quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

ARQUEOLÓGICO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO ANDRÉ


Gustavo Maia Gomes

O IAHGP (Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco) comemorou, ontem, 158 anos de existência. Fez sessão solene e deu posse a novos sócios, dentre os quais André Heráclio do Rego. É um recém-amigo, dos melhores.

Dou sorte com os andrés: André Maia Gomes LagesAndré DurãoAndré RegisAndré Magalhães... E com as andreas: Andrea OliveiraAndréa Mendonça ... E com os alguma-coisa-andrés: Carlos André Magalhães, por exemplo. São todos gente da melhor qualidade.

Se a Rádio CBN me contratasse como filósofo (Ah, eu queria tanto ser um desses Sócrates fast-food !), vocês ouviriam minha mensagem:

-- Não existe o paraíso celestial; o proletariado fez as revoluções erradas. Precisamos de um mundo só de andrés e andreas.

Um lugar pacífico, sem aquecimento global, sem propriedade privada, sem desigualdades, sem economistas franceses, sem a exploração dos andrés pelos andrés.

Na rua, as pessoas se cumprimentariam: -- Oi, André? -- Oi, André.

Na missa, o padre rezaria: -- Em nome do Pai, do Filho e do André.

No jogo de futebol, o locutor diria, entusiasmado: -- Avança André, passa para André, dribla André, serve André... Ih! A bandeirinha Andrea marcou impedimento daquele jogador baixinho cujo nome... cujo nome... esqueci temporariamente... (O colega o socorre, fora do microfone.)

-- André!

Isso dito, gostei muito da sessão de ontem. O IAHGP é um patrimônio pernambucano; André Heráclio do Rego, um competente diplomata e historiador. Estamos todos de parabéns.


(Publicado no Facebook, 29/1/2020)

NOITES AMAZÔNICAS


Gustavo Maia Gomes

A Mercearia Pará – loja especializada em preparar e vender alimentos da Amazônia – é um projeto de minha mulher, Lourdes Barbosa. Imaginando como poderia lhe dar alguma ajuda nisso, tive uma ideia interessantíssima. Bem, não estou seguro de que seja, realmente, “interessantíssima”, exceto para mim mesmo. Seria boazinha, talvez? Mais ou menos? Tolerável? Irrelevante? Contraproducente? Um desastre?

Enquanto me inquieta essa dúvida, mal consigo olhar para picolés de cupuaçu, patos no tucupi, jambu, maniçoba, farinha de Bragança, açaí com tapioca, tacacá, castanhas, peixes filhotes, caranguejos... Quem sabe, meus escassos leitores poderiam me ajudar? Exponho a ideia e, quem quiser, emite sua sincera opinião sobre ela.

Lourdes, além de suas outras qualidades, é ótima na cozinha; eu gosto de livros e de contar histórias. Combinando as duas coisas, imaginei fazermos uma série de encontros gastronômico-intelectuais. Tenho até um nome para eles: “Noites Amazônicas de Sabor e Livros”. Seriam jantares paraenses antecedidos por breves notícias sobre episódios marcantes da história regional.

Considerem os seguintes temas:

1. Anna C. Roosevelt e a civilização tapajônica (c.4000 a.C.)
2. Orellana descobre o Rio Solimões-Amazonas (1542)
3. Fugindo da seca: cearenses na Amazônia (1877)
4. Os teatros da Paz (1878) e Amazonas (1896)
5. Carlos Gomes escolhe morrer em Belém (1896)
6. A construção da Ferrovia Madeira-Mamoré (1907-12)
7. Belém e Manaus no auge da borracha (c.1910)
8. A expedição Rondon-Roosevelt (1913-14)
9. Percy Fawcett e a cidade perdida (1925)
10. Do sonho ao pesadelo: Fordlândia (1927-45)
11. Getúlio Vargas e os Soldados da Borracha (1943-45)
12. Silvio Amorim e sua motocicleta transamazônica (2011)

Os assuntos acima foram objeto de livros, artigos e reportagens. Existe a respeito dos mesmos farto material iconográfico. Será que discorrer e provocar o debate com os convidados sobre cada um deles (um por noite) aumentaria (Diminuiria? Não teria efeito algum?) o interesse que os jantares de qualquer modo despertariam?

(As imagens representam: 1. A construção de um bergantim na selva amazônica, durante a expedição Pizarro-Orellana. 2. O percurso feito pelos

(Publicado no Facebook, 28/1/2020)

SABEDORIA CONTEMPORÂNEA


Gustavo Maia Gomes

Como resenhar 1.500 páginas em uma? Nem tentarei. Apenas, aviso aos navegantes: estes três livros citados nas Referências são imperdíveis.

Pinço frases que grafei enquanto os lia. Não são necessariamente as melhores. Mas, são boas o bastante para instigar nos potencialmente interessados o desejo de enfrentar as 570 páginas de “Bourgeois Dignity”, as 686 de “O Novo Iluminismo” e as 214 de “O Chamado da Tribo”.

