Nada mais a ver com o açúcar[1]
Gustavo Maia Gomes[2]
Com
Mário Pedrosa (1900-81), filho de Pedro da Cunha Pedrosa (1863-1947) e Antônia
Xavier de Andrade (1872-?), desaparecem desse ramo da família os últimos
vestígios da cana, açúcar e engenhos, assim como a mediocridade intelectual e o
conservadorismo político típicos daquele mundo. Antes dele, em 1916, seu pai (senador
da República, 1912-22) já havia saído da Paraíba e se mudado para o Rio de
Janeiro, jamais voltando a residir naquele Estado. O filho completaria o
percurso tornando-se, em grande medida, cidadão do mundo. Aderiu ao comunismo,
foi perseguido, mas se manteve fiel à sua escolha; tornou-se crítico de artes e
ganhou reputação internacional.
“Quando
eu nasci” [em 1936], disse Vera Pedrosa, “meu pai [Mário] estava sendo
procurado pela polícia [política do regime varguista (1930-45)] e vivia na
clandestinidade. (...) Ele foi preso, levou um tiro. [Fugiu] com passaporte
falso até Paris, depois para os Estados Unidos. Só voltou quando amainou a
perseguição à esquerda”. O repórter Silas Marti acrescentou: “Na sala atulhada
de obras de arte de seu apartamento em Ipanema, no Rio, Vera Pedrosa nem parece
estar descrevendo a vida de um dos maiores pensadores das artes visuais na
história do país”.[3]
Origens
Nascido
em Timbaúba, zona canavieira Norte de Pernambuco, num momento em que seu pai
havia retornado transitoriamente à atividade agrícola, Mário Pedrosa morou na
Paraíba (hoje, João Pessoa), Rio de Janeiro e São Paulo, cidades brasileiras,
mas também em Lausanne, Berlim, Paris, Nova York, Santiago do Chile e Havana.
“Quando eu estava com 13 anos”, escreveu Mário Pedrosa, “devido à minha
vagabundagem, meu pai me mandou para a Suíça. Fiquei interno num colégio em
Lausanne. Com a guerra, voltei para o Brasil [em 1916], acompanhado por dois
colegas, numa viagem bastante arriscada”.
Pedro
era, nesse ano, senador da República. Seu filho e mais três jovens “viajaram à
Europa sob a guarda de José Araújo Vieira para serem matriculados no colégio
jesuíta Maison Mellon, em Gand, Bélgica”. Um imprevisto iria, entretanto,
alterar a programação. “Chegando a Portugal, o escritor José Vieira adoeceu e
Mário terminou sendo inscrito no Instituto Quinche, de Lausanne”, de religião
protestante. Quando souberam disso (o que parece ter demorado), os seus pais ultracatólicos
se escandalizaram. O menino deveria mudar de colégio. Aparentemente, antes que
isso acontecesse, ele foi chamado de volta para o Brasil.[4]
De
volta ao Brasil, Mário continuou seus estudos, preparando-se para entrar na
faculdade, o que aconteceu em 1919. Já então, seu mundo não se limitaria a
atividades únicas: “além das aulas do curso de Ciências Jurídicas e Sociais,
frequentava os concertos do Teatro Municipal. Passou a se relacionar com o
poeta Murilo Mendes e com Mary Houston, sua futura esposa [dele, Mário], entre
outros. Conheceu Lívio Barreto Xavier e, interessados pelas questões sociais,
[os dois se] aproximaram do professor Edgardo de Castro Rebelo – positivista
entusiasta do marxismo”.
Foi
esse professor que mais fortemente o influenciou a fazer as escolhas políticas
que estavam por vir. Mas, outras companhias foram importantes nos primórdios de
seu apego às artes. Quase 60 anos depois dessa época, em entrevista ao Jornal do Brasil, Mário Pedrosa diria:
“A música foi a primeira arte pela qual me apaixonei. Cheguei a escrever sobre
ela. Fui amigo de Elsie Houston, cantora famosa [irmã de Mary], Luciano Gallet,
Villa-Lobos, [Camargo] Guarnieri, Mário de Andrade.” Formado em Direito (1923),
nunca exerceu a profissão. “Fui logo trabalhar em jornal, onde fazia um pouco
de tudo. Era um tempo em que não havia muita especialização nas redações.”[5]
Apesar
de não o ter mencionado isso na entrevista ao Jornal do Brasil, Mário Pedrosa conseguiu um emprego de “fiscal
interino do Imposto de Consumo”, em São Paulo, logo após se formar. (Além de
ter sido, dois anos mais tarde, nomeado “agente fiscal” na Paraíba.) O cargo
tinha a vantagem de dar algum dinheiro e pouco trabalho. Certamente, não seria
incompatível com a atividade jornalística. Tanto que, no mesmo ano, ele foi
contratado pelo Diário da Noite,
então dirigido por Oswaldo Chateaubriand, irmão de Assis (o “Rei do Brasil”,
segundo o livro de Fernando Morais). No Diário,
Pedrosa conviveria com Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Lívio Xavier e Geraldo
Ferraz.
Com
a ajuda deste último, Mário Pedrosa iria, muito mais tarde, criar os periódicos
O Homem Livre, em 1933, e Vanguarda Socialista, em 1945,
instrumentos da ação política que tenderia a se tornar cada vez mais importante
na vida do intelectual nascido em Timbaúba. Com efeito, já em 1926, levado pelo
lendário alagoano de Viçosa Otávio Brandão (1896-1980), ele se filiou ao
Partido Comunista do Brasil, cuja criação (em 1922) era muito recente. Retornou
à Paraíba no mesmo ano, a fim de trabalhar como agente fiscal, e ali se tornou
membro do Comitê Regional do PCB. Em 1927, a Lei Aníbal Toledo declarou o
comunismo ilegal e Mário foi instado a voltar para São Paulo, a fim de assumir
a direção da Socorro Vermelho,
organização criada para auxiliar os presos políticos.[6]
Mário, Stálin e Trotsky
Em
novembro de 1927, quando planejou ir a Moscou para estudar na Escola Leninista
Internacional (levava carta de recomendação de Astrojildo Pereira), Mário
Pedrosa já sabia da guerra então sendo travada entre Josef Stálin (1878-1953) e
Leon Trotsky (1879-1940). No meio do caminho, desistiu de continuar viagem.
