eugênio, jogadas a um canto, apodrecendo, as raízes de mandioca que lhe haviam sido confiadas.
Intrigado, João Gomes foi até seu amigo, a quem interpelou:
– José, você não quer mais cumprir o trato que fez comigo?
Este encarou-o firmemente e respondeu:
– Olhe, o que eu quero é matar todo mundo.
Assim falando, dirigiu-se para o interior da casa, de onde voltou, instantes depois trazendo um machado a desferir golpes sobre João Gomes, a quem feriu nos pulsos, pois este procurava, com os braços, amparar as pancadas.
Vendo que seria morto, saiu Gomes a correr, indo se refugiar na casa de Chico Batista, ocultando-se num quarto, cuja porta fechou. Mas, Eugênio estava feroz e arrombou a porta do aposento, recomeçando a agredir o plantador de mandiocas.
Tratou a vítima novamente de fugir, mais uma vez, indo se ocultar numa grota, enquanto o dono da casa, Chico Batista, armando-se também de um machado, assumiu sua defesa, afugentando e perseguindo o agressor.
Desde então, ninguém sabe de José Eugênio, mas há quem diga que ele foi morto. Chico Batista desapareceu. João Gomes, ferido, foi levado, primeiro, ao Hospital do Pronto Socorro e, em seguida, ao Nossa Senhora do Socorro.
Como não podia deixar de ser, em face de tamanho eufemismo, recebeu os devidos socorros e não corre perigo de vida. Ao repórter, ele confidenciou: – Mandioca, nunca mais.
[Adaptado de “O que eu quero é matar todo mundo”, notícia policial publicada em A Noite (RJ), 28/7/1934.]

(Publicado no Facebook, 11-3-2019)

SACOLAS DA VIRTUDE

Gustavo Maia Gomes
Os economistas franco-brasileiros (ou braso-franceses?) estão convencidos de que pobreza se resolve com esmolas, enquanto eu e outros esquisitos achamos que ela se extingue com produção.
Pois Lourdes e eu fomos a Toritama (Agreste pernambucano, 180 km do Recife). É a capital do jeans, uma das três principais cidades do Polo de Confecções. Fica numa das regiões mais sujeitas às secas em todo o Estado. E exibe um dinamismo econômico invejável.
Ali não há miséria, nem desemprego. Todo mundo produz alguma coisa — preferencialmente, confecções — ou a vende. Num domingo à tarde, surpreendeu-nos a quantidade de gente de todos os cantos do Nordeste vinda à cidade para encher suas sacolas — as sacolas da virtude — com roupas que serão comercializadas mundo a fora.
Toritama não precisou de nenhum programa governamental de apoio para aparecer e se firmar. Nem se preocupou com a exploração do capitalismo financeiro internacional. Ou com o colonialismo interno. Compreendeu que encontrar culpados para nossos fracassos é a melhor garantia de que continuaremos a fracassar.
Partiu, então, para a luta. E venceu. Hoje, já tem uma classe média verdadeira (ao contrário daquela inventada pelo PT). Seu povo vive muito melhor do que quem mora nas cidades onde impera a Bolsa Família.

(Publicado no Facebook, 18-3-2019)

LILY LAGES ESCRITORA

Gustavo Maia Gomes
Graças às facilidades da tecnologia moderna, consegui comprar três livros de Lily Lages (1907-2003), a médica e feminista alagoana. São os que mais me interessaram, por não se caracterizarem como livros de Medicina (de que entendo nada), mas de crítica literária e pensamento social.
Foram todos publicados em edições fora do circuito comercial no Rio de Janeiro, onde a autora viveu a maior parte de seu tempo: "Olhos e olhares" (1992), "Beethoven no mundo do silêncio" (1994) e "Arthur Ramos e sua luta contra o preconceito racial" (1997).
Devo confessar que não me impressionaram extraordinariamente, exceto por revelarem da autora um espírito inquieto, indagador, aberto para além das fronteiras de sua profissão. Embora não faltem, sobretudo, no livro sobre Beethoven, muitas considerações estritamente médicas.
Um detalhe é que todos os três exemplares que consegui comprar na Estante Virtual trazem dedicatórias de Lily.

