Gustavo Maia
Gomes
10/12/2020
Sumário
1. Introdução, 2
2. Resumo da tese
3. Pensamentos fora de
lugar
4. O “olhar de Karl Marx”
5. Mercador de enganos
6. O Estado
7. Nacionalismo, racismo
e, mais uma vez, marxismo
8. A vez do cangaço
9. Considerações finais
Tenho todas as razões do mundo para atender um pedido de meu amigo
há sessenta anos VMF. Nove ou dez dias atrás, ele me enviou a seguinte mensagem,
por e-mail, acompanhada de um arquivo: “Gustavo amigo. Este trabalho é de um
nosso sobrinho. Universitário na Faculdade de Direito da USP [Universidade de
São Paulo]. Apresentou uma tese que foi elogiada. Queria seu juízo crítico”.
Nem VMF nem eu imaginávamos que o “juízo crítico” se estendesse
por mais de dois parágrafos. Eu terminei escrevendo o extenso comentário
contido nas páginas seguintes. Por que o fiz? Em grande medida, porque vi nesse
jovem autor, a quem não conheço pessoalmente, um pouco ou muito de mim mesmo,
recuando meio século. Nunca fui marxista (leitor de Marx e de seus
simpatizantes, sim), como LGM, talvez, pense que é, mas compartilhava de uma
visão de mundo próxima à dele.
De certa forma, portanto, esta foi uma oportunidade de, ao fazer o
juízo crítico que me fora pedido, dialogar não apenas com meu amigo e seu
sobrinho, mas também, em certa medida, comigo mesmo enquanto jovem. Agradeço
aos dois. Meus comentários se concentram nos capítulos iniciais, em que LGM fala
de capitalismo e de estado, permitindo ao leitor vislumbrar a atmosfera
intelectual – doutrinária de esquerda, marxista de origem, negativa em relação
ao capitalismo e ao Estado democrático – que, se não domina, pelo menos, aparenta
ter presença significativa na tradicionalíssima Faculdade de Direito do Largo
do São Francisco. O que ele tem a dizer sobre o cangaceirismo não está errado
(a não ser na insistência em vincular aquela forma de banditismo à expansão do
capitalismo no Brasil), mas despertou-me interesse menor.
1.
Introdução
Confesso a ignorância: apesar de ter sido professor universitário
durante quarenta anos, não sabia o que era Tese de Láurea, nome adotado pela
Faculdade de Direito da USP. A princípio, imaginei que fosse a tese de Laura,
mas descobri que se trata de “Trabalho de Conclusão de Curso”. Ah, sim! O TCC,
como ficou conhecido, é feito por estudantes de graduação, como última exigência
para a obtenção do respectivo diploma.
Na minha opinião, “O Estado e o cangaço: A exceção que confirma a
regra” satisfaz os padrões exigidos de um TCC. Pesquisa própria de fatos ou
crítica de interpretações conflitantes não foi feita, nem se deveria esperar,
mas há uma proposição central defendida com razoável competência. A proposição,
em si, acho eu, faz pouco sentido, porém – e isso é precioso – o autor escreve
bem, expõe suas ideias com clareza. Até mesmo as obscuras, tomadas de
terceiros. Essas são muitas, mas LGM, com sua escrita afiada, quase conseguiu
me fazer entendê-las.
No prosseguimento, os parágrafos com margem esquerda mais larga escritos
em itálicos com caracteres de tamanho
menor são citações da Tese de Láurea. Os demais são de minha lavra.
2.
Resumo
da tese
A presente
tese procurou demonstrar, sobretudo da perspectiva do Estado, que a instauração
e consolidação do capitalismo no Brasil se deu com o fim do escravismo
colonial, marcado pela abolição da escravidão, e após período de transição, que
foi, aproximadamente, de 1890 a 1940. Esse período de transição, aliás,
coincidiu com a irrupção do cangaceirismo na sua modalidade epidêmica e, assim,
tentei demonstrar como o cangaço pode, também, ser compreendido como sintoma –
e até como prova – desse período de transição. Ao mesmo tempo, procurei
evidenciar os limites da transformação que tomem o Direito e o Estado como meio
e fim. (Sem numeração de página.)
3.
Pensamentos
fora de lugar
Nas partes introdutórias do trabalho, LGM insere reflexões que
nada têm a ver com o seu assunto. São pensamentos, na minha opinião, desnecessários
e fora de lugar, além de duvidosamente válidos. Destaco três:
Portanto, se
há, por exemplo, uma reforma da previdência em pauta que pretende transferir o
ônus de uma crise econômica à população pobre, torna-se imprescindível, além da
mobilização nas ruas, toda ação judicial que vise derrubar a medida. (Pág. 9).
Seria bom lembrar que a proposta mais recente da reforma aludida
foi aprovada em outubro de 2019. Portanto, já não estava mais “em pauta” no ano
seguinte, quando essa tese foi apresentada. Além do mais, reduzir a reforma da
previdência que vem sendo feita, aos pedaços, desde João Batista Figueiredo,
1979-85, passando por Fernando Henrique Cardoso, 1995-2002, e tendo tido um
capítulo importante no primeiro governo Lula, 2003-06 a uma manobra para “transferir
o ônus de uma crise econômica à população pobre” é, na melhor hipótese, pouco
convincente.
Ao que tudo
indica, parcela significativa da esquerda foi convencida por Francis Fukuyama,
quando anunciou, no final do século XX, a vitória do capitalismo e o fim da
História. (Pág. 10).
Como pude perceber, LGM e alguns de seus professores continuam
firmes em suas crenças marxistas – que devem incluir a inevitável derrocada do
capitalismo. Deduzo, então, que outra parcela significativa da esquerda não foi convencida por Fukuyama. Aliás, o próprio Francis, depois de curar a ressaca,
reavaliou cuidadosamente seu pensamento anterior.
No que pese a
condição financeira de classe média que me abriu as portas nesta capital [São Paulo] e a perda do meu
sotaque pernambucano, minha família passou por dificuldades na terra dos
Bandeirantes exclusivamente por ser nordestina. (Pág. 10).
Esse é um depoimento pessoal que eu respeito. Mas, gostaria de
dizer que tal não foi a minha experiência. Também sou pernambucano. Provavelmente,
com sotaque. Mudei-me para a capital paulista em 1971, para ali viver, inicialmente,
como um simples estudante de mestrado na Universidade de São Paulo. Mais de
metade da minha turma era de paulistanos formados pela mesma universidade. Depois,
lecionei tanto na USP (1973-76) quanto na Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas) em 1972-73. Trabalhei na Copersucar, a cooperativa de usineiros do
Estado de São Paulo, à época (1973-76), a maior empresa brasileira em
faturamento. Nunca sofri discriminação alguma. Ao contrário. Saí de lá para
atender (1976) um convite da Universidade Federal de Pernambuco (onde me
tornei, primeiro, professor visitante; depois, professor regular, concursado)
que me prometia rápida liberação para o doutorado no Exterior, o que aconteceu.
