Gustavo Maia Gomes
Arrecifes e o porto do Recife em 1875. (Foto de Marc Ferrez, acervo do Instituto Moreira Salles.) |
"O Recife é uma dádiva do porto". A frase
de Heródoto, que se referia ao Egito e ao Rio Nilo, eu a ouvi, pela primeira
vez, quando a última pirâmide ainda estava em obras. Acredito que da boca de
Dona Inês, a professora inesquecível que me ensinou a ler. Aplico-a, com
adaptações, ao Recife. É certo que a cidade não vivia apenas da exportação de
açúcar e algodão, do que tudo o mais se derivasse. Existiam outros fatores autônomos, como o comércio
interprovincial por vias terrestres e o emprego público. Mas isso não deixa de
ser um argumento de segunda ordem. A economia recifense, não apenas no século XIX,
mas, desde o início da colonização até, talvez, os anos 1950, foi,
fundamentalmente, uma dádiva de seu porto.
Não era
pequeno o movimento de navios no porto do Recife, na segunda metade do século
XIX. No dia 1 de janeiro de 1872, entraram os navios Mandaú, vapor brasileiro de 222 t, com carga de algodão vinda de
Mamanguape (Paraíba); Alice, vapor
inglês de 899 t, vindo de Liverpool e Lisboa, com vários gêneros; o Erie, vapor americano de 2.900 t, vindo
do Rio de Janeiro, com café e outros gêneros; a barca inglesa (sic) George Washington, de 414 t, trazendo
carvão de Liverpool; a barca sueca Sygnus,
de 357 t, com carvão de Hull; o brigue inglês Joshua & Mary, de 218 t, trazendo 2.330 barricas de farinha de
trigo vindas de Trieste; a barca portuguesa Felix,
de 318 t, trazendo café e outros gêneros do Rio de Janeiro; o brigue sueco Helena, de 224 t, com lastro vindo do
Rio de Janeiro.[i]
No mesmo
dia, saíram a galera espanhola Joaquim
Serra, levando uma carga de algodão para Barcelona; o brigue brasileiro Raio, com carga de açúcar, aguardente e
outros gêneros para o Pará; o vapor brasileiro Ipojuca, levando carga de vários gêneros para Granja e portos
intermédios. Em novembro, diria o presidente da Província de Pernambuco, Faria
Lemos, em seu relatório à Assembleia: “é calculada [para o ano todo de 1872] a
entrada de navios de longo curso em 700 e tantos e os brasileiros de grande
cabotagem em 300 e tantos”. Mais navios estrangeiros que brasileiros.[ii]
Pelo
resumo da última semana comercial de 1871, ficamos sabendo que “em consequência
de notícias vindas da Europa, de preços mais altos nos mercados ingleses para o
algodão, este gênero subiu aqui cerca de 300 a 500 reis em arrobas”.
Prosseguia: “o mercado de açúcar esteve um pouco paralisado, poucas transações
se fizeram”. Quanto ao café, de que Pernambuco era importador,
O mercado por agora está suprido, alguns lotes vendidos têm sido a preços
mais baixos. Não houve chegada de carne do Rio Grande [do Sul], os preços não
se alteraram e a saída para o consumo foi pequena. Não constam vendas de
couros, também não há muitos para vender. Continua abundante o mercado de
farinha de mandioca; não há notável alteração nos preços dos outros artigos do
país, dos quais está mais ou menos suprido o mercado.
A
importação do estrangeiro, continuava o jornal,
Foi de porção de arroz da Índia, de cinco navios
com bacalhau, dos quais dois seguiram para o Sul; dois ditos com carne do Rio
da Prata, onze ditos com carvão de pedra, do qual o mercado está muito abundante,
quatro ditos com farinha de trigo, um dito com genebra [aguardente de cereais]
de Hamburgo, além de outros com diversos gêneros.[iii]
Uma
resenha produto a produto dos “gêneros nacionais” entrados no porto ou por ele
saídos relacionava a aguardente, o algodão, o “algodão de Maceió”, o da
Paraíba, o do Rio Grande do Norte, o açúcar, o “açúcar de outras províncias”, o
café, a carne seca do Rio Grande, couros salgados, couros salgados verdes,
farinha de mandioca, feijão, fumo, gorduras, goma de mandioca, mel, milho, sal
do Assu, solas, velas de carnaúba...