“A renda real por pessoa na atualidade é, pelo menos, 16 vezes maior do que era em torno de 1700 ou 1800, num país como a Grã-Bretanha e outros que experimentaram o crescimento econômico moderno. (...) Nas economias americana ou sul-coreana (...) o desempenho foi ainda melhor. E se novidades como viagens de avião a jato, pílulas de vitaminas e comunicação instantânea forem apropriadamente computadas, o fator de melhoria material vai para 18, 30 ou muito mais” (Mc Closkey, pág. 48).

Isso tem sido algo absolutamente inédito na História humana, continua a autora. Não aconteceu nem na China da dinastia Song, nem no Egito do Novo Reino, nem nas gloriosas Grécia e Roma antigas. Nem no Brasil, acrescento eu. Com efeito, exceto nos últimos dois séculos, a pobreza absoluta, generalizada e sustentável sempre foi o estado normal da humanidade. Hoje, finalmente, isso já não é verdade, para a imensa maioria das pessoas.

“O mundo é cerca de cem vezes mais rico hoje do que era há dois séculos e a prosperidade está se distribuindo de modo mais uniforme por todos os países e povos do mundo. A proporção da humanidade que vive em extrema pobreza caiu de quase 90% para menos de 10% e, durante o período de vida da maioria dos leitores deste livro, pode aproximar-se de zero” (Pinker, pág. 381).

E, finalmente, Vargas Llosa, que enfoca mais o lado político:

“A igualdade perante a lei e a igualdade de oportunidades não significam igualdade nos ingressos e na renda, coisa que liberal algum proporia. Porque isso só pode ser obtido por meio de um governo autoritário que ‘iguale’ economicamente todos os cidadãos mediante um sistema opressivo, fazendo tábua rasa das diferentes capacidades individuais, imaginação, criatividade, concentração, diligência, ambição, espírito de trabalho, liderança. Isso equivale ao desaparecimento do indivíduo, sua imersão na tribo" (Vargas Llosa, pág. 19).

REFERÊNCIAS

Deirdre N. Mc Closkey, “Bourgeois Dignity: Why Economics can’t Explain the Modern World”, Chicago, The University of Chicago Press, 2010

Steve Pinker, “O Novo Iluminismo”, São Paulo, Companhia das Letras, 2018

Mario Vargas Llosa, “O Chamado da Tribo: Grandes Pensadores para o Nosso Tempo”, Rio de Janeiro, Objetiva, 2019.

(Publicado no Facebook, 27/1/2020)

JULIÃO, A BIOGRAFIA


Gustavo Maia Gomes

Perguntei a jovens instruídos: "Já ouviu falar em Francisco Julião?" Responderam-me: "Não". Lamentável. Pois, nos anos 1955-64, o pernambucano Francisco Julião Arruda de Paula (1915-99) foi uma das personalidades políticas mais importantes do país. Teve os direitos políticos cassados logo após a derrubada de João Goulart. Fugiu da perseguição policial, mas foi capturado e preso em junho de 1964.

Julião formou-se (em 1939) pela Faculdade de Direito do Recife, na mesma turma de meu pai. (Que o visitou na prisão, num gesto de coragem, embora os dois jamais tivessem tido maiores ligações.) Advogava de graça em favor dos camponeses. Isso lhe deu visibilidade para se tornar, um pouco adiante, primeiro, deputado estadual, em seguida, federal.

Pela sua liderança no campo, os serviços de informação norte-americanos o consideravam um potencial Fidel Castro brasileiro. De fato, os dois tinham muitas afinidades ideológicas. Tanto que, escrevendo da prisão para sua filha recém-nascida, Julião disse: "só de uma coisa não me despojaria, Isabela, para te ter nos braços: de minha dignidade de revolucionário".

Professar a crença na "Revolução" (à moda de Marx, Engels, Lênin, Mao, Stálin ...) como um substituto terrestre do desacreditado paraíso celestial era menos absurdo então do que viria a ser depois, quando se tornou inegável que os governos comunistas ou socialistas não passavam de ditaduras sanguinárias produzindo gigantescos fracassos econômicos.

Não é estranho, portanto, que Julião tenha seguido aquela moda. (Eu próprio fui, também, parcialmente atingido por ela, na mesma época.) Penso, entretanto, que o seu legado mais importante à posteridade não foi a fé na Revolução, mas a integridade moral que sempre demonstrou ter. Mesmo quando estava flagrantemente errado em suas posições políticas.

Cláudio Aguiar ("Francisco Julião: a Biografia", Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2014) escreveu um livro valioso, ganhador de prêmios. Só agora o li. Recomendo que façam o mesmo os interessados na história política recente do Brasil.

(Publicado no Facebook, 24/1/2020)

DIAS DE LUZ


Gustavo Maia Gomes

Estou lendo as biografias de Severino Pereira da Silva e de Rubem Braga. Terminei de ler, há dois dias, Mario Vargas Llosa, “O chamado da tribo”.

Pereira foi um jovem pobre que saiu de Taquaritinga do Norte (PE) para se tornar, graças a muito trabalho, dedicação e talento, um dos maiores industriais brasileiros, em meados do século XX.