Ficou em Berlim, estagiando no Partido Comunista da Alemanha (KPD). Essa
desistência, embora seja, geralmente, atribuída a uma misteriosa doença, parece
ter resultado de livre decisão dele. Isso, pelo menos, é o que se pode deduzir
de cartas da época, conforme argumentado em uma publicação de 2009:
O
expurgo de tantas correntes de oposição [na União Soviética] e a expulsão de
inúmeros militantes por divergirem da ‘linha oficial’ levaram Pedrosa a
desistir de viajar a Moscou; logo após a expulsão de Trotsky em 1928. [7]
É
o que disse um misterioso “Manolo”, escrevendo no blog Passa a Palavra. “O que
historiadores comumente creditam a uma doença foi, na verdade, resultado de
reflexão bem feita, como exposto em carta a Lívio Xavier”, conforme o mesmo
autor. Para provar sua tese, “Manolo” transcreve trechos da carta. Num
determinado momento, diz Mário Pedrosa: “Agora, aqui pra nós. Desanimei duma
vez de ir [para Moscou]. O Congresso Bolchevique expulsou Trotsky e a oposição
do partido! Acabou assim a oposição”. Eram os desdobramentos da luta de vida e
morte entre os dois líderes comunistas potenciais sucessores de Lenin. “Não foi
surpresa”, prossegue Mário, “foi como uma desgraça que já se estava esperando.
Os grandes problemas que estavam no ar não foram resolvidos, mas suprimidos.
Que é também uma maneira de resolvê-los, afinal. A hora é dura e a gente tem de
ser lúcido, disciplinado e coerente. Do meu ponto de vista pessoal, uma
desolação”.[8]
Na
Alemanha, entretanto, a luta mais premente seria outra, com Hitler pondo sua
tropa de choque contra os adversários, destacadamente, os comunistas, a fim de
alcançar o poder. O brasileiro participou de conflitos de rua, mas aproveitou o
tempo também para assistir aulas de estética, filosofia e sociologia na
Faculdade de Filosofia da Universidade de Berlim. Simultaneamente, como havia
sido anunciado, Trotsky foi destituído de suas funções de Estado na União
Soviética e deportado para o Casaquistão. Tomando posição a favor do líder
proscrito, Mário Pedrosa rompeu com o stalinismo e se tornou precursor no
Brasil da Oposição de Esquerda, internacionalmente liderada por Trotsky. Foi
somente dois anos depois, no clima de agitação que precedeu a subida de Getúlio
Vargas ao poder, que o líder tenentista Luís Carlos Prestes aderiu ao
comunismo. Os trotskistas tentaram atraí-lo para seu grupo e, com esse intuito,
Mário viajou à Argentina e se encontrou com Prestes. Não teve êxito.[9]
Em janeiro de
1931, [Mário] Pedrosa e [Lívio] Xavier, juntamente com Aristides Lobo, entre
outros, fundaram a Liga Comunista Internacional (LCI) — também chamada de
Oposição Leninista do PCB. [A Liga era] associada à Oposição Internacional de
Esquerda — constituída em Paris em abril de 1930 com a perspectiva de
desenvolver uma oposição interna às direções stalinistas dos partidos
comunistas, procurando convencê-las da justeza da linha política trotskista.[10]
Curiosamente, toda essa atividade revolucionária, missionária a
seu modo, corria paralela a uma enorme carência de respaldo popular. Os
seguidores oficiais de Trotsky, no Brasil, “raramente excederam o número de
cinquenta e nunca passaram de cem”, reconheceria (em 1967) o pernambucano de
Timbaúba, durante entrevista ao historiador norteamericano John W. Foster
Dulles. Outros depoimentos trazem estimativas ainda menores. Por exemplo, num
relato de Luciano Martins, sociólogo que foi, durante um tempo, genro do
ativista político e crítico de artes:
Certa vez perguntei a Mary Houston, sua companheira de sempre,
militante valente, tantas vezes também presa, (...) quantos eram, afinal, nessa
época os trotskistas do Brasil liderados por Mário. Ela custou um pouco, e
afinal respondeu: “Talvez uns 20”. Ao que Mário acrescentou rápido: “Mas
tínhamos um operário”.[11]
Um operário!
Em
9 de julho de 1932, “eclodiu em São Paulo a Revolução Constitucionalista,
movimento que se estendeu até início de outubro do mesmo ano, quando foi
assinado um armistício”. Na entrevista de 1977 ao Jornal do Brasil, Mário Pedrosa revela que ele e Mary Houston,
nessa ocasião, ficaram presos em São Paulo, ele, “na Liberdade”, ela, “no
Paraíso”. (Rua da Liberdade e bairro do Paraíso, esclareço.)
Dois
anos mais tarde, ao mesmo tempo em que começava a escrever e fazer palestras
sobre artes plásticas, Mário iria intensificar sua atividade política. Aliado a
socialistas, anarquistas e comunistas, seu grupo bateu de frente com o
integralismo, um movimento político chefiado por Plínio Salgado (1895-1975)
filiado ideologicamente ao nazi-fascismo. A disputa teve um episódio sangrento
em outubro, quando comício programado pelos integralistas para a Praça da Sé
foi impedido a bala pelos grupos de esquerda. Houve mortos dos dois lados;
Mário Pedrosa, que teria sido um dos organizadores do tiroteio, saiu ferido
desse confronto.[12]
A Intentona Comunista e o Estado Novo
Os
trotskistas brasileiros não apoiaram o levante de 1935, chefiado por Luís
Carlos Prestes. Rapidamente abortada, a tentativa de golpe possibilitou o
fortalecimento das correntes políticas que se opunham ao comunismo, culminando
com a decretação por Getúlio do Estado Novo (1937), um regime explicitamente
ditatorial. Diante desse quadro, diz a FGV-CPDOC, “Mário Pedrosa decidiu-se
pelo exílio, conseguindo embarcar clandestinamente para a Europa”. No ano
seguinte, Mary Houston, já casada com ele, seria presa no Rio de Janeiro. Nesse
momento, seu marido, em Paris, trabalhava para fundar a IV Internacional (“uma
organização comunista composta por seguidores de Leon Trotsky com o objetivo
declarado de ajudar a classe trabalhadora a alcançar o socialismo”, na
definição padrão da Wikipedia).
“Delegado e representante da seção oficial brasileira na Internacional, Pedrosa
foi eleito durante a conferência de fundação membro de seu comitê executivo”.
