Uma rua chamada Olímpio (VII)
Gustavo Maia Gomes
(16/2/2018)
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A rua Olímpio Tavares (Casa Amarela, Recife), em 1965 (Foto Gustavo Maia Gomes) |
“Precisa-se de cozinheira” no número 120 da rua Olímpio Tavares, anunciava o Diário de Pernambuco, em 2 de outubro de 1954. Ah, sim! Aquelas famílias tinham empregadas domésticas. O anúncio completava: “Ordenado, 250 cruzeiros”.
Será interessante avaliar esse número sob três ângulos. (1) Para a
empregada, 250 cruzeiros mensais eram muito ou pouco? (2) Para a patroa (ou seu
marido, tipicamente, o único a ter renda monetária na família), era caro ou
barato contar com uma cozinheira? (3) De 1954 a 2018, melhorou ou piorou a
remuneração real das domésticas da rua Olímpio Tavares?
Vamos por partes.
A
situação em 1955
Na edição de 17/6/1961, o jornal A Noite, do Rio de Janeiro, publicou a reportagem “Em 1930, ovo era
um tostão”. Ali aparece uma preciosa lista dos itens básicos de alimentação com
informações de quanto custava cada um, em anos próximos.
Em 1955, eram os seguintes essas mercadorias e seus preços em
cruzeiros (Cr$), a moeda da época: Cebola (13,30), Charque (41,80), Farinha de
Mandioca (5,00), Feijão (12,10), Manteiga (82,20), Açúcar (8,00), Arroz
(17,60), Banha (28,60), Batata (8,30), Café em Pó (54,20), Carne de Vaca
(36,10), Pão (9,70), Leite (5,10), Ovos (25,80). Os preços se referem a porções de
um quilograma, exceto nos casos do Leite (litro) e Ovos (dúzia).
Somando tudo, essas quantidades de alimentos (suficientes para o
consumo mensal de uma pessoa) custavam Cr$ 347,80. Portanto, alguém que
ganhasse meros Cr$ 250,00 mensais (como a cozinheira da rua Olímpio Tavares,
120) não teria dinheiro nem para comprar a cesta básica. Bem, as empregadas
recebiam grátis todas as refeições do dia. Mesmo assim, seu salário em espécie
mal passava de setenta por cento do valor daquele conjunto de mercadorias
essenciais à sobrevivência.
Dou o desconto de que os preços no Recife poderiam ser menores do
que no Rio de Janeiro. Digamos que fossem 28% mais baixos. Nesse caso, a “cesta
básica” na capital pernambucana poderia ser comprada com os Cr$ 250 recebidos
pela cozinheira como “ordenado”. Era uma miséria, evidentemente, o que ela ganhava.
Hoje
está melhor
Agora, podemos ver tudo isso por outro ângulo, que mostra como,
desde 1955, a situação melhorou muito para as empregadas domésticas da rua Olímpio
Tavares.
Em 2018, no Recife, são os seguintes os preços aproximados (nas
feiras de bairros) das mesmas mercadorias listadas acima, apenas substituindo
cruzeiros por reais e “Banha” por “Óleo de Cozinha”: Cebola (2,50), Charque (19,90),
Farinha de Mandioca (3,00), Feijão (3,20), Manteiga (11,00), Açúcar (2,50),
Arroz (3,00), Óleo de Cozinha (5,00), Batata Inglesa (2,50), Café em Pó (4,50),
Carne de Vaca (25,00), Pão (6,00), Leite (5,10), Ovos (5,00). As quantidades,
de novo, são porções de um quilo, exceto nos casos do Leite e Óleo de Cozinha
(litro) e Ovos (dúzia).
A “cesta básica” de 2018, definida no parágrafo anterior, igual à
de 63 anos atrás, custa R$ 96,00. Ocorre que, nos dias de hoje, uma cozinheira
ou arrumadeira na rua Olímpio Tavares não ganha menos de R$ 1.000,00 – cerca de
um salário mínimo. Seu salário, consequentemente, pode comprar dez vezes (e não
mais apenas uma vez) o consumo essencial mensal de alimentos de uma pessoa.
Sem falar que as domésticas de hoje têm condições gerais de
trabalho muito melhores, com férias, décimo-terceiro salário e aposentadoria
asseguradas. E continuam fazendo, pelo menos, uma refeição por dia grátis, na
casa da patroa. Não foram os governos populistas recentes que outorgaram esses
benefícios, pois o que eles dão com uma mão, a inflação tira com a outra. O
movimento vem de muito antes e responde não apenas a políticas e leis, mas,
sobretudo, às forças de mercado.
Voltando
ao passado
Em 23/12/1953, a mesma casa da rua Olímpio Tavares cuja família
residente queria contratar uma cozinheira pagando Cr$ 250, tinha sido posta
para alugar por Cr$ 2.500. O ordenado da empregada equivalia, portanto, a dez
por cento desse valor. Atualmente, uma casa típica da mesma rua se aluga por R$
3.000. Se a relação de valores observada em 1953-54 ainda prevalecesse, a
cozinheira receberia apenas R$ 300. Menos de um terço do que ela, de fato,
recebe hoje.