Braga, jornalista e escritor (admirado por meu pai) foi, talvez, o maior cronista brasileiro, aí pelos anos 1950-70. E olhe que a concorrência era pesada: Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Porto, Carlinhos de Oliveira, Nelson Rodrigues ...

Vargas Llosa trata de grandes pensadores liberais (quase todos dos anos 1900) que influenciaram a formação de seu pensamento econômico e político: Adam Smith, Ortega y Gasset, Friedrich Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel. Preciosas reflexões.

Também leio (na verdade, estudo) “O homem e o rio”, memórias poéticas, truncadas, caóticas de João Fernandes Lins, avô de Ricardo Maia, primo distante que vem se tornando próximo. (“Há os Maias de Eça e os Maias de Ricardo”, escrevi no “Uma noite em Anhumas”, livro que espero publicar neste ano de 2020.)

Escrevi isso tudo, no fundo, para dizer outra coisa: hoje faz um dia esplêndido, na minha casa com Lourdes. Menos, porém, do que fará amanhã, quando o Alto do Céu vai voltar a se encher de luz, mesmo que chova.

Referências

Luís Olavo Fontes, A passagem do cometa: Severino Pereira da Silva, pioneiro da industrialização brasileira no século XX" (Rio de Janeiro, Aeroplano, 2013)

Marco Antonio de Carvalho, "Rubem Braga, um cigano fazendeiro do ar: A biografia". (Nova edição, revista.São Paulo, Biblioteca azul, 2013)

Mario Vargas Llosa, "O chamado da tribo: Grandes pensadores para o nosso tempo. (Rio de Janeiro, Objetiva, 2019)

João Fernandes Lins, "O homem e o rio: Meu opúsculo" (Maceió, 1982)

(Publicado no Facebook, 19/1/2020)

MEU PAI DEVIA ESTAR AQUI


Gustavo Maia Gomes

Mauro Bahia de Maia Gomes, meu pai, foi um grande homem. Gostava de boa música — e com ele, sobretudo, aprendi também a aprecia-la. Detestava corretores eletrônicos (que não chegou a conhecer, mas imagino o que pensaria deles) — e eu também os detesto.

Apreciava um bom restaurante, numa época em que isso era raro — e eu também gosto (ainda mais, depois de encontrar o amor de minha vida.) Era chegado a um rabo de saia, como se dizia então, e isso eu conto entre suas qualidades.

Gostava dos filhos, imensamente. De estar com eles, de conversar com eles, de vibrar com suas conquistas. De bebericar em sua companhia. Amava minha mãe, embora jamais tenha percebido que havia muito mais recompensas a serem colhidas na dedicação a ela do que na busca de prazeres sexuais fora do casamento.

Meu pai me ensinou a desfrutar da vida e por isso ser-lhe-ei sempre grato. Nunca foi rico. As heranças que recebeu, dos pais e de um tio que o tinha como filho, ele as gastou em viagens. Existe jeito melhor de transformar fazendas simbólicas em felicidade real?

Meu pai devia estar aqui, hoje, na casa que foi sua, ouvindo comigo as músicas que me ensinou a apreciar.

(Publicado no Facebook, 17/1/2020)

NÃO QUERO FASCISTAS !


Gustavo Maia Gomes

A crescente visibilidade e influência no governo Bolsonaro de cristãos medievais, moralistas do século dezenove, simpatizantes de Goebbels - fascistas, enfim - é preocupante. E nos alerta para a necessidade de, sem correr o risco de trazer de volta o pesadelo petista, reduzir esse povo à insignificância política, nas próximas eleições.

Eu não votei em gente que idolatra um episódio horripilante da história ocidental. Votei contra o PT, que estava construindo no Brasil e tentando fazer o mesmo na América Latina uma coisa tão ruim quanto o nazi-fascismo. Votei nas promessas de racionalidade na política econômica. (E reconheço: nessa área, dentro do possível, as coisas caminham bem.)

Votei contra a idolatria hipócrita do "politicamente correto". Votei a favor de uma postura não-demagógica na educação, no tratamento das minorias, na questão ambiental. Votei contra a mediocridade dos intelectuais e jornalistas presos a um ideário político que, em nome de belos princípios, produziu apenas ditaduras sanguinárias, epidemias de fome, pobreza persistente e uma cultura de bajulação aos poderosos.

Votei contra a corrupção, também. Votei a favor dos princípios básicos das sociedades politicamente abertas e economicamente ricas: a liberdade de imprensa, o respeito à diversidade de opiniões e de valores, a separação entre o Estado e as igrejas, a propriedade privada, a livre iniciativa.

Joseph Goebbels, que voltou a discursar ontem na voz do secretário de Cultura de Bolsonaro, foi um fanático nazista que, ao perceber a inevitável derrota de Hitler, assassinou os seis filhos menores e se suicidou em seguida (ele e a mulher) escondido no último refúgio do ditador seu ídolo.

Que ele continue no inferno.