Recordaria ele, na entrevista concedida em 1977: “Em 1937 fui para a França,
estive em Munique e, em seguida, Estados Unidos. Em 1940, tentei voltar, mas o
Filinto Muller [chefe da Polícia Política do Estado Novo] me prendeu e lá fui
eu outra vez. Voltei em 1945 para a redemocratização”.[13]
Durante
os trabalhos da IV Internacional (1939), houve polêmica sobre a tese da defesa
incondicional da União Soviética, sustentada por Trotsky, à qual Pedrosa se
opôs. A assinatura do pacto de não agressão entre a Alemanha e a União
Soviética, em setembro daquele ano, e a invasão da Finlândia pelos russos em
novembro acirraram ainda mais as divergências. Em meio a esse clima, Mário
mudou-se para Washington, onde trabalharia como redator da União Pan-Americana
e lá redigiu um extenso documento com críticas a Trotsky. Logo depois, “foi
excluído do secretariado da IV Internacional. Esse fato levou-o a rever suas
posições políticas, acabando por romper com o bolchevismo”. O que significou,
também, uma reavaliação do marxismo. Provavelmente, Mário já havia aprendido,
então, que divergências e discussão de ideias não seriam jamais toleradas por
partidos ou países comunistas.[14]
Em
agosto de 1940, Leon Trotsky, asilado no México há três anos, encontrou a
morte, assassinado a golpes de picareta pelo fanático espanhol Ramón Mercader,
agindo a mando de Stalin. O ditador soviético iria reinar até morrer, em 1953,
tendo tido tempo suficiente para se tornar um dos maiores assassinos coletivos
da História. (A literatura sobre isso é vasta. Se for para escolher apenas um
livro, remeto o leitor interessado a Timothy Snyder, Terras de Sangue: A Europa entre Hitler e Stalin.) Foi bom para
sua biografia que Mário Pedrosa tivesse rompido cedo com Stalin; não foi tão
bom que precisasse esperar até 1940 para romper com Trotsky e com o bolchevismo
em geral. Um não era melhor que o outro. Apenas, Trotsky esteve menos tempo no
poder que seu arqui-inimigo. Num livro excepcional, de ficção histórica, sobre
o assassinato do líder comunista, o cubano Leonardo Padura escreveu:
Enquanto
decorria o processo contra os dezesseis réus [comunistas da velha guarda, perseguidos
por Stalin nos processos de Moscou, 1936-38], cada vez que ouvia a voz
irascível do Delegado do Ministério Público Vichinski [pedindo] ao tribunal o
fuzilamento dos cachorros raivosos levados a julgamento, Liev Davidovitch
[Trotsky] recordava aqueles tempos heroicos em que Lenin e ele tinham entregado
a Felix Dzerzhinski as rédeas de um mecanismo de repressão revolucionária para
que aplicasse, sem lei e sem quartel, um Terror Vermelho capaz de salvar, a
(...) revolução balbuciante que mal se mantinha de pé. O Terror da Tcheka
[polícia secreta bolchevique] foi o braço obscuro da Revolução, ímpio como
devia – como tinha de ser, diriam –, e aniquilou às centenas ou milhares os
inimigos do povo, os perdedores da luta de classes.[15]
Mário
Pedrosa sabia disso, mas, provavelmente, estava convencido de que o assassinato
em larga escala seria o preço a pagar pela construção de um mundo novo,
antevisto como melhor que o existente. Não lhe deve ter sido fácil manter a fé
revolucionária, em face do que já testemunhara. Seja como for, por essa razão
ou pela necessidade prática de ganhar a vida, depois de sofrer pela segunda vez
os efeitos da intolerância, ele arrefeceu um tanto em sua atuação política. A
partir de 1940 e até, talvez, o início dos anos sessenta, voltou-se mais para a
atividade intelectual. De todo modo, ele criou, em 1945, o semanário Vanguarda Socialista (“objeto de ataques
furiosos do então influente e stalinista Partido Comunista de Luís Carlos
Prestes”, diz Luciano Martins), aproximou-se das ideias de Rosa Luxemburgo e do
socialismo democrático e se filiou, em 1946 ou 1947, ao refundado Partido
Socialista Brasileiro (a fundação original teria ocorrido em 1933), para onde
levou sua revista semanal. Não há registro de que jamais tenha tido grande
entusiasmo pelo seu novo partido, entretanto.[16]
Crítico de artes
Nos
vinte anos entre 1940 e 1960, Mário Pedrosa iria ser cada vez mais crítico de
artes e menos político. Nesse tempo, escreveu Flávio Moura, “o Brasil foi
contaminado por um sarampão (sic) construtivista. A ordem do dia nas artes
visuais era a abstração geométrica. Qualquer abstração que cheirasse a
subjetivismo só não era pior do que a arte figurativa, de um passadismo
imperdoável aos paladares da época”. Em grande medida, a moda se deveu ao
ex-troskista agora rompido com o bolchevismo e adepto do Partido Socialista.
“Ele foi o mentor dos primeiros [concretistas] do Rio, Almir Mavignier, Abraham
Palatnik e Ivan Serpa, que começaram a produzir com base em seus textos. Foi o
pai espiritual de Ferreira Gullar, a quem deu a chave teórica para o ‘manifesto
neoconcreto’. Era idolatrado por Hélio Oiticica e Lygia Clark, que o chamava de
herói predileto”.[17]
Naqueles anos
40 Mário Pedrosa trouxe (...) para a esquerda brasileira uma contribuição
civilizadora de grande alcance por meio da sua crítica inovadora das artes.
Estávamos então impregnados por concepções de cunho (...) pragmático,
favorecidas pela leitura pouco flexível que se fazia do marxismo. (...) As
obras de arte e de literatura deveriam ser necessariamente interpretadas e
avaliadas segundo a sua dimensão social e, não raro, segundo o seu significado
político potencial. Em consequência, a crítica tendia a concentrar-se no
conteúdo e a negligenciar as questões de forma.[18]
Pedrosa
destacou-se, ao longo da vida, mas, sobretudo, nesses anos, pelo grande número
de artistas internacionais com quem conversou e, em alguns casos, estabeleceu
relações próximas. Em 1947, por exemplo, ele viajou à Europa numa missão do
jornal carioca Correio da Manhã.
Aproveitou para entrevistar-se com André Gide, Albert Camus, André Malraux,
David Rousset e James Burnham e para conhecer, na Itália, o pintor Giorgio
Morandi, de quem se tornou amigo. No ano seguinte, encontrou-se com Alexander
Calder na primeira visita deste ao Brasil, que também viria a ser seu amigo.