(Publicado no Facebook, 19-3-2019)

“QUEM VAI PRA FAROL É O BONDE DE OLINDA”

Gustavo Maia Gomes
Algumas expressões populares merecem a eternidade. Essa do título é uma delas. Significa “nessa conversa fiada eu não caio” com a conotação de que o mentiroso gosta de “fazer farol”, contar vantagens.
Há um frevo-canção de Capiba (1904-97) que começa assim: "Você diz que gosta de mim / Mas só pode ser brincadeira de berlinda / Por que você mente tanto assim? / Quem vai pra farol é o bonde de Olinda". E prossegue: “Você diz a todo mundo que é milionária, mas só lhe vejo andando a pé”.
-- Nem mesmo de bonde? -- Azar dela, pois, “as viagens morosas para os bairros distantes do centro da cidade, com as pessoas sentadas bem juntas umas das outras, em ambiente arejado, favoreciam as conversas, as leituras de jornais, livros e revistas, as amizades e os namoros”.
Mas a moça de Capiba, aparentemente, saiu da linha, ou perdeu o bonde. E com a repetição dessas expressões quero enfatizar uma coisa: o bonde marcou época. O bonde elétrico do Recife e Olinda, que funcionou de 1914 a 1957, marcou época.
Eu andei nele. A linha de Casa Amarela era pela Estrada do Arraial, a cem metros de onde eu morava. Com menos de dez anos de idade, acompanhava meu pai ou irmão mais velho.
“Hoje, quem quiser matar as saudades ou conhecer um bonde, há um, do tipo pequeno, com 36 lugares, exposto à visitação pública nos jardins do Museu do Homem do Nordeste”, da Fundação Joaquim Nabuco de Casa Forte, Recife.
Foi o que eu fiz.

(Citações retiradas de Maria do Carmo Andrade. "O bonde elétrico no Recife". Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>. Acesso em:20 mar 2019.)
(Publicado no Facebook, 20/3/2019)

PORTINGLÊS


Gustavo Maia Gomes
Business, DVD-ROM, bullying, fake news, Wi-Fi, digital influencer, e-mail, coaching, personal trainer... São palavras, siglas e expressões inglesas que já estão e continuarão a estar conosco, ainda mais agora que nem sequer visto de entrada precisam ter. Exagero? Talvez, sim; talvez, não.
Não começou assim. Antes, importávamos francesas. Sessões de cinema eram matinées ou soirées; a vida noturna acontecia nas boites; os homens usavam pince-nez (nunca vi uma foto de mulher com esses precursores dos óculos modernos); havia os chez-moi, chez-vous, os en avant tous e en derrière das festas juninas.
Um dia, trocamos as paroles pelas words. Isso começou ainda no século XIX com as railways, as Tramways & Power companies e continuou com os country clubs, os derbys e, sobretudo, o foot-ball. A boa notícia é que, neste último caso, a terminologia associada ao jogo terminou sendo toda traduzida ou adaptada para grafias portuguesas.
Goal-keeper virou goleiro; player, jogador; half-back, zagueiro; off-side, impedimento; corner, escanteio; foul, falta; hand, toque de mão; match, partida ou jogo; scratch, escrete; team, time. Penalty continuou a ser penalty; quem era crack, tornou-se craque. Não mais foot-ball; futebol.
Hoje, vivemos a era dos tablets, smart phones, Internet, Business-to-Business, backup, banner, bit, bite, Bitcoin, chat, cookie, download, e-commerce, firewall, hacker, home-page, html, http, https, login, logoff, logon, malware, online, offline, password, scanner, site, software, hardware, spam, upload, USB, World Wide Web…
Amanhã, talvez, tenhamos tudo isso em português, mas -- ilusório consolo -- haverá outras palavras de pronúncia difícil e grafia impossível. Que tal estas: 不要紧,猫的颜色,只要它抓住老鼠 ? (Segundo o Google, “não importa a cor do gato, desde que ele cace os ratos”, em mandarim.)
(Publicado no Facebook, 21-3-2019)