(Publicado no Facebook, 17/1/2020)

SEISCENTOS E VINTE E TRÊS


Gustavo Maia Gomes

Vivi aqui muitos fins de semana, durante quatro anos, quando meus filhos mais novos Daniel, Pedro e Gabriela ainda eram crianças. Uma época marcante. Não será esquecida.

Gravatá (PE), por sua altitude (não alpina) de 500m e proximidade do Recife (80km), sobretudo, tornou-se importante cidade turística. Atrai gente de vários lugares.

Passamos o Natal, Lourdes Barbosa e eu, num apartamento em tudo semelhante ao seiscentos e vinte e três que tantas vezes nos abrigou — também a ela, sim — no passado.

Dias memoráveis. Ontem, recebemos minhas filhas Marília e Claudia. E os netos Lara, Luca e Theo. Jantamos fondues evocativos de tempos ainda mais remotos.

Tem havido paz, silêncio e sopas de cominho.

(Publicado no Facebook, 26/12/2019)

FLORIANO PEIXOTO E OS MAIAS


Gustavo Maia Gomes

Quero falar dos Maias meus parentes e começo com a piada muito popular no passado, mas hoje esquecida. Havia na redação de alguns jornais o busto representando Eça de Queiroz (1845-1900). Todo foca, ou seja, repórter iniciante, perguntava: – “Quem é esse?” E ouvia em resposta: – “Não é esse, é Eça”.

Acontece que “Os Maias” é um livro do escritor português. Foi isso que me fez recordá-lo. Ele e Machado de Assis (1839-1908) eram rivais. E aí me lembro de outra piada infame. nosso romancista maior havia acabado de morrer. Nas redações, repetia-se o seguinte diálogo: – “Sabe do Machado?” – “Não” – “Foi-se”.

O alagoano Floriano Peixoto (1839-95) – cuja esposa havia nascido em Branquinha (AL) –, era proprietário de três engenhos nessa região desbravada, entre outros, pelos Maias e os Maia Gomes: Duarte, Itamaracá e Riachão da Serra (Murici Web).

Vivendo desde há muito no Rio de Janeiro, o militar precisava ter quem cuidasse de suas terras em Alagoas. No caso do Riachão da Serra, a pessoa escolhida foi seu amigo (e primo em primeiro grau da mulher de Floriano) Antônio Fernandes Lins (?-?) . Os dois homens terminaram virando sócios e coproprietários da fazenda.

Foi com o casamento de João Fernandes Lins (1903-97, filho de Antônio) e Julieta de Oliveira Maia (1903-93) que os Maias entraram nessa história. João e Julieta foram avôs de Ricardo Ferreira de Souza Maia, fonte de muitas informações sobre seus ancestrais – de certa forma, também meus – que utilizarei no livro “Uma Noite em Anhumas”.

Contou-me Ricardo, baseado em lembranças de sua tia Geralda Maia Fernandes, que “em algum momento − talvez por volta do final dos anos 1940, ou inícios dos 1950 −, um genro de Floriano Peixoto procurou [João Fernandes Lins] para negociar a venda da parte herdada do Riachão da Serra, que ainda pertencia ao [espólio do] marechal. Meu avô materno, [que havia sucedido o pai dele na administração da fazenda] veio então a comprá-la”. Riachão da Serra permaneceu com os Maias até este ano (2019).

Muito antes disso, em 1945, o Diario de Pernambuco anunciou que a propriedade estava à venda. Devia ser o tal genro de que fala Ricardo. Ele, provavelmente, também estava buscando no Recife compradores para sua herança. (Embora o endereço de contacto fosse em Maceió.)

Pelo visto, apesar de quase centenária, Tia Geralda tem melhor memória que alguns jovens conhecidos meus. Que assim continue por muito tempo. Também sou grato a Ricardo Maia por me trazer de bandeja tantos fatos interessantes sobre seus avôs, bisavôs, pais, irmãos e tios.

Foi por isso que escrevi, em “Uma Noite em Anhumas”: “Há os Maias de Eça e os Maias de Ricardo”. Tá bom que o romancista português fosse um consumado mestre, mas, eu não troco as histórias de Branquinha pelas de Lisboa.

(Publicado no Facebook, 13/12/2019)

JÚLIO, JOÃO E AS MULHERES


Gustavo Maia Gomes

Meu primo Ricardo Maia, apoiado nas lembranças da tia quase centenária Geralda Fernandes Maia, passou-me uma riqueza de informações sobre os Maias de Branquinha (AL), que usarei no meu próximo livro.

Há detalhes não convencionais. Por exemplo: Júlio de Oliveira Maia (1875-c.1944) era admirador incondicional da cantora Carmen Miranda (1909-55) e João Fernandes Lins (1903-97), um “mulherengo inveterado”. Vêm a ser, respectivamente, bisavô e avô de Ricardo.