Nos anos 1950, Mário “dedicou-se principalmente às artes plásticas e a poesia
das quais era o crítico mais respeitado e incentivador”. Suas andanças pelo
mundo lhe deram oportunidades de conviver com Diego Rivera e Frida Kahlo, com o
poeta e escritor surrealista André Breton e muitas outras pessoas. “As Bienais
Internacionais de São Paulo ganharam qualidade e atração sob sua orientação”.
Interessou-se pela arte dos povos primitivos e dos internos em manicômios. “A
discussão pública e fraterna que manteve com Celso Furtado [impressionou] pela
clareza de ideias, ajudando o grande economista e amigo a melhor entender nossa
burguesia e seus limites”.[19]
Dou
a palavra a Luciano Martins, por um tempo, casado com Vera Pedrosa, filha de
Mário: “Dotado de uma poderosa inteligência, sua influência no campo
intelectual desde esse tempo seria bem mais duradoura do que na política”.
Martins prossegue: era “uma influência que se exercia, mais por meio da
convivência no círculo de intelectuais que frequentava [a casa de Mário] ou de
artigos de jornal, do que de uma obra escrita sistemática”. De fato, cultivar o
hábito de receber pessoas para debater ideias foi uma das marcas registradas do
pernambucano de Timbaúba.[20]
Na
casa de Mário e Mary se dava uma espécie de encontro de águas. O convívio entre
os velhos amigos e companheiros [dele], como Barreto Leite Filho e Lívio Xavier
(com o racionalismo erudito do primeiro e o ceticismo mordaz do segundo muito
aprendi), os artistas e intelectuais inovadores como Lygia Clark, Aluizio
Carvão, Franz Weissman, Milton da Costa, Ivan Serpa, Hélio Oiticica, Almir
Mavignier, Abrão Palatnik, Ferreira Gullar, Lygia Pape, Carlinhos de Oliveira,
Oliveira Bastos e, ainda, a figura flamejante de Hélio Pellegrino e jornalistas
de talento como Cláudio Abramo, Jânio de Freitas e Newton Carlos, para citar
apenas alguns.[21]
A
produção de Mário Pedrosa como crítico de artes mereceria uma discussão longa
que não será feita aqui. Remeto o leitor à literatura especializada. Um bom começo
talvez seja o artigo de José D'Assunção Barros referido na nota abaixo.[22]
A política reencontra Mário Pedrosa
No
mesmo período (1940-60) em que se viu obrigado a aprofundar sua atividade de
jornalista e crítico de artes, o pernambucano de Timbaúba manteve, apesar
disso, alguma militância política centrada na revista Vanguarda Socialista e, a partir de 1946 ou 1947 (ano da morte de
seu pai), no Partido Socialista. Novamente, ele se defrontaria ali com um
ambiente pouco compatível com suas ideias de transformação revolucionária.
Everaldo
de Oliveira Andrade, num texto encontrável na internet, (aparentemente, notas
de aulas para um curso na Universidade de São Paulo) escreveu: “O diagnóstico
de Mário Pedrosa sobre o PSB estava correto: o partido tornara-se uma legenda
oportunista e eleitoreira, sem qualquer relação com a luta e os interesses da
classe trabalhadora”. Ou, nas palavras do próprio Mário: “o oportunismo
político fez com que não se lutasse pela real restauração de um movimento
sindical independente, daí nascendo o peleguismo, ao qual o Partido Socialista
se associou por motivo de ordem tática. (...) [Mas] o PSB não teve grande
importância, porque já nasceu morto”. Nasceu morto, mas abrigou, durante um
tempo, o crítico de artes e ativista político. Essa seria a terceira vez que
ele faria uma revisão importante de suas convicções táticas, se não
filosóficas, sobre as distintas facções do comunismo e do socialismo.[23]
Foi
pela via política e não outra que eu, Gustavo, descobri Mário Pedrosa em meados
dos anos sessenta, estimulado pelos desdobramentos do episódio ocorrido no
Brasil em 31 de março de 1964. Foi um contato com as ideias dele, jamais o
encontrei pessoalmente. Nem sabia que era meu parente distante (posteriormente,
minha mãe me informaria disso), mas li seus dois livros, A Opção Brasileira e A Opção
Imperialista, provavelmente, no mesmo ano (1966) em que ambos foram
publicados. Não possuo mais os exemplares, que devem ter virado comida de cupim
em um dos muitos ataques do gênero sofridos por minha biblioteca, aproveitando
as vezes em que, morando no Exterior, tive de deixa-la aos cuidados de
terceiros. Mas lembro de que gostei, sobretudo do primeiro. Era politicamente
radical, como convinha aos meus gostos de então. (Talvez o detestasse, hoje.)
É
preciso dizer que, nos primeiros anos (1964-68) do regime militar, houve
relativa liberdade de manifestação. Na imprensa, o Correio da Manhã, sobretudo, e o Jornal do Brasil, em menor escala, do Rio de Janeiro, publicavam
regularmente artigos de Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, Hermano Alves,
Márcio Moreira Alves, Alceu de Amoroso Lima, entre outros, fortemente críticos
ao governo. O Estado de São Paulo
mantinha, igualmente, a independência.
Também
do Rio, porém com várias edições regionais (uma delas no Recife), a Última Hora, até setembro de 1968,
quando seu autor morreu, publicava a coluna diária humorística extremamente
crítica de Stanislaw Ponte Preta, heterônimo de Sérgio Porto. (Os mais velhos
não podem esquecer o “Festival de Besteira que Assola o País”, invenção de
Stanislaw para homenagear os idiotas da época, imortalizando suas frases
estúpidas ou atitudes descabidas. Ah, se ele estivesse vivo nos tempos de
discursos atravessados da ex-presidente Rousseff!)
Nas
livrarias, que eu já frequentava assiduamente, era possível comprar livros de
Marx e Engels, assim como de comunistas menos famosos, ou mais próximos de nós,
como era o caso de Mário Pedrosa. Não apenas dele, não apenas livros
comunistas, mas também de quem, mesmo não-comunista, era fortemente crítico ao
regime. Essa liberdade relativa perdurou até dezembro de 1968, quando a censura
sobre jornais, livros e todos os demais meios de transmissão de informações se
tornou muito forte.
Com
o advento do Ato Institucional n05 (13/12/1968), Mário Pedrosa e a
política voltariam a se encontrar, desta vez, mais por iniciativa dela que
dele. No clima de perseguição generalizada aos militantes de esquerda que se
estabeleceu a partir de então, ele foi acusado de ter difamado o país no
Exterior, ao denunciar a prática de tortura a presos políticos. (Que havia
tortura, todo mundo sabia, mas ninguém podia falar. Mário Pedrosa, em
depoimento à polícia relatado por Luciano Martins, negou que tivesse propagado
no Exterior a tortura brasileira, mas afirmou sua solidariedade com os que a
sofriam.)