O PRIMEIRO SOGRO DE ALÍPIO

Gustavo Maia Gomes
Em “O Trem para Branquinha” (Recife: Cepe, 2018) relembro um pouco Alípio Maia Gomes (1878-1916), irmão de meu avô paterno Nominando. Há poucos dias -- e faço aqui o registro --, descobri novas informações sobre seu primeiro sogro, Rodrigo Antônio Falcão Brandão (1865-1911).
Aos 19 anos, Alípio mudou-se de Maceió para Salvador onde, em 1903, formou-se médico. Foi morar e trabalhar em Santo Amaro da Purificação, uma cidade do Recôncavo baiano. Ali conheceu Luíza Pires Guimarães Brandão (1887-1910), que se tornaria sua esposa em 1906.
Precocemente viúvo, pois Luíza morreu em 1910, Alípio casou-se, em seguida, com Elisette Cardozo. Os únicos descendentes dele que conheço são desse casamento com a filha do jornalista Sergio Cardozo (1858-1933).
O pai de Luíza, Rodrigo Brandão era figura importante em seu Estado. Há uma extensa referência a ele num livro de louvações ao governo Luís Viana (viveu de 1846 a 1920; governou a Bahia de 1896 a 1900). Transcrevo a seguir:
“Deve partilhar muito justamente dos louvores (...) que tecemos ao digno governador da Bahia um dos seus mais dedicados e infatigáveis auxiliares, o Sr. Dr. Rodrigo Antônio Falcão Brandão, digno secretário do Tesouro e da Fazenda.
Tive a felicidade de ser a ele apresentado e devo consignar aqui que a sua pessoa cativou-me pela gentileza do trato e pelos elevados dotes do seu espírito bem cultivado e bem orientado no que se refere a finanças e administração pública.
Não é o Dr. Rodrigo Brandão um simples secretário que se limite a por em execução leis ou medidas de iniciativa alheia: é um perfeito auxiliar do governador e a sua opinião abalizada é sempre consultada quando se trata de defender e acautelar os interesses do Estado.
Conhece a fundo a vida econômica da Bahia: sabe onde radica sua riqueza e quais os meios que devem ser empregados para fazer multiplicar os seus recursos. Fiel cumpridor da lei, interpreta-a e a faz executar sempre em proveito do Estado.
Mais do que escrupuloso é de uma meticulosidade extraordinária para tudo quanto se refere ao bom andamento dos negócios da secretaria que dirige. É assim que da sua repartição jorra constantemente a luz e, dia a dia, pelos dados oficiais que faz inserir na imprensa, pode acompanhar o desenvolvimento econômico do Estado.
O ilustre governador deve ver na pessoa do Dr. Rodrigo Brandão o seu auxiliar mais eficaz na obra de engrandecimento material do Estado e o mais competente para cooperar na realização de seu programa financeiro, ao qual já deve a Bahia muitos e importantes serviços.”
(Trecho citado de João de Pino Machado. O Estado da Bahia e a Administração do Conselheiro Dr. Luís Viana, Rio de Janeiro, 1899, págs. 59-60.)

(Publicado no Facebook, 27-3-2019)