De São Paulo, só tenho lembranças boas (exceto as do trânsito). Alguns dos meus
melhores amigos são paulistas. O único colega indiscutivelmente chato no mestrado
era carioca, mas esse tinha problemas mentais de outra ordem.
Escrevo isso com a pretensão de, tendo muitos mais anos de vida do
que o autor da tese comentada, transmitir-lhe uma opção intelectual oposta à
que (me parece) ele tem preferido cultivar. Posso estar enganado, tomara que
esteja, mas toda essa carga marxista – pesada, ultrapassada, inútil,
mistificadora – que ele trouxe para seu texto se ajusta magnificamente a uma
visão do mundo em que o culpado pelos nossos problemas é sempre o outro. Alguma
entidade de índole má dedicada a explorar os trabalhadores (mas, que também
lhes dá emprego e renda); a reformar a previdência para prejudicar os pobres (embora
se saiba que, sem alguma reforma, o país jamais sairá da crise em que se meteu
há meio século – e os pobres estão sendo os maiores prejudicados com esses anos
todos de estagnação econômica); alguém ou alguma entidade de índole má cujo
preconceito contra os nordestinos impede a esses de ter uma vida rica e feliz
na cidade grande (mas não impediu a mim de ter excelentes empregos, impulsionar
minha carreira profissional, ganhar um bom dinheiro e fazer amigos ali, nem
impedirá a LGM de ter muito êxito em São Paulo).
4.
O
“olhar de Karl Marx”
O “olhar de Karl Marx” é uma das grandes maldições da humanidade.
Mas, isso eu fui aprendendo com o tempo, o estudo e a experiência. Na idade que
tem hoje o autor da Tese de Láurea, as explicações fáceis (complicadas na
aparência, para dar a impressão de serem profundas), agradáveis, transferidoras
de responsabilidades, também me fascinavam, embora jamais ao ponto em que
parecem fascinar alguns professores de Direito em São Paulo. E seus alunos.
Feitas essas
breves considerações, o que se pretende neste primeiro ponto é, a partir da
análise do cangaço, retomar a leitura da crítica do Estado a partir do olhar de Karl Marx [negritos acrescentados]. De
forma apertada (sic), é, com base nas
questões levantadas acima em torno do Estado, retornar ao diagnóstico de que é
impossível realizar o combate e o enfrentamento das desigualdades de forma
ampla tendo como meio e fim as estruturas de poder em vigor. (Pág. 10).
Será, mesmo, “impossível
realizar o combate e o enfrentamento das desigualdades de forma ampla tendo
como meio e fim as estruturas de poder em vigor”? Compare as desigualdades,
a pobreza, as péssimas condições de trabalho da Inglaterra na segunda metade do
século XIX (tão exploradas por Marx no Volume I de O Capital) com a situação da mesma Inglaterra hoje. É impossível
negar que houve extraordinária melhoria. E essa melhoria foi conseguida sem que
houvesse, no meio tempo, uma revolução social devastadora; foi conseguida “tendo
como meio e fim as estruturas de poder em vigor”. Seria a Inglaterra uma
notável exceção? Pois então que se fale da França, Alemanha, Bélgica, Canadá,
Estados Unidos, Japão...
Ou até mesmo do Brasil. Ainda temos desigualdades terríveis, mas
muito progresso foi feito também aqui. Nem sempre isso é reconhecido. O número
de crianças nascidas vivas no Brasil que morrem antes de completar um ano de
idade despencou de 123 por mil em 1970 para 31 por mil em 2000. Continuou a
cair, desde então. No mesmo período, a expectativa de vida dos brasileiros
subiu de 51 para 69 anos. É de 76 anos e meio, hoje (IBGE). É claro que os
maiores beneficiados dessas mudanças foram os mais pobres, por razões óbvias.
Outro exemplo: a seca cearense de 1915 enxotou os flagelados do
sertão para Fortaleza, onde os sobreviventes da caminhada viriam a morrer aos
milhares de fome e doenças contagiosas em campos de concentração. (Tinham esse
nome, sim.) Cem anos depois, a calamidade climática de 2012-17 foi a pior da
história – do ponto de vista hídrico –, mas, desta vez, os que foram afetados
pela falta de chuvas tinham bolsas-família, cisternas em casa, estradas à porta
(de modo que o caminhão pipa sempre chegava em tempo de reabastecer as
cisternas), atendimento do SUS na cidade mais próxima. Como resultado, sofreram
muito menos do que seus ancestrais de um século antes. Eu poderia alinhar
duzentos outros exemplos, não para negar que continuamos a ter, no Brasil, um
problema sério de desigualdade (e, pior ainda, de pobreza), mas para demonstrar
que houve, sim, progresso. E isso foi feito “tendo como meio e fim as
estruturas de poder em vigor”, pois desconheço que alguma revolução marxista
tenha jamais ocorrido em nosso país.
Modo de
produção do escravismo colonial. (Pág. 12).
A literatura marxista, ou simpática ao marxismo, padece da
estranha doença de complicar o que é simples, entre outras coisas, introduzindo
uma terminologia própria, pretensiosa, que dificulta a compreensão do assunto
tratado. LGM encontrou espaço para introduzir o “modo de produção do escravismo
colonial” em sua tese. O que é isso?
Passo a palavra a um suposto especialista não citado por LGM: “Quando
[Jacob] Gorender aborda o modo de produção escravista colonial, vigente no
Brasil desde o início da colonização lusitana até a abolição da escravidão,
está se referindo à plantagem escravista, que possuía quatro características
(...) Em primeiro lugar era especializada na produção de gêneros comerciais
destinados ao mercado externo; em segundo, era baseada no trabalho por equipe
sob comando unificado; em terceiro lugar, se desenvolvia uma estrita conjugação
de cultivo agrícola e de beneficiamento complexo em um mesmo estabelecimento;
e, por fim, [combinava], também em um mesmo estabelecimento, [a] divisão do trabalho
quantitativa e qualitativa”.[2]
Substituo essa lengalenga interminável pela seguinte frase: “até a
abolição, o Brasil produzia artigos de exportação agrícolas ou agroindustriais
utilizando escravos nas tarefas não especializadas e trabalhadores livres nas
demais”. Perdeu-se alguma coisa? Não. Ao jogar no lixo o conceito de “modo de
produção” não se perde absolutamente nada. Exceto, talvez, o emprego de algum
intelectual diletante.
5.
Mercador
de enganos
Marx em sua
obra máxima, O Capital, parte da mercadoria para a análise do modo de produção capitalista,
porque ele “aparece (erscheint) como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a
mercadoria individual, por sua vez, aparece como sua forma elementar”. (Pág. 14).
O volume I de O Capital, o
único dos três que seu autor terminou e viu publicado, não é um livro péssimo.
