domingo, 30 de outubro de 2011

Não surpreende, preocupa


Gustavo Maia Gomes
Uma notícia ruim, para os que gostariam de habitar um país menos desigual: o Comitê Gestor da Internet informa que, no Brasil, 35% dos domicílios possuem computador; no Nordeste, somente 14%. Menos da metade. Em termos de domicílios com acesso à Internet, os números são 27% e 11%, respectivamente. A situação relativa é um pouco menos grave na proporção da população usuária da Internet: 41% no Brasil, 28% no Nordeste.
– Não surpreende.
Para compensar, uma notícia boa, de outra fonte: o complexo tecnológico do Recife, conhecido como Porto Digital, conquistou, na semana passada, pela segunda vez, o título de melhor parque tecnológico do país, concedido pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores.
– Não surpreende.
Mas, então, voltamos ao Comitê Gestor da Internet: o desafio da inclusão digital é ainda maior no Nordeste do que no conjunto do país, pois esta região apresenta as menores taxas de crescimento da posse e uso das tecnologias de informação e comunicação. Ou seja, neste item, pelo menos (cuja importância não pode ser subestimada), a desigualdade regional brasileira está aumentando.
– Não surpreende, mas preocupa.
Referências:
Comitê Gestor da Internet no Brasil. “TIC Domicílios e Empresas: Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação no Brasil, 2010”. São Paulo, 2011 (pág. 137).
Diário de Pernambuco online. “Porto Digital eleito melhor parque tecnológico do país”, 28/10/2011.
(Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com, 31 out 2011)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Haja lixo hospitalar


Gustavo Maia Gomes
Aconteceu no porto de Suape: uma carga comprada por empresa de Santa Cruz do Capibaribe (PE), oficialmente descrita como “tecidos defeituosos”, continha, na verdade, descartes hospitalares. Começava um escândalo com devastadoras implicações para a imagem do polo de confecções do Agreste pernambucano.
Mas era só a ponta do iceberg. Nos dias seguintes, alertada pelo noticiário, gente de todo o país relatou ter comprado roupas com inscrições hospitalares – até a Santa Casa de Belo Horizonte revendia seus trapos. Lençóis da St Luke Health Care eram regularmente usados em hotéis do interior. Uma nova grife, talvez.
Descobrimos que a reutilização do lixo hospitalar não era um problema só de Pernambuco, ou de seu polo de confecções. Não que isso constitua consolo, mas o registro precisa ser feito. Para torná-lo mais enfático, transcrevo umas poucas notícias recentes sobre o mesmo tema.

OS FATOS
Até hoje ele acha que são novas, diz polícia sobre dono de lixo hospitalar. Comerciante de Ilhéus (BA) prestou depoimento na noite de domingo. Peças apreendidas tinham nomes de médicos e até manchas de sangue. (G1 Bahia, Rede Bahia de Televisão. 24/10/2011; 11:42)
Escândalo do reúso de lençóis de hospitais chega a São Paulo. Um comerciante do Brás foi acusado pelo dono da loja em Ilhéus, na Bahia, de vender tecidos com logomarcas de vários hospitais brasileiros. As autoridades suspeitam que o material seja lixo hospitalar. (http:// veja.abril.com.br/noticia/brasil/escandalo-do-reuso-de-lencois-de-hospitais-chega-a-sp. 22/10/2011)
Suposto lixo hospitalar é encontrado em forro de roupa em Fortaleza. Dona de casa (...) enviou ao Diário do Nordeste Online imagens da roupa ao avesso que mostram as logos do Governo da Bahia e da Maternidade Professor José Maria de Magalhães Neto, localizada em Salvador. (Liana Sampaio) http://diariodonordeste. globo.com/noticia.asp?codigo=328900&modulo =966 . 21/10/11)
Lençóis contaminados dos EUA são usados na indústria têxtil da Paraíba. Peças com retalhos potencialmente contaminados foram localizadas em Pernambuco, na Paraíba, na Bahia, no Ceará, no Espírito Santo e no Piauí. Uma carga saída do bairro do Brás, em São Paulo, foi interceptada ontem, com cerca de 13t de lençóis com nomes e marcas de hospitais e moteis brasileiros. (http://www.paraiba.com.br/2011/10/21/67324-lixo-hospitalar-lencois-contaminados -dos-eua-sao-usados-na-industria-textil-da-paraiba . 21/10/2011)
Santa Casa em Belo Horizonte comenta uso de lençóis hospitalares em roupas. Tecidos com inscrições de hospitais de Belo Horizonte foram usados para confeccionar bolsos de calças. Nesta quinta-feira, o grupo Santa Casa informou que existe a possibilidade do fabricante de lençóis ter repassado retalhos têxteis às confecções. Mas não quis divulgar os nomes das indústrias fornecedoras. http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2011/10/santa-casa-em-bh-comenta-uso-de-lencois-hospitalares-em-roupas.html.

“EM COMPENSAÇÃO”
Meu falecido tio Álvaro Batinga, advogado de renome em Maceió na década de sessenta, tinha uma veia satírica particularmente aguçada. Certa vez, ele contou a seguinte história.
Um menino de seus dez a doze anos pergunta ao pai o que queria dizer “em compensação”. O pai explica de várias maneiras, mas não se faz entender em nenhuma. Apela, então, para um exemplo.
– Joãosinho – diz ele –, se você chegasse aqui em casa, uma noite, e encontrasse sua mãe na cama com outro homem, o que eu seria?
O menino responde prontamente, sem disfarçar a satisfação:
– Corno.
Ao que o pai retruca:
– É, mas em compensação, você seria f. da p.
No episódio do lixo hospitalar, o polo de confecções do Agreste pernambucano bem pode ter sido o corno, mas, em compensação, contribuiu para mostrar que há muitos f. da p. por aí.
  