Copio de Ricardo Maia:

“Lembro-me de ter ouvido vovó Julieta [Fernandes Maia] recordar do pai [Júlio de Oliveira Maia] como um fã fervoroso de Carmen Miranda. Ela, certa vez, me contou que, quando já desterrado em Maceió, seu pai largava qualquer coisa que estivesse fazendo, por mais urgente que fosse, para escutar, empolgado e bem pertinho do rádio, a artista portuguesa cantar Tico-Tico no Fubá — acompanhada do Bando da Lua”.

“Certa vez, conversando com vovó Julieta já bem idosa, ela me contou que só depois do nascimento de tia Geralda descobriu que vovô [João Fernandes Lins] era um mulherengo inveterado. Então um dia, transtornada, procurou a mãe e anunciou que ia deixar o marido. Não teve, é claro, o apoio desta: ‘Não, minha filha! Nem pense nisso! Se o fizer, vai matar seu pai.’ Julieta desistiu da ideia — mas passou o resto da vida com ciúmes de João e na perseguição investigativa de seus passos”.

“Em 1973, Cacá Diégues estava filmando ‘Joana Francesa’ nas redondezas de Branquinha (AL). João Fernandes Lins, então prefeito da cidade, ofereceu um jantar à equipe de artistas. Julieta, enciumada pela presença de Jeanne Moreau (1928-2017) no seu reduto, recusou-se terminantemente a participar do evento, antecipando algum ‘enxerimento’ (ou ‘chamego’) do marido com a atriz francesa”.

Carmen Miranda sobreviveu mais de uma década a Júlio de Oliveira Maia. Quanto a João Fernandes Lins, imagino que ele tenha sofrido durante anos as consequências daquele jantar. Se, pelo menos, foi visto pela celebridade francesa, pode ter achado que valeu a pena.

(Publicado no Facebook, 11/12/2019)

A MAIA GOMES QUE NINGUÉM CONHECIA


Gustavo Maia Gomes

Em 23 de novembro último, relatei neste mesmo espaço meu encontro virtual com Maria Alexandrowna de Jesus Brandão Maia Gomes, a filha de Mário Brandão Maia Gomes (1906-43) e de Luzia Antunes (?-c.2011). Desde então, tenho conversado com ela por telefone ou WhatsApp e conhecido um pouco de sua história.

Mário Brandão Maia Gomes, filho de Alípio Maia Gomes (1878-1916) era, portanto, primo em primeiro grau de meu pai Mauro Bahia de Maia Gomes (1916-97) e de todos os netos do coronel Manoel Gomes dos Santos (1841-1925) e de Tereza de Jesus Maia (c.1851-c.1930), a “Mãe Tetê”. Os Maia Gomes de Branquinha (AL) começaram com o casamento desses dois.

A divulgação, em linhas gerais, da história de Maria Alexandrowna se dará apenas na medida em que ela o deseje e autorize expressamente. Por enquanto, obtive permissão para publicar três fotos dela: aos seis anos (1949), aos 45 (1988), e com a sua idade atual (2019).

Ela mora no Estado de São Paulo e se assina, no Facebook “Alexandra Maia“. Estou tentando interessá-la a vir ao Nordeste, após janeiro de 2020, para conhecer pessoalmente a parte da família de seu pai que permaneceu morando em Maceió, no Recife e na Bahia. Ela gostou da ideia.

E nós, o que achamos?

(Publicado no Facebook, 4/12/2019)

PLANO CRUZADO EM MANAUS


Gustavo Maia Gomes

Em 1985-86, fui Coordenador de Planejamento Global do Ipea-Iplan (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas / Instituto de Planejamento), à época vinculado à Secretaria de Planejamento da Presidência.

O cargo tinha esse nome pomposo, mas importância nenhuma. Contudo, deu-me oportunidades de participar de discussões relevantes sobre a economia brasileira de então. Sabíamos todos que o nosso problema maior, herdado do regime militar, era a inflação.

A resposta inicialmente dada pelo governo Sarney foi o Plano Cruzado, um reles congelamento de preços. Enganou muita gente. No primeiro momento, inclusive, a mim. Detesto ter errado daquela forma. Claro, eu não estava só. Muitos economistas, embalados por uma teorização defeituosa, acreditavam que se podia extinguir a inflação alucinada com um passe de mágica.

Mas isso não me conforta. Melhor é me refugiar na certeza de que não participei da elaboração daquilo. Eis a prova do que estou dizendo: três dias antes do Plano Cruzado (28/2/1986), eu estava em Manaus. E reverberando, em entrevista, as medidas inócuas com as quais o ministro da Fazenda camuflava a iminência do congelamento.

Deixaram-me ir a Manaus, naquela semana. Dificilmente se poderia imaginar um lugar mais longe de Brasília. Fiquei sabendo do Plano Cruzado pela televisão. Não foi ideia minha.

(Publicado no Facebook, 3/12/2019)

CAZUZA


Gustavo Maia Gomes

Nunca soube seu nome verdadeiro. Para todos os efeitos, ele era Cazuza. Cortou meu cabelo desde os treze ou quatorze anos (c.1960), até eu o perder de vista, quase quatro décadas depois, do meio para o fim dos anos 1990.