Apenas, muito ruim. Exceto pelo primeiro capítulo que, realmente, não tem
salvação. Além de confuso, terrivelmente extenso, tortura as evidências
empíricas e a paciência do leitor na tentativa de demonstrar que, por trás das
aparências, o trabalho usado para produzi-las é a única fonte de valor das
mercadorias. O comentário mais óbvio que eu posso fazer aqui, a respeito disso,
é este: que diabos tem a ver a “enorme coleção de mercadorias” com Lampião e
Maria Bonita? A resposta: nada. Invocá-la, antes dificulta do que nos ajuda a
compreender o cangaceirismo no Nordeste, se há essa intenção. Mas o autor da
tese a invoca, de modo que eu deveria emitir algum juízo crítico sobre isso.
Não deveria me estender muito sobre a proposição marxista (na
verdade, copiada dos economistas clássicos ingleses que o precederam, especialmente,
David Ricardo, 1817) de que “o trabalho usado para produzi-las é a única fonte
de valor das mercadorias”. Meu professor de economia marxista em Illinois (sim,
havia isso lá) equiparava essa frase (e outras parecidas) a uma definição, como
se Marx tivesse dito, explicitamente, algo assim: “o trabalho é a única fonte
de valor e estamos conversados; passemos para o próximo ponto”. Isso remete todo
o Capítulo 1 de O Capital –
fundamento (na própria visão do seu autor) dos demais – ao reino da metafísica.
Na metafísica, não nos preocupamos com a veracidade empírica de coisa nenhuma,
nem das proposições fundamentais, nem das derivadas. Podemos aceitar a mesma
indiferença à verdade também na análise econômica?
Claramente, não. Os estudiosos da economia querem entender o mundo
real (há exceções, reconheço), isso faz parte da profissão. Quais “partes do
mundo real” querem eles entender quando falam (ou falavam, pois o termo saiu de
moda) em valor? Valor de troca, valor de uso, valor-trabalho, etc. Depende. Os
economistas que não creem na
derrocada próxima e inevitável do capitalismo – e, portanto, não podem esperar
que ela se apresente para começar a trabalhar – precisam oferecer explicações,
entre outras coisas, para os preços. Por que um quilo de mandioca custa menos
do que dois quilos de goiabada em calda? Por que subiu o preço da manteiga, mas
não o de viagens à Europa? Para isso, a teoria marxista do valor não serve. Só fornece
respostas erradas.
Para os economistas que, ao contrário, creem na derrocada inevitável e próxima do capitalismo, a teoria
parece ter enorme serventia. Mas, também aqui, trata-se de ilusão. Ao postular
que o trabalho – entendido apenas como aquele diretamente aplicado à produção de
bens materiais, não de serviços – é a única fonte de valor, o autor de O Capital (embora não o confesse) estava
interessado nas implicações éticas, morais e políticas dessa premissa. A mais
óbvia delas é que, se existem outras formas de renda que não os salários ou a
remuneração direta dos autônomos, ou seja, se existem lucros, dividendos,
aluguéis, aposentadorias, ganhos financeiros – e como existem! –, então, alguém
está roubando os trabalhadores. E se a essência do capitalismo é que existam
lucros, então o capitalismo não passa de uma invenção dos ladrões para institucionalizar
sua pilhagem.
Esse pecado original não pode ser extirpado nos quadros do regime
econômico (e político) vigente – prossegue o sofisma. Só se realizará se os
expropriados expropriarem os expropriadores, ou seja, se houver uma revolução
proletária à qual se siga a socialização da propriedade dos meios de produção.
E a expropriação virá, dizem os crentes; a revolução é demonstravelmente,
cientificamente (argh!) inevitável.
Ora, tudo isso é falso. Nem sequer uma das afirmações feitas acima
sobreviveu ao teste da realidade. Limito-me ao ponto fundamental: o trabalho é
a única fonte de valor. Se se tratar de uma definição, a afirmativa não pode
ser contestada. Mas precisaria ser útil, se a finalidade da teoria for
ajudar-nos a compreender o mundo. Não é útil, atrapalha. Imagine o seguinte
experimento hipotético: do dia para noite, os apertadores de parafusos da
indústria automobilística e seus companheiros com ocupações semelhantes tomam o
poder e passam a se apropriar integralmente do produto total da nação que,
afinal, devia mesmo ser deles, o povo escolhido por Marx. Os operários, naturalmente,
não veriam razões para dividir esse produto com as classes “improdutivas”, ou “exploradoras”.
Portanto, todo o pessoal que cuida da administração das empresas seria posto na
rua, sendo-lhes dito que, de hoje em diante, só os trabalhadores manuais terão
direito a alguma renda. Também seriam demitidos os que escrevem os programas de
computadores. E os que operam os sistemas informáticos. Iriam para a rua os
advogados das empresas, LGM e seu tio VMF entre eles. Dos donos da fábrica (que
estavam exatamente agora planejando ampliar seus negócios), nem se fala.
Preciso prosseguir? Preciso dizer que, inevitavelmente, a essa sucessão de
decisões absurdas respaldadas pela teoria marxista do valor-trabalho se
seguiria uma catástrofe econômica de tamanhas proporções que os apertadores de
parafusos e o resto do país se tornariam miseráveis?
Outro experimento hipotético: um homem sozinho em sua fazenda produz
uma tonelada de soja por ano; dê-lhe um trator e a produção se elevará para mil
toneladas. Não deveríamos concluir que o valor criado pelo trabalho é de uma
tonelada, enquanto que o valor criado pelo trator é novecentas e noventa e nove
vezes maior?
Já na Grécia
Antiga, Aristóteles conseguiu achar qual era a substância de equivalência entre
os diferentes objetos e que autoriza a troca: o trabalho contido neles. Dessa
maneira, todas as coisas úteis passíveis de troca, tal como o sapato e o
chapéu, também são qualitativamente iguais, ao passo que são produtos do
trabalho. (Págs. 17-18).
Aristóteles tem seus méritos, nenhum deles derivado da contribuição
que fez ao conhecimento econômico.
Como vimos, o
que produz valor é o dispêndio de força de trabalho humano. Quando a força de
trabalho assume a forma de mercadoria, ela aparece no mercado como uma
mercadoria cuja característica principal e especial é criar valor. (Pág. 16).
Sobre isso, já comentei. Mas, como é fundamental, convém agregar
mais algumas considerações.
(1) Só com muita ginástica mental, ou propósitos políticos óbvios,
alguém pode sustentar a tese “o que produz valor é [exclusivamente] o dispêndio
de força de trabalho”. E o trator da fazenda de soja? E o aparato jurídico e
administrativo das empresas? E a cultura e normas legais que permitem a
coordenação dos esforços produtivos individuais? Sabe qual foi a justificativa de
Bill Gates para doar metade de sua fortuna a instituições filantrópicas ou de
pesquisa científica? Mais ou menos, esta (cito de cabeça): “o que eu ganhei não
se deveu apenas a mim, mas a todas as pessoas com suas habilidades e
treinamento, ao ambiente cultural e às normas jurídicas – tudo isso que já
existia nos Estados Unidos quando vim ao mundo. Imaginem se eu tivesse nascido [a
adição é minha, GMG: na Somália], vocês acham que eu teria chegado onde cheguei?”