Desse
processo saiu um mandado de prisão preventiva da qual Mário, avisado com
antecedência, conseguiu escapar, refugiando-se na embaixada do Chile. Ali ficou
durante três meses, enquanto aguardava o salvo conduto para deixar o Brasil e
se asilar naquele país. Estava ainda na Embaixada por ocasião das eleições
presidenciais chilenas, mas chegou a Santiago antes da posse de Salvador Allende,
a que assistiu como convidado especial. Enquanto Mário Pedrosa, mesmo exilado,
permanecia sob vigilância do governo brasileiro, um grupo de artistas
proeminentes (dentre os quais Pablo Picasso, Alexander Calder, Henri Moore e
Max Bill) fez publicar no The New York
Times Review of Books carta aberta ao presidente do Brasil
responsabilizando-o pessoalmente por qualquer agressão que o crítico de artes
viesse a sofrer.[24]
O que se segue
é uma carta aberta ao presidente do Brasil. Nós, os intelectuais e artistas que
assinam essa carta, receberam com indignação e apreensão a notícia da ordem de
detenção emitida por motivos políticos por seu governo contra o escritor e
crítico de arte Mário Pedrosa.
Mr. Pedrosa é conhecido
por seus trabalhos no campo da arte e, para todos aqueles que leram suas obras
ou o conhecem pessoalmente, ele representa uma das expressões mais talentosas
da inteligência de um país que ele sempre brilhantemente representou e
intransigente e corajosamente defendeu.
Nós o consideramos
pessoalmente responsável pela integridade física e bem-estar mental deste
eminente brasileiro que ganhou em todos os lugares, por sua personalidade, a
admiração e respeito de seus colegas. Nós aguardamos com impaciência e
ansiedade ser informados que as medidas tomadas contra ele por seu governo
foram revogadas.
[Assinam]
Alexander Calder, Henry Moore, Cristiane Du Parc, Cruz-Diez, JovenalRavelo,
Jacques Vagmarsky, ZaoWou Ki, Luc-Alain Bois, Picasso, Max Bill, Soulages, I.
Agam, G. Rossi.[25]
Em
1973, Allende seria derrubado pelos militares comandados por Augusto Pinochet e
uma feroz ditadura se instalaria no Chile. O nome de Mário Pedrosa foi incluído
nas primeiras listas de inimigos do novo regime. Passou a ser caçado pelo
aparato repressivo do general ditador. “Não há outra coisa a fazer: ele se
asila na embaixada do México, onde aguarda um salvo-conduto para viajar”. Como
a permissão demorasse muito, “de Paris, Carlos Fuentes intercede junto a seu
governo para a concessão do documento. Mário pode ir, então, para o México, mas
lá não pode ficar. Precisa viajar para Paris”. Nesse momento, seu ex-genro
Luciano Martins morava na França e foi buscá-lo. Ao recebê-lo no aeroporto de
Orly, percebeu que ele estava “quebrado” com mais uma derrota da esquerda.[26]
“Como
o senhor saiu do Chile?”, perguntou-lhe a Folha
de São Paulo, em dezembro de 1977, poucos meses depois de seu regresso do
exílio.
Os
primeiros dias foram uma das coisas mais terríveis que eu conheço. [Os
militares] fuzilando gente na rua a toda hora, aviões de caça passando por cima
das casas, havia uma grande ofensiva contra estrangeiros, contra brasileiros.
(...) Na rua paravam as pessoas, fuzilavam e jogavam os corpos por ali, na
guia. Uma das coisas mais trágicas que eu vi. Todo mundo corria para as
embaixadas.[27]
Intercalo
uma observação de caráter pessoal. Em 1985, eu trabalhava no governo, em
Brasília, quando viajei a Santiago do Chile, convidado para reuniões técnicas
na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, órgão da
Organização das Nações Unidas). Fui recebido no aeroporto por um diplomata
brasileiro e transportado até o hotel em carro oficial da ONU, com direito às
bandeirinhas azuis laterais e tudo.
No
trajeto, fiquei impressionado com a quantidade de carros pretos (que deviam ser
blindados) cujos passageiros – nitidamente, policiais – viajavam armados de
metralhadoras com metade dos corpos fora da janela, examinando ostensivamente
cada detalhe à sua volta. A pessoa que me acompanhava falou: “nós não vamos ter
problemas, porque estamos numa viatura diplomática, mas não convém olhar para
eles [os policiais projetados sobre a rua]”. Santiago ainda estava, naquele
momento, sob toque de recolher, o que me obrigava, ao fim da tarde, a caminhar
apressadamente da sede da Cepal, onde aconteciam as reuniões, até o hotel em
que me hospedei. Observei naqueles dias um clima de tensão que nunca tinha
visto tão escancarado no Brasil, mesmo nos piores dias de nossa ditadura. Se
era assim doze anos depois do golpe, imagino como deve ter sido em 1973.
Mas,
volto a Mário Pedrosa. “Qual foi o pior exílio, o do Estado Novo ou este?”,
perguntou o repórter da Folha de São
Paulo, na continuação da mesma entrevista já citada. Eis a resposta dele:
Todo exílio é
ruim. O primeiro [1937] foi pior porque a situação do mundo era terrível: o
fascismo em ascensão, uma guerra se aproximando, e nós pobres oposicionistas
isolados. De maneira que o primeiro asilo foi pior nesse sentido, você não
tinha como se situar. Agora não. Agora [o exílio durou de 1971 a 1977] é uma
crise geral, mas não existe um fascismo.[28]
Último ato
Nos
seus últimos anos de vida, Mário Pedrosa teve um papel importante na fundação
do Partido dos Trabalhadores, o PT. Nisso, ele foi seguido por alguns
intelectuais de peso, destacadamente, Antônio Cândido e Sergio Buarque de
Holanda. “Aos quase 80 anos”, depõe Luciano Martins, “Mário acompanhou com
extraordinário interesse e esperança o surgimento do que então se chamava ‘novo
sindicalismo’ no ABC paulista. Não teve dúvidas, escreveu uma longa carta a Lula,
recomendando: crie um partido político de trabalhadores. Afinal, era tudo que
durante toda a sua vida [ele] havia esperado”.[29]
O
próprio Lula daria seu testemunho a respeito desse episódio:
Um belo dia,
estou no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo quando recebo uma
carta, datada de 1° de agosto de 1978. Essa carta foi o que permitiu que eu lhe
telefonasse para marcar um primeiro encontro com ele. Penso que Mário Pedrosa,
e outros intelectuais, como Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, além de
Lélia Abramo e outros companheiros, tiveram um papel extraordinário na criação
do PT. Às vezes penso que o PT não teria sido criado se não tivéssemos um grupo
de intelectuais que resolvesse, naquele instante, travar um debate político
nacional.[30]
Quando
houve a cerimônia de fundação do PT, Mário estava presente. “Ele, depois, me
contou: ‘Danei-me de chorar’. Era assim o Mário Pedrosa que conheci. Uma dessas
pessoas – e o digo com tristeza – que (...) não se fabricam mais”.[31]
Fico
me perguntando se Mário Pedrosa também iria “danar-se de chorar” se visse o PT
e Luís Inácio Lula da Silva na situação em que se encontram hoje.