Primeiro, atendia num salão onde hoje é o prolongamento da Padaria Cidade Jardim (Vila dos Comerciários, Casa Amarela, zona Oeste). Depois passou para o Edifício Tereza Cristina, próximo ao Cine São Luiz (Boa Vista, Zona Central). Finalmente, até onde eu saiba, foi para o Hotel do Parque (Rua do Hospício, também na Boa Vista). Sempre no Recife.

Em 1993, levei meus filhos gêmeos Pedro e Daniel para serem atendidos por Cazuza. Tive a feliz ideia de registrar esse encontro em duas fotos. É possível que algum de meus amigos virtuais de gerações próximas à minha tenha conhecido Cazuza. Teria, também, notícias atuais dele?

(Publicado no Facebook, 3/12/2019)

MARTHA LEU O TREM PARA BRANQUINHA


Gustavo Maia Gomes

Recebi um e-mail da prima Martha Pedrosa Resende, de Belo Horizonte, que reproduzo com sua autorização e meu prazer.

“Gustavo:

Ainda em setembro, depois do nosso encontro em Salvador, terminei de ler o seu valioso livro, percorrendo-o do princípio ao fim. Quero parabenizá-lo pelo seu trabalho. Você, por meio de pesquisas, transformou os relatos familiares de histórias contadas em documentos comprovadamente verdadeiros.

Além disso, insere a história familiar em um contexto político-social. Também bonita é a parte mais literária do livro, quando você relata lembranças cheias de emoção de suas vivências infantis e adolescentes na Fazenda Monte Verde. Nesta parte, revela-nos uma faceta sentimental sua pouco conhecida.

Foi um prazer a leitura. Gostei do seu estilo de interlocução com o leitor, seus comentários pessoais, dando um toque de informalidade ao texto tão bem escrito. Você foi um historiador, memorialista e literato. Ainda que tardiamente, eu não poderia deixar de dar-lhe o meu parecer sobre o seu livro. Parabéns e grande abraço. Martha.”

(Publicado no Facebook, 26/11/2019)

APARECEU MARIA ALEXANDROWNA !


Gustavo Maia Gomes

Relato um evento extraordinário para quem, como eu, se interessa em restabelecer relações familiares há muito perdidas, ou jamais achadas. Há dois dias, fiz uma postagem despretensiosa em minha página do Facebook: quatro fotos de flores acompanhadas de quase nenhum texto. Recebi vários comentários, mas, sem detrimento dos outros, o mais importante foi este:

“Bom dia. Flores muito lindas. Eu me apresento: sou a filha de Mário Brandão Maia Gomes. Meu nome é Maria Alexandrowna de Jesus Brandão Maia Gomes. Moro em Campinas, Estado de São Paulo. Nasci no Rio de Janeiro no ano de 1943. Fui batizada na Igreja da Lapa. Meu avô [chamava-se] Alípio Maia Gomes.” (Alexandra Maia, em comentário a uma postagem minha no Facebook em 21/14/2019)

Eu já sabia da existência de Maria Alexandrowna (respeito sua grafia; o Diário da Noite, do Rio de Janeiro, na notícia fotografada abaixo, escreveu “Alechandrovna”, com "ch" e “v”). Também sabia que ela era filha de Luzia Antunes Brandão, a última mulher de Mário Brandão Maia Gomes. Mas, a nota publicada em 1946 (Mário havia morrido três anos antes) não diz quem era o pai de "Maria Alechandrovna".

Eis que a própria Maria me descobre, se apresenta, revela ser filha do personagem mais rocambolesco, digamos assim, de “Uma Noite em Anhumas”, meu livro prometido para 2020. Com efeito, o filho de Alípio Maia Gomes (alagoano que foi estudar Medicina na Bahia e morreu por lá, deixando muitos descendentes) teve uma vida pra lá de atribulada.

Jornalista, escritor, boêmio, vivia se metendo em confusões. Ficou órfão de mãe aos quatro anos e de pai aos dez. Já adulto, brigou numa boate e levou um tiro, no Rio de Janeiro; noutro momento, em Santo Amaro (BA), foi ferido num braço, que teve de ser amputado; matou um motorista, em Maceió, e passou uma temporada na cadeia, devido a isso. Publicou dois livros, um dos quais eu consegui comprar na Estante Virtual, li e gostei. Tentou se suicidar várias vezes. Na quarta, teve sucesso.

Alexandra Maia, como se assina a prima que desconhece (ainda) a existência de seus parentes em Maceió, Salvador, Recife e Rio de Janeiro, é muito bem vinda ao nosso círculo de amizades virtuais e presenciais.

(Publicado no Facebook, 23/11/2019)

JOÃO NÃO ERA JORGE


Gustavo Maia Gomes

Além de poeta com fama nacional, Jorge de Lima (1893-1953) era um clínico conceituado em Maceió. Quando, em União (hoje, União dos Palmares), Basiliano Sarmento (1846-1931), o homem mais rico de Alagoas, estava prestes a morrer, mandou chamá-lo.