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Cabeça Pensante

Um conto de Gustavo Maia Gomes



Domador de animais ferozes há trinta e cinco anos, Antonio Severiano ficou sabendo que ia ser mandado embora. E que os seus leões seriam abandonados próximos a um culto religioso, onde havia carne macia em abundância. Nada disso tinha a ver com a globalização. Apenas, o dono do circo perdera a paciência. Alimentar as feras custava caro e ninguém mais queria saber de leões e domadores.
Antonio ficou devastado, porém não surpreso. Sabia que o público se desinteressara de seu espetáculo. Tinha reagido, inventando novos quadros. Uma, duas, cinco vezes, sem nenhum resultado; seis, sete, dez outras, e nada. Em desespero, decidira superar seus limites: desde há um mês, enquanto os tambores rufavam, ele punha sua cabeça dentro da boca de Espartaco, o maior dos oito leões. Era uma temeridade, mas, fazer o quê? Mesmo assim, a platéia se manteve indiferente. O patrão percebeu e tomou sua decisão. Antonio viu o mundo desmoronar. Vivia daquilo. Pediu clemência.
Não adiantou. E, assim, neste seu último dia no emprego, ele está ali, enfrentando as feras. O número chega ao clímax: sob o rufar dos tambores, Antonio Severiano põe a cabeça na boca de Espartaco. Ato contínuo, num gesto súbito e inapelável, o leão trinca os dentes, decapitando o domador.
No instante seguinte, o Antonio sem cabeça se põe a dar voltas frenéticas pelo picadeiro, jorrando sangue em grandes golfadas. Espartaco abre a boca e cospe o pedaço de gente que quase engolira. De uma pessoa, o domador se transforma em duas: o tronco com as pernas e os braços, que sai correndo em círculos feito louco, tingindo o circo de vermelho; e a cabeça, que fica plantada no chão, os olhos esbugalhados observando a cena.
E então o público entende que aquilo tudo faz parte do show e começa a aplaudir vibrantemente. Gritos de viva ecoam sob a lona, em um delírio geral. Há uma atmosfera de entusiasmo. As crianças estão empolgadas, pois são crianças; o vendedor de pipocas joga os saquinhos para o ar, em puro deslumbramento; o dono do circo chora, de incontida alegria; o domador decapitado gira a esmo pelo palco, como se fosse de felicidade.
 Mais uns poucos segundos sob intensos aplausos e o Antonio sem cabeça dá a sua última volta, antes de tombar para sempre, branco como um giz, em estertores. A platéia se põe de pé, em uma ovação jamais vista. Nos bastidores, trapezistas, macacos, palhaços e mágicos se cumprimentam efusivamente. Trepados nas arquibancadas, meninos e meninas devoram as pipocas caídas do céu, muitas delas pintadas de vermelho. Eufórico, o dono do circo entra na jaula – com um pontapé, afasta do caminho a cabeça do domador – e abraça Espartaco, de cuja boca ainda escorre um resto de sangue humano.
 No chão, agora toda melada de cocô, mas com os olhos bem abertos e um sorriso vitorioso nos lábios, a cabeça de Antonio Severiano somente tem tempo para os dois momentos de sua última reflexão:
 – Por que não pensei nisso antes? Por que não pensei nisso antes? 

Publicado na revista Inteligência (Rio de Janeiro) n. 35, Dez 2006, como seção n. 2 de "Dez Contos com Descontos". 

Crepúsculo

Um conto de Gustavo Maia Gomes



Cansado, chegou ao barraco. No espelho, contemplou seu último nariz. Como o cirurgião não removera o anterior, desde a última operação, ele tinha quatro narinas. Se fosse nos seus dias de glória, aquilo viraria moda.

Descalçou os sapatos; tirou as roupas íntimas, que lhe disfarçavam a barriga. E as não íntimas, que escondiam a decadência geral. Guardou a dentadura, pôs a peruca no cabide, desatarraxou a perna postiça. Tirou as lentes de  contato. Um olho era de vidro: colocou-o na geladeira. A maquiagem, derretida, havia deixado um rastro por onde ele passara. Em outros tempos, as fãs o teriam lambido.

Verificou o marca-passo: estava funcionando, mesmo com a bateria vencida. Aliás, baterias vencidas eram um problema também do aparelho anti-surdez, um modelo antigo que não cabia atrás da orelha. O rim  solitário incomodava, e ele se lembrou que vendera o outro a um traficante de órgãos. Com o dinheiro, fez uma viagem a Jeremoabo, na Bahia. Um dia, ele cantara ali, num grande show.
Um pênis de borracha substituía o original, reduzido a farelos pelo câncer. Peça móvel, como as outras, também depositada na gaveta, como as outras. Quantas mulheres havia tido? Impossível contar. Hoje, portava um pênis falso, somente útil para fins urinários.
 
Para reduzir o mau hálito, habituara-se a manter uma medalha de Nossa Senhora de Fátima e um limão sem casca embaixo da língua. Funcionava. (Mas, agora, quase esquecia de cuspi-los.)
 
Da mão direita, dois dos dedos eram artificiais: tirou-os, e os colocou na gaveta. Ainda bem que, com os três restantes, podia fazer quase tudo. Como isso que ele estava fazendo neste instante: apontando o revólver contra o ouvido e estourando os próprios miolos. 

O sangue que lhe jorrou da cabeça tinha sido recebido em transfusão, duas horas antes. Na breve notícia do dia seguinte, o jornal considerou isso um desperdício.


Publicado na revista Inteligência (Rio de Janeiro) n. 35, Dez 2006, como seção n. 1 de "Dez Contos com Descontos".



terça-feira, 18 de outubro de 2011

Microeconomia da Empresa Religiosa


Gustavo Maia Gomes

(Artigo publicado em Valor Econômico, 3 de julho de 2001)
A expansão das seitas religiosas que funcionam como autênticas empresas representa um importante fenômeno contemporâneo, especialmente no Brasil. O que são essas "religiões do lucro"? O que explica sua fantástica multiplicação? Por que algumas delas se tornaram organizações de grande porte, com atuação multinacional, como a "Universal do Reino de Deus" e a "Deus é Amor"?

Pode a teoria econômica responder a tais perguntas? Com certeza, sim. Por um lado, porque os elos de dependência entre religião e economia sempre existiram. Para funcionar, qualquer Igreja precisa cobrir seus custos: quem sustenta o padre ou pastor? como é paga a manutenção dos templos? Por outro lado, porque as organizações religiosas têm sido mais e mais concebidas como empreendimentos geradores de receitas, pela venda de ilusões embaladas em linguagem bíblica - uma boa definição para as religiões do lucro. Sua simples existência já justifica falar-se de uma "microeconomia da empresa religiosa".