VIÇOSA DE ALAGOAS, 1871, 1891

Gustavo Maia Gomes
Lugar de origem de muitos Bahias parentes meus, a Viçosa alagoana foi, até 1831, o povoado Riacho do Meio. Neste ano, virou a Vila de Assembleia. Em 1890, teve o nome alterado para Viçosa. Foi promovida a cidade (1892) e voltou a se chamar Assembleia (1943), mas seis anos depois recuperaria o nome atual.
Escreveu Tomás Espíndola (1871): “Assembleia [fica], à margem esquerda do Paraíba, 5 léguas de Atalaia, 7 de Quebrangulo, 6 de Anadia e 10 ao Sul de Imperatriz [atual União dos Palmares]. Principia a florescer pela sua grande cultura de algodão, cujo comércio seria muito mais desenvolvido se não fossem as péssimas estradas.”
Prossegue: “tem mais de 220 fogos [residências], alguns sobrados, uma agência de rendas provinciais e outra do correio e duas escolas de primeiras letras, uma para cada sexo”. (“Descrição física, política e histórica da Província das Alagoas”. 2ª edição. Maceió: Tipografia do Liberal, 1871, pág. 230.)
Vinte anos depois (1891), o "Almanak do Estado de Alagoas" pintou um retrato mais detalhado da demografia (“são cerca de 27.000 a 28.000 almas”) e das atividades econômicas da então Vila de Viçosa.
“Há regular animação no giro comercial na vila e em algumas de suas povoações”, mas o panorama industrial não era tão favorável: “estabelecimentos de bolandeiras [máquinas de descaroçar algodão] e maquinismos, uns movidos por água, outros por animais, para descaroçamento, preparo e ensacamento do algodão, e mais diversas oficinas de artes e ofícios mecânicos e destilações de aguardente, são os únicos ramos da indústria local”.
No que tange à agricultura e pecuária, “possui o município boas matas, que produzem bastante madeira, terrenos frescos e férteis, nos quais se cultivam em grande escala a cana de açúcar e o algodão, o fumo, a mandioca e outros legumes, havendo já em algumas propriedades o início do plantio do café. Criação de gados há pouca, pois a natureza dos terrenos é mais apropriada para plantações”.
As estradas eram “cortadas de riachos, onde há pontes que facilitam o trânsito pelo inverno”. Foram contadas 19 lojas de fazenda, 67 de secos e molhados, seis alfaiates, um salão de bilhar, oito ferreiros, quatro fogueteiros, cinco funileiros, 15 máquinas de descaroçar algodão, cinco marceneiros, um médico, seis ourives, quatro padarias, uma farmácia, dois professores de música, sete sapateiros e dois seleiros.
Engenhos de açúcar existiam 72, nos limites do município. Alguns com nomes sonoros: Baixa Funda, Bálsamo, Barra da Caranguejeira, Belo Cruzeiro, Bicho Preto, Boa Sorte, Cigana, Dois Irmãos, Firmeza, Erva do Rato, Mata Limpa, Mata Verde, Viados. (“Almanak do Estado de Alagoas”, 1891, págs. 599 ss)

(Publicado no Facebook, 28-3-2019)

Bico de Ouro

Gustavo Maia Gomes
(O texto seguinte é uma transcrição, ligeiramente editada, de notícia publicada no Diario de Pernambuco, 24/9/1910, pág. 1.)

Na rua dos Caldeireiros residiam Clidenor Alcovia e as mulheres Antônia Florentina da Silva, cognominada Bico de Ouro, e Severina da Silva. O homem, sendo amasiado com Antônia, tinha Severina como empregada. Viviam todos ali em harmonia, mas é preciso notar que os dois amantes, há alguns dias, vinham ficando cheios de desconfianças.
Clidenor empregava-se em vender joias ambulantemente e conhecia certos Estados brasileiros, tendo residido mais de um ano na Bahia, o que o levava a ter em mente voltar para ali. Antônia Florentina, que foi meretriz por muitos anos aqui na capital, era em absoluto refratária a qualquer sorte de orgias e fiel ao seu amante.
O ciúme levava Clidenor a cuidar em demasia de sua amásia, a todo instante privando-a de divertimentos e vigiando-a tanto quanto podia. Antônia Florentina, por sua vez, dava-se ao catimbó e à cartomancia, querendo por meio disto aquilatar o amor que lhe consagrava o amante e o que lhes podia no futuro suceder.
Clidenor supunha ser atraiçoado pela mulher e, para a tornar apreensiva, falava em viajar, deixando-a em Pernambuco. Ela, nas cartas, procurava a veracidade do que lhe falava o amásio e afirmava ser impossível uma separação, pois o ocultismo lhe demonstrava que se Clidenor viajasse, morreria.
Às quatro horas da manhã de ontem, na residência de Clidenor e Antônia Severina, passou-se uma cena trágica: havendo se agasalhado ambos às 10 ½ da noite de anteontem, vieram a falecer pela madrugada.
Quando a criada foi abrir a porta da casa, notou, olhando para o aposento dos amantes, que o rosto de Clidenor estava coberto de sangue. Correu à vizinhança e narrou o que tinha visto. Logo, o delegado do primeiro distrito foi informado.
Compareceu ao local. A rua estava enormemente movimentada. A modesta residência dos desventurados, em nada higiênica e asseada, regurgitava também de indivíduos. Na sala de visitas demoravam desvalorizados móveis. Em tudo se notava o desleixo e a falta de asseio.
Na alcova principal, em um leito vulgar, encontravam-se os cadáveres de Clidenor e Antônia. Um de frente para o outro. No meio da cama, um revólver com duas cápsulas detonadas. O projétil que feriu Bico de Ouro atingiu-a na faringe, saindo um pouco acima do ouvido direito. A bala que matou Alcovia se internou pelo ouvido esquerdo deste infeliz estrangeiro.