Portanto, ao abdicar em parte da fortuna que conseguiu produzir, Gates
reconheceu que aquele dinheiro todo não resultara apenas de sua inegável
genialidade. É claro que alguém poderia dizer: as instituições, a organização,
etc., foram criadas pelo trabalho humano. Não há dúvida. Só que: (a) não era isso
que Marx tinha em mente ao dizer que só o trabalho cria valor; (b) uma vez
criadas e mantidas pela cultura, as leis e a polícia, essas coisas todas passam,
elas próprias, a produzir valor ou a serem imprescindíveis à produção de
valores. São a diferença entre os Estados Unidos e a Somália. Bill Gates que o
diga.
(2) A observação histórica de Marx (a força de trabalho se
tornando mercadoria) é importante: já havia formas de trabalho assalariado até
mesmo na Grécia Antiga, mas essas eram pouco significativas; sem dúvida é nos
tempos mais recentes – os de formação e consolidação do capitalismo industrial,
a partir do século 18 – que o trabalho assalariado ganha espaço cada vez maior.
Nem tudo o que o alemão escreveu é inaproveitável; algumas de suas análises
históricas ainda hoje merecem atenção.
(3) A pergunta que eu faço, mais uma vez, é a seguinte: o que tem
isso tudo a ver com o cangaceirismo nordestino?
6.
O
Estado
E é
justamente através [da] relação jurídica do contrato de trabalho, que trata de
forma igual as diferentes capacidades de trabalho, que se consolida a dominação
no modo de produção capitalista. É
precisamente nesse cenário que surge o Estado. [Negritos acrescentados.] É
o Estado que impõe o direito e as relações jurídicas à toda a população contida
no seu território, conferindo a todos a qualidade de sujeito de direito e
garantindo a exploração da força de trabalho por meio do contrato. Como destaca
Lênin: O direito burguês, no que concerne à repartição dos bens de consumo,
pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um
aparelho capaz de impor a observação de suas normas. (Pág. 18).
Não, o Estado não surgiu com o capitalismo, nem no Brasil, nem em
canto nenhum. Vamos negar que houve “estados” no Egito antigo, na China
imperial, na Antiguidade clássica greco-romana? No Brasil de Pedro II menor de
idade? O que deu a Nero o poder de incendiar Roma? A Calígula, o de promover
seu cavalo a cônsul? Até mesmo Lênin reconheceria que houve, sim estados que
não eram frutos do capitalismo: note-se que na frase citada ele se refere ao
“Estado burguês” e não ao Estado em geral.
No geral,
esses instrumentos democráticos, tais quais representação e divisão de poderes,
foram e são essenciais para impedir a manifestação da maioria. Apesar da alusão
à liberdade e à igualdade, esses princípios são impossíveis de se realizar no
capitalismo, que se apoia na desigualdade. Sob esse olhar, a democracia
representativa liberal funcionou como uma forma de regulação e manutenção das
relações de classes e nunca se consumou naquilo que havia prometido ser. (Pág. 21).
Essa é uma visão essencialmente depreciativa de sociedades democráticas
(com ou sem aspas) como a nossa, com altos e baixos, tem sido. Vou por partes:
(1) Os “instrumentos
democráticos, tais quais representação e divisão de poderes, foram e são
essenciais para impedir a manifestação da maioria”. Que outros
instrumentos, então, facilitariam, ao invés de impedir, a manifestação da
maioria? A ditadura do proletariado, talvez? Mas as “ditaduras do proletariado”
que a história registra – e são muitas – sempre foram ditaduras, nunca foram do
proletariado. Pertenceram às elites dirigentes. Alguém acha que no regime
político pós-revolução vagamente imaginado por Marx, ou na extinta União
Soviética, ou na China pós-1949, ou em Cuba, ou na Coréia do Norte, a “maioria”
poderia, pôde ou pode se manifestar? Não seria muito mais justo e correto
reconhecer que, a despeito de suas falhas, a representação (assim como a ampla
liberdade de opinar, a imprensa relativamente livre, um mínimo de garantia
legal do cidadão contra perseguições do próprio Estado) permite, sim, em
limites bastante razoáveis, a “manifestação da maioria”?
(2) “Esses princípios [liberdade,
igualdade] são impossíveis de se realizar
no capitalismo, que se apoia na desigualdade”. Pelo que nos mostra a
história, os princípios de liberdade e igualdade têm sido impossíveis de se realizar
completamente não só no capitalismo, mas no socialismo, nas monarquias, nas
aristocracias, nos despotismos orientais, na Idade Média, na era moderna, na
época contemporânea... Nunca existiu um agrupamento humano em que se tenha
alcançado algo parecido com “igualdade” entre as pessoas que a compõem. Nem
mesmo no “comunismo primitivo” dos selvagens caçadores e coletores (no Brasil,
inclusive) que sempre viveram em condições supostamente idílicas, na verdade,
miseráveis: o grupo tinha um chefe que era mais igual do que os outros; pajés
ou feiticeiros cujos vínculos com as forças sobrenaturais os faziam credores de
reconhecimento especial. E tinha, no lado negativo, as mulheres – nenhuma delas
elegível à honrosa condição de guerreira –, cuja função era separar braços,
pernas e vísceras dos inimigos aprisionados na última guerra, cevados durante
meses, mortos a cacetadas e que agora iam virar churrasco. Quem preferir essa
igualdade na miséria à desigualdade que temos sob o capitalismo, é só se
apresentar numa dessas terras indígenas que estão por aí. Pode ir tranquilo:
parece que eles deixaram de comer gente.
(3) Churchill tinha uma resposta pronta a alegações como esta: “A democracia representativa liberal funcionou
como uma forma de regulação e manutenção das relações de classes...”. Ele
diria o seguinte: a democracia é o pior dos regimes políticos, com exceção de
todos os demais.
Segundo, há
uma enorme burocracia para que se entre no Estado, que serve justamente para
dificultar a participação popular nele. (Pág. 21).
Na época em que meu pai conseguiu seu primeiro emprego público, em
Pernambuco, a burocracia para entrar no Estado era pouca: ajudava ser neto de
senhor de engenho e, para galgar posições menos mal remuneradas, uma formatura
em Direito vinha muito a calhar. Mas a condição essencial era ser apadrinhado
por algum político poderoso. Hoje, para se entrar no serviço público de forma
estável, é preciso passar num processo seletivo o que, em quase todos os casos,
dada a concorrência, exige enorme esforço. Jamais me tinha ocorrido que os
concursos públicos foram instituídos para dificultar a participação popular no
Estado. Essa proposição é absurda.