Como teria Mário reagido à derrocada do comunismo e à falência moral do PT?
Entre
os jovens de classe média, à época em que a personalidade de Pedro Pedrosa se
formou em Lausanne, no Rio de Janeiro, Berlim, Paris e outras cidades onde ele
residiu ou visitou com frequência, a militância política de esquerda –
predominantemente, socialista e comunista; em todos os casos, contestadora da
ordem estabelecida – não era incomum. Ao contrário. Para muitos rapazes e moças
como ele, nas primeiras décadas do século XX, as ideias de Marx, Engels, Lênin,
Trotsky; a Revolução Russa; a promessa de transformação do mundo aqui mesmo e
não no paraíso celestial representaram poderosos ímãs.
Não
é coincidência que esse seja, também, o tempo em que o apelo religioso,
leia-se, católico, como ideal de virtude e promessa de redenção, perde a sua
força. Essas influências, claro, eram muito mais sensíveis na Europa e no Rio
de Janeiro do que em Timbaúba, São Vicente ou Escada, cidades pernambucanas
importantes para gerações anteriores dos Pedrosa. Entre outras razões, porque a
força das ideias revolucionárias decorria, em larga medida, dos processos
simultâneos de urbanização e industrialização que estavam ocorrendo naqueles
anos no mundo ocidental. No Brasil, inclusive. Rompendo com a velha ordem,
esses processos faziam aparecer novas classes, novas aspirações e frustrações –
esperanças, mas, também rancores –, enquanto criavam conflitos que nem
imaginados podiam ser, apenas poucas décadas atrás.[32]
É
pouco surpreendente, portanto, que o jovem Mário Pedrosa tenha seguido o
caminho da contestação radical à ordem estabelecida. (Que tenha persistido nele
até a velhice é mais difícil de explicar.) Quem sabe, os anos de internato no
protestante Instituto Quinche, em Lausanne, Suíça, tenham sido uma experiência
marcante para ele, nesse sentido. A convivência com colegas e professores de
mentalidade moderna no curso de Direito do Rio de Janeiro, certamente, o foi.
Dotado de inteligência privilegiada, como viria a provar com sua produção
intelectual, e tendo tido a oportunidade de, inclusive, viver no continente
onde todas essas ideias novas estavam sendo produzidas e testadas, era natural
que ele se sentisse atraído por elas e pela mística da ação heroica, perigosa,
clandestina e (acreditavam os iniciados) transformadora dos jovens
revolucionários.
Seria
apenas isso?
Não
tenho informações suficientes para dizer com segurança se, em seu caso, a opção
revolucionária também se explicaria por um conflito com a própria família, o
pai, especialmente. Mas, elementos para isso não faltavam. Pedro – conservador
em política, católico ferrenho e defensor de princípios morais tradicionais –
percorreu trajetória brilhante.
Os
Cunha Pedrosa da geração de Raimundo, pai de Pedro, avô de Mário, eram
“aristocratas na pobreza”. Pedro venceu esse estigma e, por esforço próprio, conquistou
um lugar no estrato mais alto da sociedade de seu tempo. Fez isso no Rio de
Janeiro, não em Timbaúba. Ou seja: alcançou posição de máximo destaque no
Brasil, não apenas na zona canavieira Norte de Pernambuco. Não deve ter
entendido nunca por que o filho não podia ser como ele, superá-lo, inclusive,
atingindo posições ainda mais elevadas, sem a necessidade de colocar a vida em
risco fugindo da polícia, em nome de uma revolução de gosto duvidoso e
probabilidade mínima de acontecer. Sobretudo, tendo seu filho um ponto de
partida tão mais favorável.
Considerando
esses elementos, a pressão de Pedro contra a opção política de Mário, quando
este ainda era jovem e dependente do pai, deve ter sido forte, suscitando a
correspondente reação. Mas tudo isso, repito, é matéria de hipóteses, não de
fatos estabelecidos que amparem conclusões inequívocas.[33]
Sem
relação com a figura do pai, entretanto, a persistência da opção política de
Mário não deixaria de estar sujeita a testes severos impostos pelo mundo
exterior. Alguém já disse que a sina do idealista é ver seus sonhos realizados
de uma forma que lhe destrói o ideal. Com a passagem do tempo, os fundamentos
ideológicos da ação política do ativista e crítico de artes foram, um a um, se
revelando ilusórios, quando não francamente perversos.
Em
três casos, ele percebeu isso, fez autocrítica e mudou de rumo. Foi assim em
1928, quando renegou Stálin, interrompeu uma viagem de estudos a Moscou e foi
expulso do Partido Comunista Brasileiro; em 1940, quando criticou Trotsky e foi
excluído do Secretariado da IV Internacional; e ao longo da década de 1940,
quando percebeu que tampouco o Partido Socialista (aquele que “já nasceu
morto”) oferecia uma base segura para a realização dos objetivos políticos por
ele idealizados. Mas Mário não viveu o bastante para testemunhar dois outros
naufrágios de seus princípios basilares: (1) o do comunismo (ou “socialismo
real”), simbolizado pela queda do muro de Berlim (1989) e a dissolução da União
Soviética (1991), e (2) a desmoralização do Partido dos Trabalhadores, nele
incluído seu líder maior Luís Inácio Lula da Silva, apanhado em flagrante
praticando a menos idealista política e a mais nefasta corrupção.