Microeconomia de um mercado altamente competitivo, embora nem sempre tenha sido assim. Pois, até meados do século vinte, a Igreja Católica exerceu um virtual monopólio na indústria brasileira de serviços religiosos, oferecendo um produto único, que deveria ser consumido indistintamente por ricos e pobres, jovens e velhos, brancos e negros.

O monopólio pôde ser mantido enquanto o Brasil foi uma sociedade agrária, mas não resistiu à industrialização. Sobretudo porque, junto com a indústria, vieram a cidade, o rádio, a televisão - veio uma visão do mundo mais individualista. Um dia, quebrou-se o encanto: não era mais proibido procurar substitutos para a religião de nossos pais e avós. Estava aberta a competição, condição necessária, embora não suficiente, para o aparecimento de dissidências no próprio catolicismo e, em última análise, para a proliferação de novas seitas.

Quando perderam o monopólio, setores da Igreja Católica trataram de enfrentar a concorrência diversificando seu produto. Assim surgiram a religião-espetáculo, que leva violões e conjuntos musicais para animar as missas; a teologia da libertação, dirigida aos jovens com preocupações sociais; a carismática, que promete tornar o imaginário religioso diretamente acessível aos fiéis.

Tal reação garantiu uma sobrevida ao catolicismo brasileiro, mas não eliminou suas desvantagens na competição por receitas e lucros. Pois, apesar de jogar pesado neste terreno, enquanto pôde fazê-lo, a Católica sempre manteve uma posição dúbia com respeito aos bens materiais. (Não era mais difícil um rico salvar-se do que um camelo passar num buraco de agulha?) Devido a isso, quando seu monopólio foi quebrado, o que lhe dificultou manter ativos os antigos modos de acumulação baseados em privilégios legais e em terror moral, aquela Igreja se viu praticamente impossibilitada de crescer.Claramente, foram os evangélicos que ganharam a guerra. Como bons empresários, eles fizeram quatro descobertas fundamentais:

1. que o investimento inicial necessário para fundar uma igreja é muito    pequeno;

2. que os custos correntes do negócio também são baixos;

3. que existe uma demanda praticamente ilimitada por produtos religiosos como hipotéticos ganhos materiais, supostas curas miraculosas e reservas de lugares no Paraíso; e

4. que é possível vender esses produtos por meio da cobrança de dízimos e da extração de ofertas e doações. 


Passando da teoria à prática, os novos empresários logo estavam convertendo possibilidades em lucros. Ou seja, os quatro fatores acima, somados à existência de pessoas dotadas de capacidade empresarial, explicam a proliferação das seitas, que continuam surgindo do nada, aos montões.

Mas, se os elementos relacionados no parágrafo anterior favorecem a multiplicação dos pequenos empreendimentos religiosos, como explicar que algumas dessas igrejas tenham crescido espetacularmente?

A chave da resposta está no fato de que, a exemplo das drogas, a religião também causa dependência física e mental. Devido a isso, se tiver habilidade para convencer os clientes de que sua particular seita é a única "verdadeira", o pastor-empresário poderá contar com a fidelidade praticamente incondicional de seus seguidores.

Em microeconomia, isso se chama diferenciação de produto, geralmente alcançada com o auxílio da propaganda e artifícios de embalagem. Quanto mais conseguir diferenciar seu produto, mais uma determinada seita reduzirá a elasticidade-preço do mesmo, o que significa dizer que as pessoas consumirão quantidades constantes daquela espécie particular de serviço religioso, ainda que a pressão do pastor para extrair dinheiro de seus fiéis alcance intensidade maior do que a da concorrência. Os empresários que conseguiram um bom resultado nessa empreitada puderam ter taxas de lucro anormalmente altas e, assim, financiar um grande crescimento de sua seita.

Dessa forma, tomadas em conjunto, as características do processo produtivo e as propriedades narcotizantes do produto religioso explicam tanto a profusão de seitas (pois os custos de montar o negócio são baixos e as perspectivas de lucro, altas) quanto a extraordinária expansão de algumas delas (cujos clientes aprenderam a perceber a diferença entre seis e meia dúzia). O acesso aos meios de comunicação em massa, privilégio das maiores seitas, apenas reforça essa última tendência.

Recebedores de tantas bênçãos, imediatamente transformadas em gordas contas bancárias, os novos empresários religiosos têm mesmo é de dar graças a Deus e (como diriam os economistas) a funções de produção e de utilidade muito convenientes.

Amém.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

“Imigrantes do mundo, uni-vos”


Gustavo Maia Gomes


Um estudo do Banco Mundial (veja a referência no final deste artigo) cobrindo todos os países nos últimos dois séculos e meio propõe-se a explicar a riqueza ou a pobreza relativa das pessoas respondendo a apenas duas perguntas: (1) o chefe da família é um capitalista? e (2) em que país a pessoa mora?

As principais conclusões são as seguintes:

(1) Em meados do século 19, o primeiro fator respondia por metade da desigualdade: donos de capital eram ricos; trabalhadores, pobres. O local de residência explicava a outra metade: capitalistas ingleses tinham renda maior do que capitalistas indianos. Mas não havia muita diferença de renda entre trabalhadores de países ricos e de países pobres. Todos viviam pouco mais, pouco menos, no limite da subsistência.

(2) No início do século 21, isso mudou substancialmente. Agora, só um quinto da disparidade de renda se deve à propriedade (ou falta dela) do capital; os outros quatro quintos são devidos ao local de residência. Outra mudança importantíssima: os salários dos trabalhadores de baixa, porém similar, qualificação – que há 160 anos pouco diferiam – são, hoje, dez vezes maiores nos países ricos que nos muito pobres.

Dois grandes processos concorreram para produzir essa nova realidade, ambos nas sociedades capitalistas precursoras da revolução industrial: os países da Europa ocidental, Estados Unidos, Canadá, Japão, e uns poucos outros.