O papel do
Estado no capitalismo é essencial: a manutenção da ordem – garantia da
liberdade e da igualdade formais e proteção da propriedade privada e do
cumprimento dos contratos – e ‘internalização das múltiplas contradições’, seja
pela coação física, seja por meio da produção de discursos ideológicos
justificadores da dominação. (Citação de Silvio Almeida, pág. 22).
Não é apenas no capitalismo que
“o papel do Estado é essencial” para manter os fundamentos da sociedade,
quaisquer que eles sejam, e para evitar que conflitos internos destruam a vida
social. Isso tem sido assim sempre,
não importa a época ou o lugar. O Estado existe em todas as sociedades humanas, com exceção daquelas mais
rudimentares na técnica econômica, “mais pequenas” na dimensão demográfica,
mais isoladas de outros grupos potencialmente inimigos. Em cada uma dessas
sociedades com Estados haverá “discursos
ideológicos justificadores da dominação” (sim, da dominação). Tais
características não são específicas do capitalismo, estamos malhando o Judas
errado. Mas, que a mensagem da esquerda – falaciosa, porém fácil de entender;
demagógica, mas revestida de falsa erudição; destrutiva, embora se pretenda
redentora – rende votos, disso não tenha dúvida.
7.
Nacionalismo,
racismo e, mais uma vez, marxismo
Aconteceu uma coisa interessante com o discurso de inspiração
marxista que ainda sobrevive em círculos intelectuais não apenas no Brasil, em
boa parte do mundo: é que, desde a morte de Karl Marx, em 1883, a História se
encarregou de desmoralizar cada uma de suas teses principais. Dele e de seus
discípulos. Dou exemplos:
(1) Nunca houve uma revolução marxista no mundo, embora ela fosse
um corolário “inevitável” do capitalismo industrial avançado. As que se valeram
do linguajar marxista aconteceram em países ou com indústria incipiente (por
exemplo, a Rússia, 1917) ou francamente agrários (por exemplo, a China, 1949). Dos
outros, nem preciso falar.
(2) Nunca houve um empobrecimento relativo e, depois, absoluto, do
proletariado em países capitalistas desenvolvidos. Ao contrário, a classe
trabalhadora em lugares como os Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França,
Bélgica, Holanda, Japão, nos dias atuais, é muito rica, em comparação com a
mesma classe, cem anos atrás. O mesmo se pode dizer do Brasil.
(3) Nunca houve uma concentração industrial irrefreável, ao fim da
qual umas poucas companhias gigantescas dominariam todos os mercados.
(4) Nunca houve a superioridade do planejamento central sobre o
mercado, uma tese sobre a qual Marx não falou muito, mas seus seguidores, sim.
(5) Nunca houve a necessidade imperiosa de os países capitalistas
maiores terem colônias a quem vender seus excessos de produção, sob pena de
mergulharem em crises terminais, como marxistas (Lênin, Rosa Luxemburgo e
outros) acreditavam.
(6) Na verdade, nunca houve, sequer, um conflito inarredável entre
capitalistas e trabalhadores assalariados. A crença de que tal conflito existe
resultou, em grande medida, da doutrinação política perpetrada por ideólogos
inspirados em Marx. E pelo próprio autor de O
Capital, acima de todos.
Essa doutrinação aconteceu fortemente na Europa – onde encontrou
campo fértil para prosperar – tendo sido capaz, sim, de influir no curso da
História. Pode-se argumentar que, no Velho Continente, a ascensão do
capitalismo industrial foi acompanhada de dores de parto associadas ao
desmoronamento do velho mundo agrário. Homens, mulheres e crianças expulsos do
campo e amontoados em cidades imundas e em fábricas insalubres tinham muito do
que reclamar, mesmo que (como parece demonstrado por pesquisas históricas relativamente
recentes; os nomes de Jeffrey Williamson e Peter Lindert vêm à mente) os
salários reais médios desses trabalhadores tenham crescido durante a revolução industrial. Quando, na Europa
ocidental, com a continuidade e consolidação do desenvolvimento capitalista, os
trabalhadores puderam se beneficiar grandemente da acumulação de riqueza que
estava acontecendo, eles já tinham assimilado uma visão do mundo que enxergava
seus interesses como opostos aos dos seus empregadores. Daí a grande força
política que partidos socialistas e comunistas chegaram a ter, em vários
momentos, no continente.
Nos Estados Unidos, ao contrário, o surgimento da indústria moderna
nada teve de traumático. Um dos maiores industriais americanos, Henry Ford,
tinha como objetivo (e o alcançou) pagar tão bem aos operários que eles pudessem
comprar os carros produzidos em suas fábricas, uma ideia revolucionária para a
época. Mesmo que o caso de Ford tenha sido extremo, ganhos salariais
expressivos acompanharam, desde o início, o desenvolvimento do capitalismo naquele
país. Essa é a razão pela qual, ao contrário do que Marx pensava ter
demonstrado que aconteceria inevitavelmente, nunca houve sequer ameaça
longínqua de revolução comunista ou socialista ali. Embora disputas salariais
existam, ninguém pensaria em descrever os Estados Unidos como um lugar rachado por
conflitos entre capitalistas e proletários, cada um dos dois grupos perseguindo
interesses opostos. Entre negros e brancos, até que sim, mas essa é outra
história.
Acontece que a dicotomia entre os interesses essenciais de
capitalistas e trabalhadores é a espinha dorsal de toda a doutrina marxista. À
medida em que essa visão do mundo foi sendo desmoralizada pela História, os
pensadores da esquerda se viram premidos a lhe fazer os remendos que pareceram
possíveis e úteis, garantindo-lhes (aos pensadores de esquerda) a sobrevivência
deles próprios e de suas doutrinas insustentáveis. Nesse sentido, eles
inventaram recentemente uma ligação essencial entre o capitalismo e o racismo
ou entre o capitalismo e o preconceito contra homossexuais. Tenho certeza de
que Marx os chamaria de idiotas, se vivo fosse, mas isso não vem ao caso, aqui.
Conjuntamente,
essa construção de uma identidade nacional esconde as relações antagônicas das
classes dominantes e dominadas, criando a falsa impressão de um todo em prol do
bem comum. (...) Dessa formação de uma identidade comum, que impõe e normaliza
o padrão de determinado povo, cria-se uma etnicidade fictícia da qual deriva o
racismo. (Pág. 23).
Isso
significa que a relação entre Estado e sociedade não se apoia apenas no
antagonismo de classes. Além do mencionado racismo, também temos as relações de
gênero, exploração que se manifesta no aparelho estatal. A divisão social do
trabalho ligada ao gênero foi essencial para o desenvolvimento do capitalismo.
A divisão dos gêneros em dois, expressa nas relações familiares, também atuou
como forma essencial de preencher a lacuna de pertencimento dos indivíduos – e
foi igualmente fundamental na formação das opressões contra a população
LGBTQIA+. (Pág. 23).