Dentre os
“gêneros estrangeiros”, o Jornal do
Recife relacionava o alpiste, o arroz da Índia, o azeite de oliveira, a
banha de porco, “batatas das inglesas e das portuguesas”, bacalhau, “a
bolachinha americana”, breu, canela, carne seca do Rio da Prata, carvão de
pedra, cebolas, cervejas da inglesa e alemã, chá, chouriças, chumbo de
munição... E mais: cominho, cravo da Índia, cimento, erva doce, farelos,
farinha de trigo, genebra, querosene, louça inglesa, massas, manteiga, óleo de
linhaça, passas, papel de embrulho, pimenta da Índia, presuntos, pólvora,
queijos, sardinhas de Nantes, tabuado [porção de tábuas] de pinho, toucinho de
Lisboa, velas de cera, velas estearinas, vinagre de Lisboa, vinhos...[iv]
Os produtos “exportáveis”
Em valor,
a quase totalidade da exportação feita pelo Recife (não necessariamente de bens
produzidos em Pernambuco) se resumia a açúcar e algodão. Esporadicamente,
apareciam vendas de outros produtos – por exemplo, no dia 29 de dezembro de
1871, aguardente, espírito de vinho e tábuas de amarelo e de louro – seja para
o estrangeiro ou para as demais províncias. Nem por isso deixava a repartição
arrecadadora de impostos de publicar uma extensa lista de “gêneros sujeitos a
direitos de exportação”, com os respectivos preços de referência.
Na semana
de 2 a 5 de janeiro de 1872, a relação dos produtos tributáveis na saída
incluía abanos, algodão em caroço, algodão em rama ou em lã, animais vivos
(carneiros e porcos), arroz com casca e descascado ou pilado, açúcar branco,
mascavado ou refinado, aves vivas (galinhas e papagaios), azeites de amendoim,
de coco e de mamona, batatas alimentícias, aguardentes (cachaça, de cana,
genebra, ou restilada), álcool, cerveja, vinagre, vinho de caju, bolacha, café
(escolha ou restolho; torrado ou moído)...
...cal
branca, cal preta, carvão vegetal, cera (amarela ou de carnaúba), chá, cocos
secos, cola, couros de boi (secos salgados, espichados, verdes), couros de
cabra curtidos, couros de onça, doces (em calda, em geleia ou massa, secos),
espanadores de penas (grandes ou pequenas), espanadores de palha, esteiras de carnaúba, esteiras próprias para forro ou
para estiva de navios, estopa nacional, farinha de araruta, farinha de
mandioca, feijão de qualquer qualidade, charutos, cigarros, fumo em folhas,
fumo em latas, goma de mandioca...
...ipecacuanha
(planta medicinal) em raiz, toros de angico, caibros, enxalmeis, frechais,
couçoeiras (sic) de jacarandá, lenha em achas, lenha em toros, linhas e
esteios, pranchões de louro, pau brasil, pau de jangada, melaço, mel de
abelhas, milho, ossos, palha de carnaúba, pechuri (sic), pedras de amolar,
pedras de filtrar, rebolos, penas de ema, piaçava, pontas ou chifres de
novilhas ou vacas, sabão, sal, salsaparrilha, sapatos de couro branco, sebo em
graxa, sola e vaqueta, tapioca, unhas de boi, vassouras (de carnaúba, de
piaçava, de timbó).[v]
Muitos
desses produtos que, de “exportáveis” pouco tinham (apesar da cobiça do governo
em taxar sua saída), ainda estão por aí, mormente, nas feiras do Interior.
Alguns fizeram parte de meu dia-a-dia de criança e jovem no Recife, em Maceió,
em Branquinha, AL, na praia da Maria Farinha (Paulista, PE), nos anos 1950 e 1960.
Os abanos
(o fogão da fazenda Monte Verde, em Branquinha, era de lenha; abanos de palha não podiam ser
dispensados); a cera de carnaúba, que usávamos, meu irmão Ivan e eu, para
lustrar os “jogadores” do futebol de botões, feitos com chifres de boi; os
couros dos chinelos de feira e das selas de cavalo; os doces (os que Lupicínia,
mãe de Jairo, mulher de Abílio, fazia com os araçás em Monte Verde são
inesquecíveis; os de goiaba, ainda hoje, não dispenso)...
...os espanadores de
palha, as esteiras – de piripiri, não de carnaúba – em que cheguei a dormir,
muitas vezes, estendendo-as pelo chão, em mal explicados interiores
nordestinos; a farinha, a goma de mandioca, a tapioca, que dispensam
comentários, dada a sua incontestável atualidade; o pau de jangada, que ainda
se podia encontrar (com dificuldade, embora) nas matas próximas à praia de
Maria Farinha, nos anos 1960; o sebo, para passar nas bolas de couro em
decomposição das peladas futebolísticas; o melaço (sempre preferi chamá-lo mel
de engenho), que eu comprava em pequenas porções no portão de minha casa; as
pedras de amolar, as vassouras de piaçava...
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