De um lado, aconteceu nesses países um crescimento econômico de duração e intensidade absolutamente sem precedentes na história universal. Isso distanciou a renda média dos países ricos da dos países pobres, onde não estava ocorrendo nada semelhante, dessa forma, contribuindo para realçar a importância da “localização” na explicação das diferenças de renda entre pessoas de todo o mundo.

De outro lado, sobretudo, a partir da segunda metade do século 20, os trabalhadores nos países capitalistas avançados conseguiram se apropriar de parcelas crescentes dos aumentos de produtividade que estavam alimentando a expansão do produto interno, transformando-as em maiores salários. Como não havia quase nenhum crescimento em boa parte dos países pobres, não havia o que distribuir na forma de aumentos salariais. Portanto, as rendas dos trabalhadores se distanciaram cada vez mais, entre países, contribuindo para reduzir o peso da propriedade (ou não) do capital como elemento explicativo da desigualdade.

Branko Milanovic, o autor do estudo, percebeu com clareza a implicação dessa mudança. Em 1848, Marx e Engels publicaram o Manifesto do Partido Comunista, com o lema “Proletários do mundo, uni-vos [para fazer a revolução universal]; nada tendes a perder senão vossos grilhões”. A política internacional nos 150 anos seguintes giraria, em grande medida, em torno disso. Já em 2011, o grito de guerra teria de ser outro: “Imigrantes da pobreza, vão à luta [para entrar ilegalmente na Europa ou nos Estados Unidos], nada tendes a perder senão uma miserável existência”. É provável que a política internacional neste século venha a ser dominada, cada vez mais, por essa questão.

Do ponto de vista mais estritamente econômico, Milanovic realça um ponto importante: como ainda levará muito tempo até que o crescimento econômico mais rápido dos países pobres reduza substancialmente a discrepância de renda média entre países, a única via rápida para a redução das desigualdades entre pessoas será, mesmo, a migração. Que deveria, então, ser estimulada, ao invés de combatida. (Mas vá dizer isso aos assalariados da Alemanha ou dos Estados Unidos.)

Se o velho Marx saísse da tumba iria querer morrer de novo: seu sonho da solidariedade internacional entre os proletários transformou-se na perseguição – apoiada pelos trabalhadores alemães – aos africanos destituídos de capital que tentam entrar na Europa.

E quem disse que isso também não acontece – felizmente, ainda, em grau menor – dentro do nosso próprio país, por exemplo, com os nordestinos em São Paulo?

  
Referências:

Branko Milanovic, “Global Inequality: From Class to Location, from Proletarians to Migrants”, The World Bank, Policy Research Working Paper 5820, September 2011, disponível em http://www-wds.worldbank.org/external/default/WDSContentServer /IW3P/IB/2011/09/29/000158349 _20110929082257/Rendered/PDF/WPS5820.pdf

Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto Comunista. Disponível como livro eletrônico em http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf (A edição alemã original é de 1848)

sábado, 15 de outubro de 2011

Rebolation é cultura


Gustavo Maia Gomes


Em 1935, um grande sucesso da música popular brasileira foi “Chão de estrelas”, de Orestes Barbosa. Tinha versos como: A porta do barraco era sem trinco / Mas a lua furando nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão / E tu pisavas nos astros, distraída... Doze anos depois, o Brasil cantou “Asa Branca” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira): Que braseiro, que fornaia / Nem um pé de prantação / Por farta d'água perdi meu gado / Morreu de sede meu alazão... Em 1974, apareceu nas paradas “As rosas não falam”, de Cartola: Queixo-me às rosas / Mas que bobagem / As rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti...
Tudo isso é passado. Em 2010, o grande sucesso nacional chama-se “Rebolation”. Com quase nada a mais, a letra é a seguinte: Mão na cabeça que vai começar / O rebolation, o rebolation, o rebolation, tion, rebolation / O rebolation, tion, o rebolation, o rebolation, tion, rebolation / Rebolation é bom, bom, rebolation é bom, bom, bom / Rebolation é bom, bom. Se você fizer fica melhor. Contrariamente ao caso das canções antes citadas, esta tem um texto que qualquer débil mental pode entender. Mas ela também incorpora ritmo vibrante e é executada com coreografia de forte apelo sensual (para alguns).
LETRA E MELODIA
Das três canções antecessoras do “Rebolation”, enfatizei as letras, que tentam transmitir suas mensagens pelo recurso ao sentimento, à emoção, à vivência da beleza. As melodias respectivas são agradáveis ao ouvido, claro, mas, no máximo, têm a mesma importância das letras. Nunca, mais. Já o aspecto visual era quase inexistente; o ritmo, tampouco, merecia destaque. 
Isso se explica. Por um lado, não havia televisão ou, quando passou a haver, o acesso a aparelhos de TV era limitado a uma pequena camada da população. Além disso, muito pouca gente podia ver, em ocasiões esparsas, uma apresentação ao vivo de Sílvio Caldas (que gravou “Chão de estrelas”), Luiz Gonzaga, ou Cartola. Por outro lado, a qualidade do som radiofônico ou gravado (especialmente, para tons mais graves) era ruim, o que tirava o impacto da percussão e, em última análise, do ritmo.
De fato, até as décadas de 1960 e 1970, o grande veículo de difusão era o rádio -– que, mesmo assim, estava longe de ser acessível à maioria; o disco (e, mais ainda, os fonógrafos) era, igualmente, caro e podia ser adquirido apenas por poucos. Em poucas palavras: na época do rádio, a música teve de se limitar a uma mistura de letra e melodia, sem visual e sem grande apelo rítmico. Os consumidores eram poucos e, dada sua raridade, relativamente, ricos. Em termos comparativos, eram, também, educados -– instruídos, quero dizer. A música que então se produzia e comercializava era coerente com essa realidade.
IMAGEM E RITMO
Hoje em dia, muita coisa mudou. Praticamente, cem por cento da população brasileira têm acesso à televisão; um DVD pode ser adquirido em versões piratas por quase nada. A qualidade da reprodução do som também aumentou muito, enquanto os respectivos preços baixaram enormemente. Assim, duas novas dimensões foram acrescentadas à música popular: a visual e a (fortemente) rítmica. Ao mesmo tempo, contudo, o estofo emocional, intelectual e estético da maioria das pessoas (seu nível de educação, sua sensibilidade, seu interesse em temas socialmente relevantes) não parece ter mudado quase nada. Só que, antes, essa gente não comprava música; quem o fazia era capaz de entender Orestes Barbosa, Luiz Gonzaga ou Cartola. Hoje, ela -– a grande maioria do povo -– compra, em larga escala.
Portanto, a música comercial, agora mais barata, tornou-se acessível à massa. E o quê uma população funcionalmente analfabeta mostrou querer consumir? Muito menos poesia do que imagens; muito menos melodia do que ritmos alucinógenos; muito menos amores românticos do que sensualidade aberta. E, assim, atingimos o “Rebolation”. Sua lição mais profunda talvez seja essa: para tirar proveito da redução dos custos de gravar, reproduzir e difundir som e imagem, a oferta de música amoldou-se ao tipo de preferências que (respeitadas pequenas variações) sempre existiram, mas que só agora puderam tornar-se demanda efetiva, ou seja, respaldada em poder de compra.
Em síntese: consumir música tornou-se barato, mas a qualidade dos consumidores jamais melhorou significativamente. De modo que, quando a música chegou ao povo, ela também atingiu seu estágio mais avançado de degradação. Por critérios estéticos, pelo menos. Economicamente, ao contrário, a produção de porcarias vai muito bem.