É uma salada de frutas. E tem mais:
O racismo, de
acordo com esta posição, é uma manifestação das estruturas do capitalismo, que
foram forjadas pela escravidão. Isso significa dizer que a desigualdade racial
é um elemento constitutivo das relações mercantis e das relações de classe. (Pág.
27, citando Silvio Almeida).
Então “o racismo (...) é uma
manifestação das estruturas do capitalismo”. Mas, Aristóteles já dizia (em Política), mais de trezentos anos antes
de Cristo, que alguns seres humanos são,
por natureza, feitos para serem escravos; outros, para donos de escravos. Os
judeus sefardistas foram expulsos da Espanha em 1492; quatro anos depois,
obrigados a se converter ou a ir embora de Portugal. Podemos chamar a convicção
de Aristóteles ou a hostilidade aos judeus de racismo? Sem dúvida. Mas, então,
há algum racismo que nada tem a ver com o capitalismo. Será que algum tem?
Minha avó Josefa Bahia, alagoana da região canavieira, não era lá
muito branca, mas se decepcionou quando seu filho único – meu pai – nasceu com
os cabelos encaracolados e a tez muito morena. Aplicava-lhe um grude nos
cabelos para os espichar e pó de arroz na pele de Mauro, para ver se ela ficava
branca. Não funcionou. Josefa era racista? Certamente, sim e isso não a
diferenciava das mulheres e homens (oficialmente) brancos de então. Agora,
fosse eu lhe dizer que ela era racista por causa da ascensão do capitalismo que
era bem capaz de minha avó me responder assim:
– Seu pai é preto, mas é inteligente; você é preto e burro.
Entre nós, o preconceito contra pessoas de cor tem óbvia relação
histórica com a escravidão, não com o capitalismo. A maneira como feita a
abolição não ajudou nada os negros a encontrar ou construir para si uma posição
econômica e socialmente digna no Brasil pós-1888. Eles deixaram de ser escravos
legais, mas foram, por assim dizer, simplesmente, largados na rua.
(Contrariando os projetos, por exemplo, de Joaquim Nabuco.) Quem precisa de
capitalismo para explicar que, ainda hoje, os negros sejam em grande maioria
pobres e, por essas duas razões – pobreza e cor da pele – sujeitos ao
preconceito por parte dos (relativamente) ricos e (relativamente) brancos?
8.
A
vez do cangaço
Demora, mas LGM termina chegando ao cangaço. Nesta parte de sua tese,
ele apenas segue os passos de estudos anteriores, particularmente, Guerreiros do Sol, de Frederico
Pernambucano de Mello, um livro excelente. A tentativa de vincular o advento do
auge do cangaço à implantação do capitalismo no Brasil é inconvincente. Houve,
sim, uma coincidência de datas, nada mais do que isso. Começo com um parágrafo
inserido pelo autor nas primeiras páginas do seu trabalho:
O cangaço
(...) foi um movimento social que marcou a construção do imaginário do
nordestino. Com todas as contradições que o movimento carregou, que vão da
crueldade desmedida à associação com coronéis, os cangaceiros foram, nada
obstante, elevados em diversas oportunidades à categoria de Robin Hood do
sertão. (Págs. 10-11).
O próprio LGM reconhece mais adiante que os gestos à Robin Hood
dos cangaceiros eram raros. Na verdade, em todos os casos importantes, o
cangaço era um meio de vida permitido por características peculiares do lugar e
da época em que ele se desenvolveu, como a incipiente presença do Estado, o
alto custo e ineficiência dos transportes e comunicações, e a onipresença de
uma economia de baixíssima produtividade e sujeita a oscilações drásticas no sertão
nordestino. Cangaceiros eram bandidos, como hoje são bandidos os assaltantes de
bancos, os sequestradores, os hackers.
Nunca houve nem há ideologia em nada nisso, nem propósitos humanitários ou
sociais, nem relação direta com o capitalismo. Só bandidagem embora, como
todas, sociologicamente explicável.
Perseguidos
pelas forças policiais e taxados de criminosos sanguinários, não deixavam de
contar com a admiração de parcela significativa da população. Nesse sentido,
Lampião, que de certa forma centraliza na sua imagem o movimento, foi
homenageado em 1991, mais de 50 anos após sua morte, com uma estátua em sua
terra natal, Serra Talhada. (PE), após consulta em plebiscito com a população
do município, aprovada com 76% dos votos, reforçando a narrativa que identifica
o líder como herói do povo nordestino. (Págs. 10-11).
Passado meio século da morte do cangaceiro, a votação a favor de
Lampião não me surpreende, mas também não prova nada. Quem mais Serra Talhada
teria para eleger como herói? Inocêncio Oliveira (político nascido na cidade e que
chegou a presidente da Câmara de Deputados, em Brasília) também terá, mais dia,
menos dia, uma estátua erguida em praça pública de sua cidade natal. Se não já
a tem.
Sobre esse
aspecto, cabe destacar a forma como pretendo realizar essa interpretação: o
cangaço será compreendido como sintoma do período de transição do escravismo
colonial ao capitalismo. (Pág. 42).
O autor não formula nenhum argumento consistente para vincular os
dois acontecimentos. Que houve uma coincidência no tempo entre eles, não há
dúvida. Mas, coincidências não significam nada. Por exemplo, em 16 de junho de
1938, a seleção brasileira de futebol perdeu para a Itália, na Copa do Mundo, e
foi desclassificada; apenas quarenta dias depois, Lampião foi assassinado em
Sergipe. O que teve uma coisa a ver com outra, além do fato de que ambas
aconteceram no mesmo ano?
A região do
Cariri, por exemplo, de 1920 a 1950 tinha uma densidade de 34 habitantes por
metro quadrado (sic) e teve um aumento de 200% da população. (Pág. 47).
Há um erro aqui, resultado, claro, de descuido. Trinta e quatro habitantes
por metro quadrado são um espanto! Os nove municípios da atual Região Metropolitana
do Cariri cearense têm uma superfície total de 5.460 km2 (IBGE), ou
5.460.000.000 m2. Se a densidade fosse mesmo de 34 hab/m2,
em 1920-50, a população vivendo ali alcançaria 185,6 bilhões de pessoas. Padre
Cícero ia achar muito bom, mas teria dificuldade de abrigar tanta gente no
Juazeiro.
Tanto assim,
que um dos tipos de cangaceirismo que será conceitualizado pelo historiador é o
cangaço de vingança, que, de forma simples, abarcava aqueles que ingressaram na
vida bandoleira para efetuar alguma vingança – sendo Jesuíno Brilhante e Sinhô
Pereira seus principais representantes. (Pág. 52).
Até quem, no início, só queria se vingar de seus inimigos tinha de
comer. Era difícil voltar a uma vida normal, pacata, de agricultor, após
perpetrar a vingança. Portanto, o cangaço, mesmo quando começava assim,
terminava virando meio de vida.