Para seu auxiliar, Jorge convidou o médico João Florêncio Filho, o único que residia na cidade. Basiliano morreu em três dias. Pouco depois, o assistente apresentou uma fatura de cinquenta contos de reis. Assustado, o curador do espólio recusou-se a pagá-la.

Cinquenta contos era uma pequena fortuna. Equivaleria, hoje, a uns 500 mil reais. Frustrado no seu intento de enriquecer instantaneamente, João Florêncio requereu, então, o arbitramento de seus honorários e, tendo os peritos avaliado os serviços nos mesmos cinquenta contos, ele voltou a cobrar aquele valor.

Seguiu-se uma batalha judicial entre, de um lado, o curador do espólio e a fazenda estadual (Basiliano não tinha herdeiros conhecidos; num primeiro momento, seus bens foram recolhidos pelo Estado) e, de outro, o médico reclamante.

No final desse primeiro ato, o juiz mandou o espólio pagar oito contos de reis a João Florêncio. Cerca de R$ 80 mil, na moeda de hoje. Mas, o médico não aceitaria tão pouco. Apelou para o Tribunal Superior de Alagoas.

Ao fazê-lo, julgou ter na manga uma carta decisiva: os honorários pagos a Jorge de Lima. Cem contos! Isso, contudo, não sensibilizou os juízes: “Se houve razões de direito para justificar tão elevada soma — disseram eles —, essas razões não ocorreram em relação ao requerente”.

No final, decidiu o Tribunal Superior que o espólio de Basiliano Sarmento pagasse a João Florêncio Filho três contos e quatrocentos mil reis. Trinta e quatro mil reais de hoje, na avaliação mais otimista. O homem ficou arrasado, mas teve de se conformar.

Quem mandou João Florêncio Filho não se chamar Jorge Matheus de Lima?

REFERÊNCIA: “Justiça Estadual. Tribunal Superior de Alagoas. Apelação Cível (União). Primeiro Acórdão, 12/8/1932”. Jornal do Commercio (RJ), 17/6/1933. FOTO: O casarão onde viveu e morreu o argentário Basiliano Olíbio de Mendonça Sarmento. Dele só existe, hoje, o portão ao lado. Foto colhida na internet, sem indicação de autor.

(Publicado no Facebook, 19/11/2019)

JORGE DE LIMA, POETA


Gustavo Maia Gomes

Foi meu pai quem primeiro me falou sobre ele. Eu era um menino. Embora nascidos em lugares próximos um do outro – Jorge em União, Mauro em Branquinha –, os dois tinham idades distantes. Provavelmente, nunca se encontraram.

Mesmo assim, ao falar em Jorge de Lima (1893-1953), Mauro se sentia próximo dele. Talvez, traindo uma inveja longínqua, pois meu pai, na juventude, também escrevera seus versos (algum estudante de Direito, nos 1930, não o fez?) e havia sonhado com uma carreira literária.

Dois ou três anos depois daquela conversa, Mauro comprou um disco fonográfico: “Essa negra Fulô”. Alguém havia musicado o poema de Jorge de Lima, que começa assim:

Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.

Ao perceber meu ar de espanto ouvindo aquilo, minha mãe, Stella, explicou:

– Jorge de Lima. Poeta importante. Alagoano.

Sou um leitor inconstante de poesias. Conheço poucas. Mas, simpatizei com este soneto dele. Cito só um fragmento:

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Quase vinte e cinco anos separam os dois poemas. (“O acendedor de lampiões” foi escrito em 1906, quando Jorge tinha treze anos.) Os estilos são, também, diferentes. Mas, gosto de ambos. Dizem, porém, que sua obra prima é "Invenção de Orfeu".

O Brasil esqueceu Jorge de Lima. Eu, inclusive. Mas, quando voltei as vistas para União dos Palmares, lembrei-me das coisas ditas por Mauro e Stella. E reencontrei o poeta. Quase ao vivo.

Em 7 de setembro de 2019, com Cassio SilvaGenisete Lucena Sarmento, Carla Theresa Borba Leite, Iremar Marinho e João Paulo Farias – todos palmarinos ou residentes na cidade – Lourdes Barbosa e eu visitamos o memorial Jorge de Lima em União dos Palmares.

É a casa onde ele nasceu e morou por uns anos. Ainda bem que está de pé, razoavelmente, conservada. Viva a Negra Fulô, o Acendedor de Lampiões, Orfeu. Viva Jorge de Lima.

(Excerto do livro “Uma Noite em Anhumas”, com publicação prevista para 2020.)

(Publicado no Facebook, 13/11/2019)

O MITO DA VIOLÊNCIA CRESCENTE


Gustavo Maia Gomes

Deixem-me esclarecer, de saída, que falarei sobre um tema (crimes violentos), um tempo (1850-1984) e um lugar (Pernambuco) baseado no que pude observar usando uma lente específica: a frequência relativa (ao número total de páginas) com que quatro palavras – crime, roubo, assassinato e assalto – apareceram no Diario de Pernambuco nesses 130 anos.