(Publicado na revista Nordeste Econômico, Ano 4, n. 19, abril de 2010)

Suape ou o retorno de Jedi


Gustavo Maia Gomes
  
Segundo a Wikipédia, que não me deixa mentir (embora, com certa freqüência, ela própria o faça), o Retorno de Jedi, lançado em 1983, foi o sexto filme da série Guerra nas Estrelas. Arrecadou milhões de dólares pelo mundo, estando entre as cem maiores bilheterias da história. Um marco não Maciel.
– Mas o quê Suape tem a ver com o Jedi?
– Não é com o Jedi; é com o retorno: Suape tem a ver, e muito, com o inesperado renascimento do otimismo econômico “desenvolvimentista” dos anos 1950 e 1960 em Pernambuco; talvez, no Nordeste; um pouco menos, no Brasil.
No universo intelectual daquela época, produzido, especialmente, pelos economistas, reconhecia-se a pobreza de muitas nações, regiões ou estados – e essa era uma coisa nova. Mas se acreditava, sobretudo, que o desenvolvimento econômico traria a eliminação da pobreza– e essa era uma coisa novíssima.
Para todos os efeitos práticos, desenvolvimento queria dizer industrialização: isso é transparente no relatório do GTDN, escrito por Celso Furtado, em 1959. (A sigla tornou-se um nome que dispensava traduções; hoje, é bom lembrar que GTDN quer dizer Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste. Dali saiu a ideia da Sudene, Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste.) O relatório Furtado propunha quatro grandes linhas de ação para a região, mas não havia dúvida de que, das quatro, a industrialização era a mais importante. Em Pernambuco, o símbolo da esperança desenvolvimentista era o “Complexo Industrial Portuário de Suape”, que veio bem depois.
Assim como no Nordeste, no Brasil e no mundo. Desde antes do GTDN, o Brasil de Vargas (especialmente no seu último período de governo, 1951-54) e, sobretudo, o de Juscelino Kubitscheck (1956-61) acreditou na ideia de que a industrialização traria a riqueza de muitos e o fim da miséria de muitos mais. E, de uma forma geral, a tese parecia estar sendo demonstrada pelos fatos: com poucas exceções, os anos que vão do fim da Segunda Guerra (1945) até o segundo choque do petróleo (1979) testemunharam, no Brasil, vigoroso crescimento econômico propulsionado pela industrialização. Os indicadores sociais melhoraram muito; o emprego cresceu; a totalidade da população se beneficiou. Uns mais, outros menos, é verdade.
SURPRESAS
Mas a História reservava surpresas. A fase de grande crescimento da economia mundial iniciada em 1945 produziu desequilíbrios diversos como a inflação do dólar e a aguda dependência dos países desenvolvidos com relação ao petróleo do Oriente Médio. Uma combinação de fatores habilmente explorada, em 1973, pelos países exportadores que, em poucos meses, quadruplicaram o preço de venda do produto, precipitando a recessão mundial. (Da qual o Brasil conseguiu escapar, por mais seis anos, ao custo de uma enorme dívida externa.)
Quando o vigoroso crescimento mundial com inflação baixa (embora crescente) foi sucedido pela estagnação com forte subida de preços – uma estagnação que durou anos –, o mundo e o Brasil e o Nordeste e Pernambuco perderam a fé no desenvolvimento e na industrialização como remédios para a criação de riquezas e a superação da miséria. Nas duas décadas perdidas (1980-2000) que se seguiram ao segundo choque do petróleo, a economia brasileira alternou uns poucos anos de crescimento baixo com muitos anos de crescimento nenhum. O mesmo ocorreu no Nordeste e em Pernambuco.
Neste Estado, embora o ideal industrializante de Suape nunca tenha sido, oficialmente, esquecido, as esperanças de criação de riquezas e de superação da miséria se voltaram, cada vez mais, para setores econômicos como o turismo – ou os serviços, em geral – e a fruticultura irrigada. E, ainda mais marcantemente, para programas diretos de transferência de renda, como o Bolsa Família. Enquanto isso, a indústria pernambucana mal conseguia se manter viva.
E ENTÃO, DE REPENTE...
Não mais que de repente, tudo isso mudou. Os investimentos produtivos que, na percepção profissional e popular, estão trazendo novo fôlego e novas esperanças à economia pernambucana são todos industriais (e localizados em Suape): a refinaria de petróleo, o estaleiro naval, a fábrica de resinas, o pólo petroquímico, a montadora de automóveis, a siderúrgica. Ou seja, em perspectiva histórica, a agricultura irrigada tornou-se realidade e os serviços deram sua contribuição ao desenvolvimento de Pernambuco. Mas só a indústria – a velha heroína dos antigos enredos – foi capaz de sacudir o estado. Antes e agora.
É o retorno de Jedi.

