Gustavo Maia Gomes
As “Crônicas do Mundo”
tratam de eventos e processos políticos e econômicos internacionais nos últimos
60 anos. Foram motivadas pela leitura de quatro livros extraordinários: Era dos Extremos, de Hobsbawm; Pós-Guerra, de
Judt; A revolução de 1989, de
Sebestyen; e Ascensão e Queda do Comunismo, de Brown. (Veja as referências completas ao final deste texto.)
|
 |
A ascensão da China (aqui mostrada em relação aos Estados Unidos) é o fato econômico mais importante dos últimos 30 anos. Continuará a ser, nas próximas décadas. |
|
IGUAIS, MAS
DIFERENTES
Sempre
foi verdade que qualquer acontecimento na China interessaria ao mundo, devido
ao tamanho de sua população. Mas era uma montanha de pobres, produzindo pouco e
consumindo menos ainda: à importância demográfica do país não correspondia
relevância econômica comparável. Em larga medida, portanto, a China podia ser
ignorada pelo cidadão comum do Ocidente.
No
início do século XXI, entretanto, a situação é outra. Mesmo sem jamais ter tido
um presidente como certo conhecido nosso – ou talvez por isso –, desde 1980, a economia
chinesa vem crescendo a taxas nunca antes registradas, com alto grau de
abertura para o comércio e os movimentos internacionais de capital. Hoje, se a
China boceja, o mundo dorme; se dá uma topada, o mundo salta pra frente.
Politicamente,
a História da China comunista se divide em dois períodos, com uma breve
transição (1976-78) entre eles. No primeiro, de 1949 até a morte de Mao Zedong
(1976), o governo fazia três coisas: assassinar os adversários, promover a
doutrinação ideológica da população, e implementar políticas econômicas desastrosas.
No segundo, que começa com as reformas de 1978 e vai até o presente, o governo
faz três coisas: assassinar os adversários, promover a doutrinação ideológica
da população, e implementar políticas econômicas sensatas.
A
diferença é só um adjetivo. Mas, que adjetivo! Que diferença!
FUZIS, IDEOLOGIA
E POLÍTICA ECONÔMICA (1949-76)
Os
episódios mais importantes de matanças em larga escala – por fome – ocorreram
na China comunista como resultado de políticas econômicas equivocadas. Mas o
assassinato político sempre se constituiu em instrumento usado para preservar o
poder. Esta foi a primeira
característica do regime de Mao Zedong:
O
número de execuções de cidadãos chineses pelos Comunistas do país aumentou
bastante depois de a Guerra da Coreia começar. As estimativas do número de
pessoas executadas na China entre 1949 e 1953 variam muito – de 800 mil a cinco
milhões. (Brown, págs. 233-4)
Naturalmente,
havia o atacado e o varejo. A citação acima dá um exemplo das execuções em
massa; o assassinato dos adversários em doses menores, mas continuadas, nunca
deixou de existir.
A
segunda característica foi o emprego
intensivo da doutrinação ideológica. A esse respeito, tenho uma experiência
pessoal a relatar. Antes da Internet, eu e muita gente ouvíamos emissoras de
rádio estrangeiras pelas ondas curtas. Lembro-me de, no final da década de
1960, ouvir o “noticiário” na Rádio Pequim. Era, mais ou menos, assim:
–
O presidente Mao foi homenageado por todos os camponeses de todo o país, pelo
seu patriotismo, sabedoria e bondade.
–
O presidente Mao recebeu estudantes que recitaram os extraordinários
ensinamentos contidos no Livro Vermelho dos Pensamentos de Mao.
–
O presidente Mao foi agraciado por ele mesmo com a medalha da Grã-Extra Imensíssima
Benemerência em reconhecimento à sua grã-extra imensíssima benemerência.
Seguiam-se
mais duas ou três notícias com o mesmo formato. Até que o locutor interrompia a
sequência, para anunciar uma coisa ainda mais importante:
–
Agora vamos dar uma pausa no noticiário para ouvir o povo reunido na praça
cantando “Mao é o Grande Timoneiro”.
(E
o povo reunido na praça cantava “Mao é o Grande Timoneiro” até porque, se não
cantasse...) Depois da pausa, voltavam as “notícias”.
Essa
era a cantiga que eu ouvia no Recife, a 15 mil quilômetros de Beijing; para os
chineses, o governo tinha algo ainda pior. Por exemplo:
As
pressões ideológicas sobre raciocínios incorretos – “reforma do pensamento” –
também começaram a aumentar em 1950. (...) Foram organizadas apresentações públicas
dedicadas às atividades contrarrevolucionárias, nas quais os acusados desses
crimes explicavam a natureza da ameaça contrarrevolucionária, manifestavam
arrependimento e diziam o quanto estavam gratos pelo fato de as autoridades
apontarem os erros em seus caminhos. (Brown, pág. 234)
Não
parou ali: durante a Revolução Cultural (1966-76), a perseguição ideológica aos
que não se enquadravam inteiramente nos preceitos de Mao Zedong atingiu níveis difíceis
de imaginar.