A vingança
também exercerá papel crucial naquele que seria o segundo tipo de bandoleiros:
o cangaço de refúgio. Tipo de menor relevância entre os três que serão
expostos, este se caracteriza por ser um cangaço de defesa. Basicamente, é
aquele que recorre ao cangaço para se blindar de possíveis consequência de uma
vingança executada. (...) Por último, a terceira e última modalidade dessa
divisão foi nomeada cangaço-meio de vida, sendo aquela de maior relevância. (Pág.
53).
Lampião se enquadra nessa última categoria, como ele próprio
admite. (Pág. 53).
Não quero que
fique a impressão equivocada de que os cangaceiros representaram um desafio ao
poder dominante no sertão. Nesse sentido, eles apenas se articularam dentro
dessa disputa de poder, o que incluiu tudo que foi descrito acima. (Pág. 64).
O cangaceirismo não foi um movimento político, nem os cangaceiros
eram Robin Hoods ou algo assim. Foi apenas uma atividade criminosa regular. É
compreensível que cangaceiros e coronéis tenham estabelecido, em alguns casos,
relações de cumplicidade e mútua dependência. Afinal, havia muitas maneiras de
um grupo ajudar o outro. E, quanto menos eles brigassem entre si, melhor para
os dois.
Apesar da
afeição da população pelos cangaceiros, também havia ali um duplo sentimento.
Ao mesmo tempo, são conhecidas outras ocasiões em que os cangaceiros faziam
pequenos gestos para a população, como a doação de alguns materiais de valor,
mas nada perto de justificar a fama de Robin Hood de que os bandoleiros viriam
a gozar. (Pág. 65).
Essa “fama de Robin Hood” é uma criação recente do pensamento de
esquerda; não me parece haver nenhuma evidência de que o povo sertanejo na
época considerasse os cangaceiros gente boa. Muito comodamente, os autores do mito
esperaram oitenta anos desde a morte de Lampião e de seu bando para
enaltecê-los. Queria ver se algum professor da Faculdade de Direito de São
Paulo que morasse em Mossoró (RN) em 1927 – quando a cidade foi atacada pelos
criminosos – teria dormido tranquilo com a certeza de que aqueles rapazes não
iriam fazer mal a gente pobre como ele.
Partindo do
ponto de que foram superadas as razões de explosão do cangaceirismo –
vinculadas ao momento de franca desarticulação social, típica do momento de
transição –, quero terminar apresentando as conclusões a que este estudo me
levou: os motivos pelos quais a solidificação do capitalismo no país como forma
social hegemônica foi, também, a alcova do cangaço. (Págs. 70-71).
Os “momentos de franca desarticulação social” no sertão nordestino,
entre 1888 (abolição da escravidão) e 1938 (assassinato de Lampião e de seu
bando) estão relacionados às secas que, periodicamente, transformavam agricultores
mal nutridos em flagelados famintos. Não têm nada a ver (exceto pela
coincidência no tempo) com a transição para o capitalismo. Até porque, nesse
período, o sertão não estava transitando para lugar nenhum, muito menos para o
capitalismo.
Eu, de modo
algum, divergirei quanto aos motivos da queda dos cangaceiros. Apenas
preferirei chamar esse conjunto de razões de capitalismo e, mais
especificamente, Estado. Sendo essa a conclusão maior desta tese, passo a
demonstrar como a consolidação do capitalismo como forma de organização social
soberana no Brasil foi determinante para o remate desse fenômeno, associando-a
ao soerguimento do Estado. (Pág. 74).
O cangaceirismo morre, ou muda drasticamente de forma, em
resultado de fatores como a melhoria dos transportes e comunicações (construção
de rodovias, ferrovias, difusão do rádio e do telégrafo), o fortalecimento do
poder central (dos estados, antes mesmo que do país), os acordos políticos que
permitem à polícia de um estado atravessar as fronteiras com outro durante a perseguição
aos bandidos. Chamar esse “conjunto de razões” de “capitalismo e, mais
especificamente, Estado” não acrescenta nada ao entendimento do assunto.
Por fim,
tem-se o progresso tecnológico como grande elemento para o extermínio do
cangaceirismo. (Pág. 76).
Quem precisa recorrer à consolidação do capitalismo no Brasil se é
tão mais simples dizer isso que está escrito acima?
9.
Considerações
finais
Volto ao ponto de partida. Esses comentários suscitados pela tese
de LGM também podem ser vistos como os que o Gustavo maduro – instruído por
seis décadas de leituras, reflexões diárias sobre a realidade brasileira e
mundial, estudos sistemáticos e passagens pelos governos municipal, estadual e
federal – dirige ao Gustavo jovem, estudante de economia nos anos 1967-70,
revoltado com a situação política em nosso país e, sobretudo, com o espetáculo
de pobreza generalizada que, mais ainda do que hoje, se escancarava diante de
todos em Pernambuco e no Brasil.
Como não ser mordido pela mosca azul dos diagnósticos fáceis e das
soluções mágicas, que sempre foram a marca distintiva do pensamento
esquerdista? “O problema da pobreza é político”; “só a revolução social
redimirá o país”; “o Brasil é pobre porque o capital imperialista nos subtrai
as riquezas”; “reforma agrária na lei ou na marra; “o lucro é o roubo” – e
tantas outras. Pois eu fui atraído por esse discurso, embora, desde os tempos
mais remotos, tenha também me defendido das crenças sectárias, evitado
filiações partidárias que me tolhessem a liberdade intelectual, aprendido a
lição de Bertrand Russell segundo a qual mais importante que a vontade de crer
é a coragem de duvidar.
Vou pôr a questão em termos mais amplos. Nos anos sessenta do
século passado – são os que me interessam, no momento, mas o que irei dizer não
se restringe a eles – duas ideologias político-econômicas respeitáveis, com graus
diferentes de elaboração, competiam (não apenas) no Brasil. Uma delas, de
raízes marxistas, enfeitiçava a esquerda, os que queriam respostas rápidas e
vigorosas contra as mazelas do mundo. Todas as frases-manifesto relembradas no
parágrafo anterior faziam parte dessa visão de mundo. Se a gente só pudesse
usar uma palavra para descrevê-la, essa palavra seria “revolução”. Se duas,
“reformas radicais”.
A outra grande ideologia, cujos fundamentos filosóficos são dispersos,
reconhecia a existência de mazelas. Seus defensores compartilhavam com os
adversários o desejo de resolvê-las, mas reconheciam a dificuldade inerente a
isso. Preferiam abordagens passo-a-passo a rompimentos; argumentavam que o
problema da pobreza não era político, mas econômico; que a revolução social, ao
invés de salvar o país, o arruinaria, beneficiando apenas os grupos que viessem
a se apoderar do Estado; que o Brasil não estava em má situação econômica por
causa do capital estrangeiro, ao contrário, precisava dele para sair da pobreza;
que fazer a reforma agrária na lei ou na marra, como um ato de rebeldia e
desafio, provocaria o colapso da produção agrícola, com graves prejuízos para
todos; que, ao invés de ser moralmente condenável, o lucro era o que movia os
empresários a aumentar a produção, expandir o emprego, gerar, enfim, as
condições necessárias para a superação da miséria. É difícil resumir isso tudo
em uma ou duas palavras, porém não seria errado dar o rótulo “desenvolvimento”
ou “gradualismo como método” a essa visão.