(Publicado na revista Nordeste Econômico, Ano 4, n. 20, janeiro de 2011)

Ser ou não Sergipe


Gustavo Maia Gomes
  
Melhor que o desenvolvimento prometido pelo governo 
sergipano, só mesmo o Céu. Talvez, nem isso.


Realizado em outubro [de 2008], em Aracaju, o VI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos propiciou uma ocasião para que o governo do Estado divulgasse ao mundo a sua concepção de desenvolvimento. Isso foi feito, até certo ponto. Infelizmente, a maior lição ficou escondida em documento oficial recém-saído da gráfica, mostrado ao público de longe. Uma cópia, contudo, passou por vários olhos pouco propensos a guardar segredos, como os deste colunista, que após enfrentar um dilema – “Ser ou não Ser(gipe)?” – resolveu contar tudo.
O plano Desenvolver-SE começa informando sobre um tempo antigo quando “se acreditava que, para desenvolver uma nação, bastava aumentar sua riqueza”. Demorou pouco e “se percebeu que isso era um engano [pois], na maioria dos países, nem todas as pessoas recebiam os benefícios e a maioria da população continuava pobre”. E assim, um dia, alguém concluiu que, para se ter desenvolvimento, não bastava aumentar a riqueza, “era necessário, também, distribuí-la igualmente entre as pessoas”. Nada menos do que distribuir a riqueza igualmente entre as pessoas.
Essa nova idéia “durou bastante tempo, quase todo o Século XX”, mas terminou sendo superada, pois “a busca indiscriminada (...) por mais riqueza causou graves problemas ao ambiente”. Consequentemente, “o conceito precisou incorporar a idéia do uso responsável dos recursos naturais disponíveis. Desse modo, o desenvolvimento de uma nação [passou a estar] relacionado ao crescimento da riqueza, [sim, porém] distribuída igualmente entre todos os cidadãos, [e] sem destruição do meio ambiente”.
Ainda não era o bastante, garante o plano. Portanto, para chegar mais perto da perfeição, “o conceito foi ampliado pela idéia de que o desenvolvimento deve considerar outras dimensões importantes da vida humana, tais como a preservação dos valores culturais, os direitos de participação política e a abolição dos preconceitos religiosos, étnicos e de classes, de modo a garantir a todos a liberdade para buscar a realização dos projetos individuais e coletivos”. Este, naturalmente, é o ideal perseguido pelo governo sergipano.
Para resumir, uma coisa é certa: sempre que houver um encontro em Aracaju, iremos conhecer os mais recentes pensamentos sobre tão momentoso assunto. Quais serão eles, ainda não sabemos, se bem que um artigo de Rod Smith no periódico cristão American Chronicle (http://www.americanchronicle.com/articles/39512) nos dá uma pista. Ali está dito que a Bíblia faz uma descrição do Paraíso nestes termos: “Deus enxugará todas as lágrimas. Não haverá mais mortes, sofrimento, dor, arrependimento, choro.” – “Noite?”, pergunta Smith. – “Nunca jamais”, responde o próprio, como se cantasse um bolero. E continua: “a luz de Deus se espalhará pelo Céu, uma cidade construída em ouro puro e cujas fundações serão adornadas com pedras preciosas; cada um dos seus doze portões será feito de pérolas; um rio de água da vida fluirá do trono de Deus até o do Cordeiro e as árvores produzirão frutos todos os meses do ano”.
Projetando a evolução descrita no Desenvolver-SE, este bem poderia ser o passo seguinte na concepção de desenvolvimento. Mas só até o dia em que algum economista resolvesse interpelar o todo-poderoso com as perguntas de um pensador politicamente engajado: “essa luz de Deus está distribuída de forma igual para todos?”; “tanta extração de ouro e pedras preciosas não causa danos irreparáveis ao ambiente celestial?”; “como estão as matas ciliares do rio da vida?”; “nenhuma palavra sobre os direitos dos índios preservarem sua cultura, ao mesmo tempo em que se comunicam por meio de telefones celulares?”; “árvores que dão frutos o ano todo têm de ser irrigadas – pela dimensão da coisa, elas devem pertencer ao agronegócio concentrador de renda – isso é desenvolvimento?”. Problemas e mais problemas.
Sejamos, portanto, cautelosos. Não é prudente ir além do Desenvolver-SE. Talvez devêssemos até esquecer os outros ingredientes do desenvolvimento e nos contentar em ver a riqueza distribuída igualmente para todos: preguiçosos e esforçados, gênios e idiotas, bandidos e cidadãos honestos, gente bondosa e gente odienta, mulheres e homens, paulistas e sergipanos. Até o dia que, entediado com tanta igualdade, alguém resolvesse iniciar uma epidemia de suicídios.
Não em Aracaju, por favor.


(Publicado na revista Nordeste Econômico, Ano 2, n. 11, novembro de 2008)

A economia da ignorância bem remunerada


Gustavo Maia Gomes

Um modelo e ator famoso disse que ganhava, por desfile: “entre 10 e 15 mil reais – mais ou menos nessa faixa etária”.