Foram
as escolas e as universidades que sofreram os piores efeitos da Revolução
Cultural. Milhões de professores foram ridicularizados publicamente e as
universidades ficaram fechadas vários anos, a partir de 1966, de modo que os
estudantes podiam participar do processo revolucionário como Guardas Vermelhos.
(Brown, pág. 387)
O
“processo revolucionário” nada mais era do que o exercício diário do obscurantismo
fanático. Já em agosto de 1966, Mao Zedong passava em revista desfiles
gigantescos de guardas vermelhos que acenavam seus exemplares do pequeno livro vermelho
de citações. Um pouco depois disso, a irracionalidade atingiria seu clímax.
Para citar outro livro excepcional (de Jonathan D. Spence, veja as referências):
Milhões
de jovens foram estimulados a demolir os velhos prédios, templos e objetos de
arte de suas cidades e vilas e atacar professores, diretores de escolas, dirigentes
partidários e pais. (...) Milhares de intelectuais foram espancados até morrer.
Incontáveis outros cometeram suicídio. (Spence, pág. 570)
A
terceira característica do regime
maoísta foi a insistência em políticas econômicas desastrosas. O exemplo mais
importante foi o chamado Grande Passo para Frente (1958-61), uma tentativa de
desenvolver a indústria e a agricultura baseada, fundamentalmente, na produção
em pequena escala, na divisão do país em fazendas estatais, e no recurso ao
fervor revolucionário como motivação para a atividade econômica das pessoas. Funcionou
tudo ao contrário: enquanto os chineses eram obrigados a produzir ferro em seus
quintais (com baixíssima produtividade), a coletivização fez a agricultura entrar
em colapso.
O
resultado foi uma fome em escala gigantesca, que ceifou 20 milhões de vidas ou
mais entre 1959 e 1962. Muitos outros morreram pouco depois dos efeitos do
Grande Salto – sobretudo crianças, enfraquecidas por anos de desnutrição
crescente. (...) O Grande Salto Adiante, lançado em nome do fortalecimento da
nação através do apelo a todas as energias do povo, tinha dado meia volta e
devorado sua prole. (Spence, pág. 550)
E
o Grande Passo para Frente (ou Grande Salto Adiante, como prefere o tradutor de
Spence) foi apenas das muitas políticas econômicas malsinadas impostas aos
chineses no tempo de Mao Zedong.
FUZIS, IDEOLOGIA
E POLÍTICA ECONÔMICA (1978-2013)
A
partir dos últimos anos 1970, as reformas econômicas promovidas, sobretudo, por
Deng Xiaoping (que havia caído em desgraça durante a Revolução Cultural),
subverteram os dogmas maoístas e provocaram tamanho crescimento que um
observador menos atento poderia pensar que havia uma China antes e que há outra
depois da morte de Mao Zedong.
Economicamente,
isso é verdade; politicamente, não é.
Considere-se,
por exemplo, a primeira característica,
a repressão à oposição. Comparado ao que houve até 1976, o número de
assassinatos políticos na China caiu drasticamente, mas os acontecimentos
emblemáticos da Praça Tiananmen (1989) não devem ser esquecidos:
Na
noite de 3-4 de junho [de 1989], tanques e veículos blindados avançaram [sobre
os estudantes e o povo reunidos na Praça Tiananmen e arredores]. Alguns soldados dispararam sobre as
multidões, outros diretamente contra elas. As estimativas do número total de
mortes causadas pela repressão militar variam entre várias centenas e vários
milhares. Outros milhares de pessoas foram presas. (Brown, pág. 521)
A
doutrinação ideológica, ou segunda
característica, também se retraiu um pouco, mas continuou a existir. De
acordo com depoimento prestado ao Congresso dos Estados Unidos, em 2007:
Como
parte das instituições políticas chinesas, o controle da informação e das
mentes tem sido feito por mais de meio século desde que o Partido Comunista
Chinês (PCC) tomou o poder em 1949. (...) O quartel general do controle da
informação e das mentes é o Departamento Central de Propaganda do PCC. (...) A
reforma econômica e a “política de abertura” iniciadas em 1979 nunca abalaram
ou modificaram os mecanismos de controle. (Qinglian
He)
Na
política e no controle do pensamento, portanto, o regime economicamente
reformista não fez reforma alguma.
Quanto
à terceira característica,
entretanto, a história é outra. Na economia e áreas correlatas, a mudança foi impressionante.
Enterrado o cadáver de Mao e dominados seus seguidores mais fanáticos, uma nova
mentalidade passou a dominar.