A segunda maneira de ver o mundo e de transformá-lo, já se vê, não
tinha a mínima possibilidade de vencer o debate intelectual que então se
travava, exceto, talvez, em círculos muito restritos. Faltava-lhe (ainda hoje
falta) o discreto charme das teses dicotômicas e das promessas mirabolantes. O
texto de LGM ecoa algumas dessas palavras de ordem que a esquerda jogava na
cara dos que defendiam o discurso gradualista. Aquela frase dele, que eu
comentei (“Esse princípios [liberdade,
igualdade] são impossíveis de se realizar
no capitalismo, que se apoia na desigualdade”) era aplicada em diversas
variações para desacreditar tudo o que o gradualismo como método, a direita
respeitável, propunha. E com que efeitos! (Usei o adjetivo “respeitável”, para
diferenciar essa direita da outra simplesmente reacionária, quando não
fascista, mas é bom lembrar que havia também uma esquerda “não respeitável”
que, em vez de lutar por ideias, assaltava bancos e explodia bombas em
aeroportos.)
Esse foi o quadro do embate ideológico com que o jovem estudante
de economia (e, paralelamente, jornalista profissional, cobrindo a área
política para o Jornal do Commercio do
Recife), leitor assíduo de livros, jornais e revistas desde criança, se deparou
nos anos sessenta do século passado. Com as ressalvas já mencionadas, eu era,
francamente, “de esquerda” ao defender reformas radicais, embora desconfiasse
da revolução. E assim continuei por um bom tempo depois de formado: essa opção
político-intelectual marcou, por exemplo, minha tese de Ph.D. defendida em
dezembro de 1983, nos Estados Unidos. Não se trata de uma tese ruim, longe
disso. Tanto que foi aprovada sem problemas e selecionada para publicação
comercial na forma de livro por uma editora de Nova York (1986). Hoje,
entretanto, eu não a aprecio, exatamente, pelo ranço esquerdista que dela
emana.
Mas, quando minha opção intelectual migrou da esquerda tudo-ou-nada
para a direita respeitável? Não aconteceu num piscar de olhos. A mudança foi
construída aos poucos, pela reflexão sobre acontecimentos marcantes, alguns
deles anteriores até mesmo à entrada na universidade. Destaco a revelação das
atrocidades de Stálin (a partir de 1956); o banho de sangue que se seguiu à
revolução cubana (1959); a construção do muro de Berlim (1961); os erros graves
da interpretação esquerdista da realidade brasileira, que facilitaram a
derrocada de 1964; o indefensável governo João Goulart (1961-64); as conversas
com meu tio Hermano Cardoso Pedrosa, professor nas faculdades de Engenharia e
de Economia em Maceió, gradualista, sim, uma das influências mais estimulantes
que tive na vida; o aprendizado da boa macroeconomia com Affonso Celso Pastore,
durante o mestrado em São Paulo (1971-72); a leitura do livro Brasil 2001, de Mário Henrique Simonsen
(1972); (pelo lado negativo, o contato com livros dogmáticos, horrorosos – um
dos quais sobre a história do pensamento econômico – editados pela Academia de
Ciências da União Soviética e traduzidos para o português); o estudo da teoria
neoclássica dos preços em livros como os de Charles Ferguson, Robert Dorfman e
Robert Heilbroner (1973-76); o acompanhamento à distância (eu morava, nessa
época, na Inglaterra) da elaboração da Constituição brasileira (1988), um
monumento à irracionalidade que deu um nó indesatável no desenvolvimento de
nosso país; a vivência próxima, em Cambridge, dos atos do governo Thatcher
(1979-90); a revelação das políticas alucinadas de Mao Zedhong na China
(1958-62; 1966-76) que mataram de fome cerca de cem milhões de pessoas; a
implantação do capitalismo naquele país, após a morte de Mao, no início, com Deng
Xiaoping à frente (desde 1979); o reconhecimento de que Ronald Reagan foi um
grande presidente dos Estados Unidos (1981-89); os esforços desesperados e
frustrados de Mickail Gorbachev (1985-91) de reformar econômica e politicamente
o comunismo em seu país; a queda o muro de Berlim e a constatação de que as
pessoas, sem exceção, queriam sair do “paraíso socialista” para o “inferno
burguês” e não o contrário; a derrocada do império russo e do socialismo,
primeiro, nos países satélites e, por fim, na própria União Soviética (1989-91).
Cada um desses fatores minou um pouco minhas convicções
esquerdistas, até que não havia mais nada para salvar. Houve outros, pois –
mais no resto do mundo do que no Brasil – o gradualismo, ou seja, a recusa à
revolução ou às reformas radicais como método, acumulou um ponderável saldo de
realizações positivas: um quarto de século de crescimento econômico firme e a
concomitante construção do Estado de Bem Estar na Europa ocidental (1946-70); a
reabilitação econômica da Grã Bretanha durante e após o governo Thatcher; a vitória
dos Estados Unidos na guerra fria e na competição econômica com a antiga União
Soviética (1991); o espetacular êxito desde 1979 da China economicamente
capitalista e, começando antes disso, o surto de prosperidade também
capitalista dos “tigres asiáticos”; a consolidação da União Europeia, especialmente,
após Maastricht (1993).
Enfim, a experiência que vivi, desde os anos 1960, pode ser
descrita, à maneira de síntese, desta maneira: o capitalismo – que se fez acompanhar na Europa ocidental, nos
Estados Unidos, Canadá, Austrália, Japão e outros países, pela democracia
liberal – construiu a melhor sociedade que a espécie humana já
teve, desde que os primeiros homo Sapiens deixaram a África. A mais rica. A
mais politicamente livre. Desigual, como todas, mas com distâncias econômicas
sociais toleráveis entre seus integrantes, muito menores do que havia sido a
norma anterior. Em contraste, os regimes socialistas ou comunistas – tão ao
agrado da esquerda – produziram a estagnação econômica, crises severas de fome
e ditaduras ferozes. Não há comparação.
Sei que dificilmente LGM irá se convencer disso, agora. Algum dia,
no futuro, talvez.
Bruno A. Picoli, “Jacob Gorender, o escravismo colonial e um
debate ainda atual”, s/d, sem identificação de local onde possa ter sido
publicado, disponível na internet.
Sílvio Almeida, conforme me informa a Tese de Láurea, é professor
de Direito na Faculdade em que se formou LGM. O que pode, parcialmente,
explicar a insistência do aluno em repetir chavões agradáveis ao pensamento da
esquerda (afinal, ele queria ter seu trabalho aprovado), mas desastrosos como
instrumentos para se enxergar e entender a realidade.