Um conto de Gustavo Maia Gomes

Domador de animais ferozes há
trinta e cinco anos, Antonio Severiano ficou sabendo que ia ser mandado embora.
E que os seus leões seriam abandonados próximos a um culto religioso, onde
havia carne macia em abundância. Nada disso tinha a ver com a globalização.
Apenas, o dono do circo perdera a paciência. Alimentar as feras custava caro e
ninguém mais queria saber de leões e domadores.
Antonio ficou devastado, porém
não surpreso. Sabia que o público se desinteressara de seu espetáculo. Tinha reagido,
inventando novos quadros. Uma, duas, cinco vezes, sem nenhum resultado; seis,
sete, dez outras, e nada. Em desespero, decidira superar seus limites: desde há
um mês, enquanto os tambores rufavam, ele punha sua cabeça dentro da boca de
Espartaco, o maior dos oito leões. Era uma temeridade, mas, fazer o quê? Mesmo
assim, a platéia se manteve indiferente. O patrão percebeu e tomou sua decisão.
Antonio viu o mundo desmoronar. Vivia daquilo. Pediu clemência.
Não adiantou. E, assim, neste
seu último dia no emprego, ele está ali, enfrentando as feras. O número chega
ao clímax: sob o rufar dos tambores, Antonio Severiano põe a cabeça na boca de Espartaco.
Ato contínuo, num gesto súbito e inapelável, o leão trinca os dentes,
decapitando o domador.
No instante seguinte, o Antonio
sem cabeça se põe a dar voltas frenéticas pelo picadeiro, jorrando sangue em
grandes golfadas. Espartaco abre a boca e cospe o pedaço de gente que quase
engolira. De uma pessoa, o domador se transforma em duas: o tronco com as pernas
e os braços, que sai correndo em círculos feito louco, tingindo o circo de
vermelho; e a cabeça, que fica plantada no chão, os olhos esbugalhados
observando a cena.
E então o público entende que
aquilo tudo faz parte do show e começa a aplaudir vibrantemente. Gritos de viva
ecoam sob a lona, em um delírio geral. Há uma atmosfera de entusiasmo. As crianças
estão empolgadas, pois são crianças; o vendedor de pipocas joga os saquinhos
para o ar, em puro deslumbramento; o dono do circo chora, de incontida alegria;
o domador decapitado gira a esmo pelo palco, como se fosse de felicidade.
Mais uns poucos segundos sob intensos aplausos
e o Antonio sem cabeça dá a sua última volta, antes de tombar para sempre, branco
como um giz, em estertores. A platéia se põe de pé, em uma ovação jamais vista.
Nos bastidores, trapezistas, macacos, palhaços e mágicos se cumprimentam
efusivamente. Trepados nas arquibancadas, meninos e meninas devoram as pipocas
caídas do céu, muitas delas pintadas de vermelho. Eufórico, o dono do circo entra
na jaula – com um pontapé, afasta do caminho a cabeça do domador – e abraça
Espartaco, de cuja boca ainda escorre um resto de sangue humano.
No chão, agora toda melada de cocô, mas com os
olhos bem abertos e um sorriso vitorioso nos lábios, a cabeça de Antonio Severiano
somente tem tempo para os dois momentos de sua última reflexão:
– Por que não pensei nisso antes? Por que não
pensei nisso antes?
Publicado na revista Inteligência (Rio de Janeiro) n. 35, Dez 2006, como seção n. 2 de "Dez Contos com Descontos".
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