Na
educação, ao invés de exigir que professores e alunos recitassem ininterruptamente
os Pensamentos do Grande Timoneiro, em exercícios de auto-imbecilização, a
prioridade foi dada ao ensino de matemática e ciências. Já em 1988, anunciou-se
a criação de 88 universidades (na época da Revolução Cultural elas haviam sido
fechadas) e a admissão de estudantes passou a ser feita por rigorosos exames de
conteúdo técnico. Além disso,
instruíram-se
as escolas para identificar mais cedo as crianças bem-dotadas e dar-lhes
instrução avançada. Os cientistas [que, durante a
Revolução Cultural] haviam sido mandados
para o campo [para fins de “reeducação” política] deveriam ser chamados de volta e designados novamente para cargos
profissionais. (Spence, pág. 612]
Na
agricultura, onde o modelo maoísta impunha cotas de produção às fazendas
coletivas, que eram obrigadas a vender a colheita integralmente ao Estado, a primeira
providência foi aumentar os preços de compra em 20%, para a produção dentro da
cota, e em 50%, para a produção além da cota. Foi permitido que os camponeses
realizassem outros trabalhos, como criar porcos, ou que se dedicassem a
atividades não agrícolas. Outras medidas liberalizantes foram sendo,
gradualmente, tomadas. De acordo com Brown,
a
coletivização foi essencialmente revertida no início dos anos 1980. (...) Foi
possível promover uma melhoria extraordinária na produtividade agrícola da
China simplesmente dando liberdade aos agricultores camponeses para usar sua
própria iniciativa. (Brown, pág. 515)
Finalmente,
na indústria, a reforma iniciou-se com a criação de quatro zonas econômicas
especiais desenhadas para atrair o capital estrangeiro, no primeiro momento,
pertencente a chineses que haviam deixado o país desde a implantação do regime
comunista. Estrategicamente localizadas, duas delas, próximas a Taiwan (durante
décadas, a mini-China que havia dado certo) e as outras duas nas cercanias de Hong
Kong e de Macau, as zonas econômicas especiais tiveram sucesso extraordinário,
o que levou à ampliação da experiência.
Mais
tarde, empresas japonesas, americanas, européias e multinacionais foram
incentivadas a participar da expansão da economia chinesa rapidamente
globalizante. Um período de rápido crescimento teve início, embora as
concessões às forças de mercado tenham trazido novos problemas, incluindo
inflação e aumento do desemprego. (Brown, pág. 516)
Bem,
diriam os chineses: melhor ter alguma inflação e desemprego – que podem ser
controlados pela ação corretiva do Estado – mas também ter pão, manteiga,
geladeira, automóvel e acesso a viagens internacionais do que não ter pão, nem
manteiga, nem geladeira, nem automóvel e nem acesso a viagens internacionais e
ainda ser obrigado a recitar três vezes ao dia os pensamentos do Grande
Timoneiro.
A SEGUNDA CHINA
De
modo que, na China, a única mudança real aconteceu na economia. Seria difícil,
entretanto, subestimar a sua importância: há três décadas, o produto total vem
crescendo próximo a 10% anuais; apenas entre 1981 e 2008, o número de pobres se
reduziu em 600 milhões; em 32 anos (1980-2012), a participação do produto
interno bruto chinês no PIB total do mundo passou de 2% para 15%, em números
redondos (enquanto, para estabelecer uma comparação, os números
correspondentes, para os Estados Unidos foram 25% e 18%). Para o bem ou para o
mal, a China será a grande potência do século XXI.
Essencialmente,
o que Deng Xiaoping e seus associados fizeram, de uma maneira gradual, mas, a
esta altura, completa, foi aposentar o péssimo economista (além de maior
assassino da História, mas esta é outra história) Mao Zedong e chamar Adam
Smith para substituí-lo. Em assuntos econômicos, eles mandaram às favas a
ideologia comunista e instituíram o princípio fundamental do capitalismo: a
sociedade produz mais quando o ambiente legal, ideológico e institucional permite
que os indivíduos sejam movidos e recompensados pela busca do ganho material.
–
“Enriquecer é glorioso”, disse Deng Xioaoping.
E
enriquecendo os chineses estão desde aquele momento. Ao preço de continuar a
viver sob uma severa ditadura.
Até
quando?
REFERÊNCIAS
Eric
Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve
século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Tony
Judt. Pós-Guerra: Uma História da Europa
desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Victor
Sebestyen. Revolution 1989: The Fall of the Soviet Empire. New York: Pantheon, 2009.
Archie
Brown. Ascensão e Queda do Comunismo.
Rio de Janeiro: Record, 2010.
Jonathan
D. Spence, Em Busca da China Moderna:
Quatro Séculos de História. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, págs. 570-71.