Tenho outra forma de calcular o “ordenado real” da cozinheira. O
salário mínimo, em outubro de 1954, era de Cr$ 2.400; a empregada da velha rua
Olímpio Tavares receberia, portanto, um décimo desse valor. Hoje, a sua
sucessora na mesma localidade ganha, por baixo, um salário mínimo. Dez vezes
mais do que a cozinheira de antigamente recebia. E as condições de trabalho que
ela tem, no presente, são incomparavelmente melhores.
Sem pretender transformar a rua onde morei dos três aos 23 anos de
idade no centro do mundo, as comparações feitas acima não deixam de ser
interessantes. E sugestivas de uma grande melhoria nas condições de vida daquelas
trabalhadoras que, ainda hoje, estão entre os menos qualificadas e, portanto,
de menores salários.
Uma descrição completa das “condições de vida” das domésticas
teria de ir muito além do aspecto salarial. No contexto de uma sociedade que,
então muito mais do que hoje, reduzia as mulheres a seres de segunda classe, as
domésticas eram ainda mais desvalorizadas. Tinham de estar em plantão
permanente – o fato de dormirem na casa da patroa tornava isso inevitável – e,
muitas vezes, eram transformadas em objetos sexuais dos filhos dos patrões. Só
lentamente foram recebendo benefícios como férias e descanso remunerado aos
domingos.
A Rua Olímpio Tavares, naqueles anos, não era diferente das demais
ruas do Recife, a esse respeito. Ainda bem que isso mudou.
O
ângulo da patroa
Não tenho informações diretas, nem mesmo aproximadas, sobre os
rendimentos médios ou típicos das famílias que habitavam, em 1954, as casas da
minha rua de criança. Mas, posso fazer uma estimativa não absurda, a partir do
aluguel que elas (a julgar por um anúncio encontrado no Diário de Pernambuco) pagavam, no mesmo ano: Cr$ 2.500. (Isso, num
caso. Os outros, porém, não deviam ser muito diferentes pois, nesse ano, as
casas da Olímpio Tavares ainda eram muito parecidas umas com as outras.)
O passo seguinte seria conhecer que percentagem de sua renda total
que aquelas famílias estavam dispostas a destinar ao pagamento do aluguel da
casa. Faço a hipótese de que fosse algo próximo de 20%. Combinando a informação
sobre o valor do aluguel com esse parâmetro de 20%, uma família típica da rua
chamada Olímpio, em 1954, (e havia pouca discrepância entre elas, se excluirmos
o “rico” comerciante Bento da amostra) devia ganhar cerca de Cr$ 12.500 por mês.
Devo dizer que, se essa mesma metodologia de cálculo for aplicada às
famílias da rua Olímpio Tavares nos dias atuais, o resultado obtido parece
bastante plausível. O aluguel de uma casa típica na rua é, hoje, próximo a R$
3.000. Ou seja, se a disposição de gastar 20% da renda em aluguel for admitida
como uma boa aproximação da realidade, a renda familiar padrão (somando, como
hoje é a regra, os ganhos do homem e da mulher) na rua onde morei até 1970 será
de R$ 15.000. Esse número não está muito longe da realidade contemporânea.
Voltemos a 1954 e à segunda pergunta feita lá no alto: para a
patroa (ou seu marido, ou os dois), era caro ou barato contar com uma
cozinheira? Mais uma vez, era barato. Mesmo que, para a família, a empregada
doméstica custasse duas vezes mais do que o seu salário nominal (pois comia de
graça no emprego, além de consumir água e luz elétrica para fins pessoais),
ainda assim isso significaria Cr$ 500 divididos por Cr$ 12.500, o que
corresponde a quatro por cento dos rendimentos conjuntos de seus empregadores.
Em outras palavras, a família gastava com a cozinheira apenas quatro por cento
de seu rendimento total.
Na atualidade, a renda típica da família moradora à rua Olímpio
Tavares é de R$ 15.000 e o custo total da sua empregada deve exceder R$ 1.250,
considerando um salário nominal de R$ 1.000 acrescido dos encargos sociais e despesas
de alimentação, luz e água. Portanto, a cozinheira custa, hoje, para a família
que a emprega (como proporção do rendimento total desta) oito por cento. Duas
vezes mais do que custava em 1954.
Esses cálculos, embora grosseiros, não deixam de captar a essência
do que aconteceu no Brasil, em Pernambuco, no Recife e na rua Olímpio Tavares,
nos últimos 60 anos: o progressivo aumento da remuneração real das empregadas
domésticas. E a melhoria geral de suas condições de trabalho.
O menino de sete anos – esta era minha idade, em 1954 –, seus pais
e vizinhos estavam escrevendo a História sem terem a menor noção disso.
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