Como
teria o revolucionário nascido em Timbaúba reagido diante desses dois eventos
anticlimáticos? É difícil dizer. Com relação ao comunismo, em novembro de 1981,
quando ele morreu, o muro de Berlim já havia completado 20 anos. Não tenho
ciência de que Mário Pedrosa haja, em nenhum momento, expressado sua desilusão
com um regime que precisou cercar o paraíso de muros, para evitar não que os
habitantes do inferno capitalista pulassem para dentro, mas, ao contrário, para
impedir que os (supostamente) felizes beneficiários de uma sociedade sem
classes caíssem fora dali. Por outras razões da mesma natureza, a derrocada
moral do comunismo também teria ficado clara a um bom observador (e Mário,
certamente, o era) muito antes dos anos 1980. Stálin pode ter sido um caso
extremo, mas toda a história dos regimes de inspiração marxista já havia sido
escrita, até aquela altura, como uma crônica de ditaduras horrendas e
assassinos ferozes.
Mao
Zedong, na China, matou mais gente do que Stálin e Hitler juntos. Fidel Castro
e Che Guevara, proporcionalmente, talvez tenham fuzilado mais cubanos do que
qualquer um dos ditadores que alcançaram o poder em outras paragens.
Economicamente, também já estava demonstrado, em 1981, que o socialismo
produzira sociedades povoadas de pessoas, relativamente, iguais (exceção feita
da classe dirigente, “mais igual” que as outras – George Orwell, Animal Farm), porém irremediavelmente
pobres.
Para
um Mário Pedrosa, quase cidadão europeu, deveria ser impossível não ver que a
sociedade de seus sonhos – rica em bens materiais; intelectual e politicamente
aberta; toleravelmente, desigual – tinha sido criada pelo capitalismo em países como a Inglaterra, a França, a Alemanha
Ocidental, a Holanda, a Dinamarca, a Suécia; e não pelo socialismo em nações
miseráveis, opressivas e obscurantistas, como a Albânia, a Romênia, a Alemanha
Oriental, a própria União Soviética.
Mas
eu não estou certo de que Mário Pedrosa tenha visto nada disso. Menos ainda de
que ele conseguiria identificar o PT como um partido fascista (a despeito da
retórica de esquerda) e Lula como um homem desprovido de idealismo, um
populista clássico que fez da política tão somente um trampolim para o
enriquecimento pessoal e familiar. O que sei é que, dos dois outros
intelectuais de peso fundadores do Partido dos Trabalhadores, Antônio Cândido
jamais reviu suas posições, chegando a defender o governo desastroso e
desastrado de Dilma Rousseff, quando se colocou na ordem do dia a proposta de
impeachment contra ela, e que Sérgio Buarque de Holanda (morto em 1982) deixou
um filho artista incumbido de jurar fidelidade incondicional – mesmo em face da
podridão revelada – ao partido que seu pai ajudou a criar.
(G.M.G., junho 2016)
[1] Versão
preliminar de um dos capítulos de Uma
Noite em Anhumas, livro em elaboração que trata da história social do
Nordeste canavieiro nos séculos XIX e XX contada sob o ponto de vista de meus
familiares que a viveram, em Pernambuco, Alagoas, Paraíba, na Bahia e (no
exílio, por assim dizer) no Rio de Janeiro. COMENTÁRIOS E possíveis CORREÇÕES FACTUAIS
SÃO BEM VINDOS.
[2] Gustavo (Pedrosa
de) Maia Gomes é economista e escritor. Está em https://www.facebook.com/gustavo.maiagomes
e em http://gustavomaiagomes.blogspot.com.br/.
E-mail gustavomaiagomes@gmail.com
[3] Silas Marti
(Enviado especial ao Rio de Janeiro), Nova edição de obra do crítico Mário
Pedrosa religa arte e política. Folha de
São Paulo (Ilustrada), 13/4/2013, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/09/1348466-nova-edicao-da-obra-de-critico-mario-pedrosa-religa-arte-e-politica.shtml
(acesso em 13/4/2016). O nome completo do personagem deste capítulo é Mário
Xavier de Andrade Pedrosa.
[4] As duas
citações, na ordem em que aparecem, foram tiradas de Maria Lúcia Rangel. Mário
Pedrosa: Um coerente. Jornal do Brasil (Rio
de Janeiro), 12/10/1977, pág. 36, e de Josnei Di Carlo Vilas Boas. “A Arte é
fundamental. A profissão do intelectual é ser revolucionário”: A atuação
intelectual de Mário Pedrosa na imprensa entre 1945 e 1968. 39o
Encontro Anual da Anpocs (2015), disponível em http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=9621&Itemid=461
acesso em 15/4/2016).
[5] As citações
(reproduzidas com certa liberalidade) foram tiradas de Josnei Di Carlo Vilas
Boas. “A arte é fundamental. A profissão do intelectual é ser revolucionário”:
A atuação intelectual de Mário Pedrosa na imprensa entre 1945 e 1968. 39o
Encontro Anual da Anpocs (2015), disponível em http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=
doc_view&gid=9621&Itemid=461 (acesso em 15/4/2016) pág. 4, e de
Maria Lúcia Rangel. Mário Pedrosa: Um coerente. Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 12/10/1977, Caderno B, pág. 1.
[6]Josnei Di
Carlo Vilas Boas. “A arte é fundamental. A profissão do intelectual é ser
revolucionário”: A atuação intelectual de Mário Pedrosa na imprensa entre 1945
e 1968. 39o Encontro Anual da Anpocs (2015), disponível em http://www.anpocs.org/portal/index.php?
option=com_docman&task=doc_view&gid=9621&Itemid=461 acesso em
15/4/2016. A informação de que Mário Pedrosa entrou no Partido Comunista por
influência de Otávio Brandão eu a colhi em FGV-CPDOC (Fundação Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil), em http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/PEDROSA,%20M%C3%A1rio.pdf
[7] Manolo (?).
Mário Pedrosa político (1): das origens ao Grupo Comunista Lenine (1901-1929).
Em http://www.passapalavra.info/2009/11/14460 (10 de novembro
de 2009). Faço a citação com certa liberalidade, omitindo alguns trechos
desnecessários no presente contexto.
[8] Manolo (?).
Mário Pedrosa político... Citado acima.
[9] As citações
foram colhidas em Josnei Di Carlo Vilas Boas. “A Arte é fundamental. A
profissão do intelectual é ser revolucionário”: A atuação intelectual de Mário
Pedrosa na imprensa entre 1945 e 1968. 39o Encontro Anual da Anpocs
(2015), disponível em http://www.anpocs.org/portal/
index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=9621&Itemid=461
(acesso em 15/4/2016); Mário Magalhães.