(Publicado no Facebook, 31-3-2019)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

“Vem agora, bandido!”

Gustavo Maia Gomes
(Adaptado de “A mulher que estrangulou o marido”. Jornal do Brasil, 4/7/1929)

O tenente Franco, sua mulher Dalila 
e o resultado da última briga do casal
(Jornal do Brasil, 4/7/1929)

Dalila falava com desembaraço, em voz baixa, sem gesticular, as mãos que apertaram a garganta do tenente Franco escondidas sob a mesa. Disse ter sido casada durante 18 anos e que fora sempre infeliz. O marido, ébrio incorrigível, ciumento ao extremo, era responsável por seus pesares. 

Franco costumava entrar em casa a desoras, sempre violento. Constantemente, nascia daí uma discussão acalorada e os cônjuges acabavam em luta corporal. Certa vez, o tenente ensopou a colcha da cama e com ela cobriu o rosto da mulher, sufocando-a por uns momentos. Na rua, em público, o marido a insultava, muitas vezes.

Sobre a noite fatídica, a mulher confessou ter apertado a garganta do marido em ato de defesa. Disse que deviam ser oito horas da noite quando Franco, embriagado, chegou da rua. Começou insultando-a à frente do prédio. Depois, espatifou uma cadeira na porta. Dalila achava-se em casa com as filhas Diva, Lourdes e o filho Nelson.

Depois de provocar escândalo em frente à casa, o tenente avançou para a esposa. Travaram os dois uma luta encarniçada. Rolavam pelo chão. Mordiam-se. Esbofeteavam-se. Gemiam. Diziam imprecações. Houve um momento em que se ergueram e miraram-se, em desafio. Tornaram então a se engalfinhar.

Dessa vez, a arena foi o próprio leito conjugal. Diva, aflita e cheia de ódio pelo pai, procurava auxiliar a progenitora, quando ela ficava por baixo. Afinal, Dalila, de cima, conseguiu apertar o pescoço do marido, aplicando nessa operação todas as suas forças. Ele debate-se, agitando os braços e as pernas. Súbito, seus membros caíram sobre o leito. Então, Dalila, recompondo-se, insistiu no desafio:

– Vem agora, bandido! – Franco, deitado no leito, de ventre para cima, tinha as pernas pendentes da cama. Como não se mexia. Dalila aproximou-se. – Vem, se és homem! – Passaram uns momentos. A mulher começou a se impressionar com o estado do marido. Sacudiu-lhe, então, a cabeça. O homem estava morto.

Enquanto Dalila prestava depoimento, seus quatro filhos, na outra sala, riam, como se nada tivesse acontecido. No término, Diva indagou da mãe se ela preferia salame ou queijo no sanduíche. Alguém lhe perguntou se estava arrependida. Ela apenas disse: – Talvez.

Nesse momento, saltaram-lhe as lágrimas dos olhos. Deixou a cabeça cair sobre o peito. Estava soluçando. Suas mãos, então, surgiram pela primeira vez. São como todas as outras, mas, naquele momento, assemelhavam-se a garras de ferro, pavorosos instrumentos do crime.