Ignorância nem é a palavra exata. Razões de etiqueta, contudo, recomendaram seu emprego. Feita a ressalva, vamos ao ponto: numa era em que a “economia baseada no conhecimento”, supostamente, tornou-se a única avenida para a criação de riqueza, como se explica que muitas pessoas com as mais altas remunerações sejam tão ignorantes?
Está fora de propósito citar nomes, mas qualquer um que elabore uma lista dos mais notórios apresentadores de televisão, artistas de cinema, corredores de Fórmula Um e jogadores de futebol, há de saber do que estou falando. Dou algumas ilustrações, só para fixar o ponto:
1) Houve o seguinte diálogo entre dois apresentadores de televisão: – Maria, você conhece a piada dos 500 quilos? – Não, Jorge, conta – Não posso, é muito pesada. – Ah, você vai me deixar curiosa.
2) Um jogador de futebol foi instado por um repórter de rádio a explicar o lance de que resultou o gol da vitória de seu time. Sua declaração: “eu fiz que fui, não fui, e acabei fundo”.
3) Conhecido modelo e ator revelou ganhar, por desfile: “entre 10 e 15 mil reais – mais ou menos nessa faixa etária”. Outro, perguntado sobre seu prato predileto respondeu: “prato de loiça”.
Certamente, modelos, apresentadores, jogadores não precisam ser intelectuais. Apenas não poderiam (com desculpas pela palavra) ser tão burros, se a “economia do conhecimento” tivesse alguma relevância nesses setores. Mas o pior é que, com freqüência, aqueles homens e mulheres não são grandes talentos sequer na própria profissão. Apesar disso, faturam milhões.
Nunca houve um jogador como Pelé, mas deve haver, hoje, no mundo, uns 200 futebolistas em atividade ganhando muito mais do que o ídolo do Santos jamais sonhou. Isso também é verdade para automobilistas como Fangio; atores como Valentino; cantores como Orlando Silva, de talentos incomparáveis aos de seus pares contemporâneos – entre os quais se inclui aquele senhor da faixa etária.
Voltando à pergunta, um pouco modificada: como se explica que as pessoas com a maior remuneração no mundo atual sejam, frequentemente, completos incomperantes? – entendendo-se o termo como uma mistura de incompetência com “ignorância”.
Proponho a seguinte resposta: o mundo moderno é marcado pela comunicação em massa. Calcula-se que as transmissões da Copa do Mundo e das Olimpíadas sejam acompanhadas por quatro bilhões de pessoas; um desfile de alta costura pode ser visto simultaneamente em todos os países; as corridas de Fórmula Um são mostradas em escala planetária...
Inevitavelmente, a exibição de uma pessoa nestes contextos atrativos confere à sua imagem um imenso poder comercial. A partir deste ponto, o valor de mercado do indivíduo deixa de ter uma relação estreita com sua atividade primordial. A profissão, na verdade, torna-se um detalhe: os desfiles importam pouco, mas se as empresas cortarem as verbas de propaganda a modelo estará arruinada.
Em resumo: na sociedade contemporânea, a remuneração do ator, modelo, jogador, etc, passou a ser, em larga medida, independente de sua competência específica, menos ainda, de seu “conhecimento”. Será melhor se o corredor ganhar algumas corridas; se a modelo não tiver bunda; se o ator exibir uma falsa masculinidade. Mas nada disso, a rigor, é indispensável. A inteligência, por seu turno, constitui um ornamento inteiramente supérfluo.
Muitas pessoas alcançam posições de fama e alta remuneração por pura sorte – o estar no lugar certo, na hora certa. Depois que chegam ao topo, contudo, têm grande chance de ali continuar, pois custa caro aos seus patrocinadores produzir um substituto igualmente conhecido. Elas se tornam produtos diferenciados e se beneficiam disso.
Não importa que, ao lado dos 100 ou 200 futebolistas de maior fama, exista uma multidão de jogadores muito mais talentosos tentando ser reconhecidos. Uns poucos conseguirão; a maioria terá de se contentar em ver os pernas-de-pau milionários pensarem que são gênios, enquanto falam como debilóides.
Para esses, o que vale, mesmo, é a “economia baseada no desconhecimento”.

(Publicado na revista Nordeste Econômico, Ano 4, n. 18, janeiro de 2010)

terça-feira, 11 de outubro de 2011

“Imagine na Copa”


Gustavo Maia Gomes





Faltando ainda três anos para o acontecimento, já estou farto da Copa do Mundo. Quero que ela vá para outro mundo, se não puder ir para o inferno. Aborrece-me ouvir a mesma ladainha nas filas de aeroporto (“imagine na Copa”), nos hotéis lotados (“imagine na Copa”), nos engarrafamentos de trânsito (“imagine na Copa”), nas esperas em restaurantes (“imagine na Copa”). Não os frequento, mas o bordão também deve estar sendo repetido nas igrejas evangélicas e nos prostíbulos: “imagine na Copa”, prega o pastor aos seus fiéis; “imagine na Copa”, diz a puta aos seus clientes.
Um evento idiota governa o país. Por conta dele, entre um escândalo financeiro e outro, os dirigentes da Fifa vêm ao Brasil distribuir reprimendas à presidente da República, governadores, prefeitos, deputados, inspetores de quarteirão e guardas-noturnos. “Isso aqui está errado”, “aquilo ali, nem pensar”, “a cidade tal vai ter jogos”, “a cidade qual vai ter nada”, “os estádios estão atrasados”, “desse jeito, ninguém vai ter acessibilidade”, “se licitar demora, construam sem licitação”. Eles dão as ordens e são obedecidos. A Fifa substituiu o FMI.
Existe, naturalmente, o mote de que a Copa será um grande negócio. Mas essa tese é falsa. Numa recente dissertação de mestrado (“Considerações sobre o impacto econômico da Copa do Mundo de 2010”, Universidade Rhodes), Mathew Menezes  demonstrou que os benefícios líquidos dos megaeventos anteriores não eram uma consequência necessária da hospedagem. Além disso, as estimativas do impacto produzidas antes do evento são sempre mais positivas que as feitas depois.
Menezes concluiu de forma conservadora: “não haverá ganhos econômicos significativos no curto prazo.(...) Espera-se que o impacto total será uma função dos benefícios de longo prazo, que devem ultrapassar os custos de curto-prazo (...). É, no entanto, improvável que a Copa do mundo estimule a taxa de crescimento econômico do país a alcançar níveis acima dos que irão ocorrer mesmo que o evento não seja realizado na África do Sul” (Disponível em inglês no site http://eprints.ru.ac.za/1843/).
Deve ser notado que o principal benefício alegado por Menezes seria a melhoria da imagem do país-sede, “já que isso poderá ter efeitos de longo prazo sobre o turismo e a entrada de capitais externos”. Compreende-se que a África do Sul, em 2010, ainda precisasse melhorar sua imagem internacional, para ter mais turistas e capital. Mas o mesmo dificilmente valerá para o Brasil, em 2014. Ou seja, ao invés de nutrir esse mito da Copa como um grande negócio, os brasileiros deveriam mandar a Fifa para o mesmo lugar aonde os torcedores mandam os juízes, nas partidas desse joguinho no qual todos os atletas fazem propaganda e nenhum faz gol. E os governantes deveriam levar reprimendas não de esportistas com reputação duvidosa, porém de seus próprios eleitores.
Não é por causa da Copa de 2014 que o Brasil precisa ter aeroportos eficientes, hotéis confortáveis, estradas e avenidas adequadas, restaurantes higiênicos, igrejas sem charlatães e bordeis com ISO 9000. É por causa da existência, nos limites de seu território, de uma população que trabalha, produz e paga impostos. Não em 2014, mas desde sempre – e depois, também.
Outro dia, um jornal de cidade pequena abreviou “Copa do Mundo” para “C. do Mundo”. Sem querer, deu uma ótima sugestão de onde realizar tão esperado evento.