O olhar dos espiões e Mário Pedrosa, o ‘príncipe do espírito’. Blog de Mário
Magalhães, em http://blogdomariomagalhaes.blogosfera.
uol.com.br/2015/11/06/o-olhar-dos-espioes-e-mario-pedrosa-o-principe-do-espirito/
(acesso em 14/4/2016); e FGV-CPDOC (Fundação Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil), em http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/PEDROSA,
%20M%C3%A1rio.pdf.
[10] FGV-CPDOC
(Fundação Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil), em http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/PEDROSA,
%20M%C3%A1rio.pdf.
[11] Luciano
Martins, A utopia como modo de vida: Fragmentos de lembrança de Mário Pedrosa,
em José Castilho Marques Neto, Mário
Pedrosa e o Brasil, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, pág. 31.
[12] FGV-CPDOC
(Fundação Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil), em http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/PEDROSA,
%20M%C3%A1rio.pdf. Maria Lúcia Rangel. Mário Pedrosa: Um coerente. Jornal do Brasil (Rio de Janeiro),
12/10/1977, pág. 36.
[13] FGV-CPDOC
(Fundação Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil), em http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/PEDROSA,
%20M%C3%A1rio.pdf. Maria Lúcia Rangel. Mário Pedrosa: Um coerente. Jornal do Brasil (Rio de Janeiro),
12/10/1977, pág. 36.
[14] As citações
foram colhidas em FGV-CPDOC (Fundação Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), em http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/PEDROSA,
%20M%C3%A1rio.pdf.
[15] Leonardo
Padura. O Homem que Amava os Cachorros.
Tradução de Helena Pitta. São Paulo, Boitempo, 2013, pág. 175.
[16] Luciano
Martins, A utopia como modo de vida: Fragmentos de lembrança de Mário Pedrosa,
em José Castilho Marques Neto, Mário
Pedrosa e o Brasil, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, pág. 33.
[17] Flávio Moura.
Em tempos de crise do PT, vale relembrar a figura de Mário Pedrosa. (2 de abril
de 2015) disponível em https://br.noticias.yahoo.com/blogs/flavio-moura/em-tempos-de-crise-do-pt-vale-relembrar-a-figura-191620161.html (Acesso em 15/4/2016)
[18] Antônio
Cândido, Um Socialista Singular, em José Castilho Marques Neto, Mário Pedrosa e o Brasil, São Paulo,
Fundação Perseu Abramo, pág. 15.
[19] Paulo
Sckromov. Mário Pedrosa, o primeiro filiado do PT. http://bogdopaulinho.blogspot.com.br/
2012/02/mario-pedrosa-por-paulo-sckomov.html
[22] José
D'Assunção Barros. Mário Pedrosa e a crítica de arte no Brasil. ARS (São Paulo), vol.6, no
11. São Paulo, 2008, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202008000100004#top14
[23] Ambas as
citações tiradas de Everaldo de Oliveira Andrade. Alguns passos de Mário
Pedrosa, em http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/365619/mod_resource/content/1/Notas%20biogr%C3%A1ficas%20sobre%20M%C3%A1rio%20Pedrosa.pdf,
sem indicação de data, local, ou numeração de páginas.
[24]Luciano Martins, A utopia como
modo de vida: Fragmentos de lembrança de Mário Pedrosa, em José Castilho
Marques Neto, Mário Pedrosa e o Brasil,
São Paulo, Fundação Perseu Abramo, pág. 40.
[25] Lista
parcial. O apelo foi também assinado por vinte e cinco artistas
latino-americanos que vivem em Paris. Disponível em http://www.nybooks.com/articles/1972/03/09/the-case-of-mario-pedrosa/
[26] Luciano
Martins, A utopia como modo de vida: Fragmentos de lembrança de Mário Pedrosa,
em José Castilho Marques Neto, Mário
Pedrosa e o Brasil, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, págs. 40-1.
[27] Mário
Pedrosa: Confissões de um livre pensador. Folha
de São Paulo, 20/12/1977, (Folha Ilustrada, pág.1, disponível em Acervo Folha)
[28] Mário
Pedrosa: Confissões de um livre pensador. Folha
de São Paulo, 20/12/1977, (Folha Ilustrada, pág.1, disponível em Acervo Folha)
[29] Luciano
Martins, citado, pág. 41.
[30] Luís Inácio
Lula da Silva, Mário Pedrosa e o Partido
dos Trabalhadores, em José Castilho Marques Neto, Mário Pedrosa e o Brasil,
São Paulo, Fundação Perseu Abramo, pág. 23. (Omiti alguns trechos que não
acrescentavam informação relevante ao presente contexto.)
[31] Luciano
Martins, citado, pág. 41.
[32] Na minha tese
doutoral, depois transformada em livro (que, em larga medida, já não me agrada),
escrita em 1982-83, faço um resumo das confrontações políticas ocorridas no
Brasil nos três primeiros quarteis do século XX. Claramente, o contexto maior
desses conflitos – pontuados por greves ferozes e ferozmente reprimidas – foi o
grande crescimento, associado à industrialização, da classe trabalhadora
urbana, principalmente, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo.
Nas
primeiras décadas do século passado, a ideologia que sustentou a ação política
e reivindicatória dos operários e seus sindicatos foi o anarquismo, trazido da
Europa pelos imigrantes, sobretudo, italianos. Mas, a partir dos anos 1920, (e
aí com a contribuição importante dos jovens intelectuais brasileiros da classe
média) a influência do socialismo e, ainda mais, do comunismo se tornou
predominante. Vale lembrar que essa foi uma época de grande agitação política
também na Europa.
Tudo
isso repercutia na nova classe média brasileira, cada dia mais integrada por
gente como Mário Pedrosa: instruída, bem informada e insatisfeita com as
incontáveis deficiências do país. Querendo mudanças, portanto. (Outra
manifestação desse mesmo conjunto de circunstâncias foi o movimento tenentista,
a que dei pouca ênfase no livro, mas que hoje considero também muito
importante.)
Ver,
sobretudo, os capítulos 3, 6 e 10 de Gustavo Maia Gomes, The Roots of State Intervention in the Brazilian Economy, New York,
Praeger, 1986.
[33] A única
referência de Mário Pedrosa ao pai que consegui localizar foi a de que Pedro o
havia mandado estudar na Europa (aos treze anos de idade!) devido à sua
“vagabundagem”. Já citei isso. Mesmo Luciano Martins, que foi seu genro (e,
portanto, teve acesso a mais informações privadas sobre Mário) não parecia
saber nada sobre as relações entre seu sogro (por um tempo) e o pai dele.
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