O instrumento é impreciso, reconheço, mas não há nenhum outro (de meu conhecimento) capaz de nos dar uma ideia aproximada do que aconteceu com a incidência de agressões a indivíduos em Pernambuco, em todo o período histórico que vai de meados do século XIX até os anos 1980.

Parece razoável supor que, quanto mais crimes, roubos, assassinatos e assaltos acontecessem, mais notícias a respeito seriam publicadas. A vantagem de medir isso no Diario de Pernambuco é que ele circula há 194 anos, com pouquíssimas interrupções, e sempre foi um dos principais órgãos de imprensa do Estado.

Violência crescente foi o que esperei ver. O que, de fato, encontrei está nos quatro gráficos anexos: com exceção dos assaltos, que crescem tendencialmente (muito) até 1940-49, e decrescem em seguida, de modo que, de ponta a ponta, a série é apenas levemente crescente, com exceção dos assaltos, repito, todos os indicadores apontam para baixo.

Há nuances: “Crime” e “Assassinato” crescem de 1850-59 a 1900-09, passando a cair com a virada do século. “Roubo” descreve um “U”, no mesmo intervalo, mas se torna francamente declinante após 1900-09. Fato é que, tirando os assaltos, os demais indicadores de violência contra pessoas em Pernambuco caíram sensivelmente, de 1900-09 a 1980-84.

Esse resultado me surpreendeu. Eu já havia escrito, em “Uma Noite em Anhumas” (ainda não terminado) que a urbanização desenfreada do século XX, em Pernambuco e Alagoas, teria sido, provavelmente, acompanhada de um aumento da violência. Tive de rever meus preconceitos.

Eis a minha convicção atual: a velha sociedade canavieiro-açucareira do século XIX era muito mais violenta do que havíamos imaginado. Nem mesmo a rigidez dos controles morais e religiosos foi suficiente para evitar que crimes, em geral, roubos e assassinatos, em particular, fossem cometidos em larga escala.

Paradoxalmente, tudo isso melhorou desde 1900, com a urbanização e o crescimento explosivo do Recife. Não era apenas eu que cultivava a pressuposição da violência crescente. (Lembrem-se de que minha análise só vai até 1984). Ficamos sabendo agora esse é mais um mito.

(Publicado no Facebook, 7/11/2019)

HONRA E DEFLORAMENTOS


Gustavo Maia Gomes
(Fragmento do livro “Uma Noite em Anhumas”, com previsão de publicação em 2020)

A noção de honra, no velho mundo canavieiro-açucareiro, tinha duas conotações principais. Uma a relacionava à satisfação dos compromissos financeiros. A outra remetia às mulheres, em geral, e à virgindade das filhas solteiras, em particular. “Perder a honra”, ser deflorada fora das condições aceitas pela moral da época, equivalia a expor a moça, seus pais e irmãos, à execração social.

A mulher trair o esposo também era uma desonra. As meninas andarem na rua desacompanhadas, outra. Ter uma amante permanente era tolerável, para o homem. Para as mulheres, um escândalo que podia lhes custar a vida.

Isso dito, o que mostram as curvas “Honra” e “Defloramento” no gráfico anexo? De 1850-59 a 1900-09, elas se comportam como deveríamos esperar: uma cai, outra cresce. Ou seja, a lenta dissolução da sociedade tradicional e de seus pilares teria sido acompanhada por um aumento dos episódios de desvirginamento. Menos controle social, mais transgressões. Menos honra, mais atentados à virgindade.

Há, porém, um aspecto desses dois processos que precisa ser mencionado. Nas décadas de 1850-70, quase todos os defloramentos noticiados tiveram como autores homens negros, crioulos ou pardos. E, como vítimas, moças pobres. A partir de 1870 (até 1900), em alguns casos, é provável que o deflorador fosse branco e a vítima, uma jovem negra. Significaria isso que as filhas da classe proprietária nunca eram defloradas antes do casamento? Claro que não: os episódios de defloramento nessa classe eram resolvidos sem os jornais saberem.

A partir da virada para o século XX, entretanto, a curva de defloramentos passa de ascendente para declinante, enquanto a da honra continua a apontar para baixo. Por quê? Uma hipótese explicativa é a seguinte: (i) com a honra, nada de novo acontece. O crescimento das cidades, intensificado nesse período, corrói os valores antigos. Há menos retórica sobre a honra, em consequência. (ii) Com os defloramentos, se passa outra coisa. O valor moral, antes absoluto, da virgindade começa a ser questionado – sobretudo, no Recife. E isso tem consequências peculiares.

Numa evolução ainda em curso, cada vez mais, “tirar a virgindade” de uma menina-moça, numa relação consentida, deixa de ser visto como um crime e passa a ser acontecimento rotineiro que não chega, portanto, às páginas dos jornais.

Ou seja: no âmbito da moral sexual, o avanço da sociedade urbana (somado à luta das mulheres) produziu significativa mudança da condição feminina no Recife, em Maceió, no Brasil. Para melhor, penso eu.

(Publicado no Facebook, 5/11/2019)