(Artigo publicado no Jornal do Commercio, Recife, 11/10/2011, pág. 10)

Turismo reduz desigualdades regionais

Gustavo Maia Gomes




Em um artigo ainda inédito em papel, mas já disponível na internet, os professores Eduardo Haddad, Alexandre Porsse e Wilson Rabahy, da Universidade de São Paulo, calcularam os impactos regionais do turismo doméstico no Brasil. (Veja a referência completa do artigo no final deste texto.)

É um trabalho metodologicamente sofisticado mas que, em essência, pretende responder a uma questão simples: considerando os gastos dos brasileiros nas suas viagens de turismo pelo país, que regiões recebem (liquidamente) recursos de outras?. Ou, em termos ainda mais simples, embora imprecisos: os turistas vindos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais gastam mais (ou menos?) dinheiro aqui do que os nordestinos em visita ao Sudeste?

Com a palavra os pesquisadores da USP: “quase 20% das viagens domésticas para finalidades do turismo tiveram estados do Nordeste como destinos finais” (Em 2007, dados mais recentes). Os visitantes gastaram nesta região quase um terço do que todos os turistas dispenderam em todo o Brasil, percentagem muito superior à participação do Nordeste no produto interno bruto brasileiro, próxima a 13%. Prosseguem eles: “a região principal da origem dos viajantes foi o Sudeste, cujos residentes foram responsáveis por 54% das despesas totais dos turistas no país”.

Embora esses dados simples já evidenciem que o turismo doméstico se constitui um importante canal de transferências da renda das regiões mais ricas para as mais pobres, o trabalho de Haddad e seus colaboradores não para aí. Utilizando técnicas de insumo-produto (uma ferramenta conhecida dos economistas), eles tentam calcular os efeitos cruzados destes fluxos regionais. Concluem que “a interação entre despesas turísticas domésticas e a interdependência interregional contribui para reduzir a desigualdade regional no Brasil”.

Boa notícia.



Referência: Eduardo Haddad, Alexandre Porsse e Wilson Rabahy, “Domestic tourism and regional inequality in Brazil”, Universidade de São Paulo, agosto 2011. (Aceito para publicação na revista Tourism Economics, n. 2013).

Publicado também em www.blogdatametrica.com.br

Pastores e pastados

Gustavo Maia Gomes




Baiana de nascimento, irmã Dulce caminha para se tornar a primeira santa oficial nordestina, com atestados de milagre e tudo. (Se ela, cuja vida foi um exemplo de dedicação ao próximo, gostaria de protagonizar esse tipo de farsa, é outra história.) A presidente Dilma; seu principal adversário na última eleição, José Serra; o senador José Sarney e o governador da Bahia, Jacques Wagner, compareceram à missa de beatificação da irmã, domingo (22/05/2011), em Salvador. Eles e mais 70 mil pessoas. Uma vez e meia o público que, no mesmo dia, assistiu o show de Paul MacCartney no Rio de Janeiro.

Foi um evento religioso, mas também, como se vê, político e, em última instância, econômico, pois “a marca Irmã Dulce rende, e muito (...). Quase 60 instituições públicas e privadas do Brasil fizeram registro com o nome da religiosa.” (Jorge Gauthier, redação Correio, 19/5/2011)

Na verdade, o Nordeste já tinha, pelo menos, um santo de fato: padre Cícero. Talvez dois, contando com Frei Damião de Bozzano. Não importa quantos milagres sejam atribuídos à irmã Dulce, ainda demorará até que a santa baiana atraia multidões semelhantes às que, a cada ano, se dirigem a Juazeiro do Norte, terra do padre Cícero:  500 mil fiéis, ou seja, duas vezes a população permanente do município. Romeiros individualmente pobres, mas coletivamente ricos, que deram o impulso essencial para transformar a antiga Joaseiro em uma cidade moderna, com universidades, um movimentado aeroporto, avenidas espaçosas e bem iluminadas, imponentes prédios de apartamentos, lojas luxuosas – e a onipresença de Padre Cícero em todas as esquinas.

Um símbolo com tamanho valor econômico não se joga fora assim, a troco de nada, e a igreja Católica, que (cruz credo!) chegou a excomungá-lo, já está tratando de reabilitar o padre, preparando o terreno para torná-lo, um dia, oficialmente, santo. Quem duvidar, deve ler o excelente livro de Lira Neto (Padre Cícero, São Paulo, Companhia das Letras, 2009).

Mas a bola da vez é a irmã Dulce. Com sua beatificação, os católicos saem da defensiva e se lançam ao contra-ataque. Para enfrentar a competição das igrejas evangélicas, ter santos locais ajuda bastante. Beato é pouco: precisa-se de santos. (Na verdade, para um homem, esse termo “beato” soa até meio afrescalhado.) Está em jogo dinheiro, muito dinheiro. Não há mistério nem novidade nisso. Tanto o imenso patrimônio da igreja Católica quanto o sucesso comercial das igrejas evangélicas – brasileiras, multinacionais – demonstram que a religião pode dar grandes lucros. Mais do que grandes lucros: ser um “negócio da China” e – por que não? – de Roma, de Salvador, do Recife...

Nessa última cidade há, inclusive, um pólo religioso, na avenida Cruz Cabugá. Um verdadeiro cluster. São tantas igrejas, uma junto da outra, que alguém (não um pastor, mas um pastado) corre o risco de ficar pobre só em passar perto dali.

Publicado também em www.blogdatametrica.com.br