O TREM PARA BRANQUINHA[1]
Lincoln Braga Vilas Boas*
Neste livro identifico homens e
mulheres – parentes meus já mortos – e conto histórias vividas, quase todas, no
Nordeste canavieiro, compreendendo esse não apenas o universo rural da região,
mas também as cidades. Fiz o máximo de esforço para localizar a história
de cada pessoa no quadro maior das estruturas sociais que lhe circundavam e dos
eventos importantes (especialmente políticos) que lhes foram contemporâneos.
Também dei destaque aos encontros fortuitos ou sistemáticos dos meus familiares
com gente que já era ou se tornaria conhecida do público em geral. Dessa forma,
ao mesmo tempo em que juntava fragmentos biográficos de ancestrais, fui montando
uma história social, econômica, política e de costumes (aqui contada de forma
peculiar, reconheço) do mundo canavieiro-açucareiro nordestino, especialmente,
entre os anos 1870 e 1950 (MAIA GOMES, p. 17. Grifo do autor.)
E segue adiante com mais esclarecimentos
que certamente tem uma serventia inequívoca para o leitor: “Meus ancestrais,
como toda a gente, tinham uma história pessoal a escrever. Ao fazê-lo,
ajudaram a produzir os processos mais amplos que, ao mesmo tempo, lhe
conduziram a existência” (MAIA GOMES, p. 25. Grifo meu.) Daí por diante, suas
intenções se mesclam dos mais convergentes aportes. O primeiro possui uma
feição etnográfica, pois que toma como base a reconstituição tão fiel quanto
possível do modo de vida de homens e mulheres, em sua especificidade, seguindo
uma ordem no tempo.[3]
Por outro lado, ele inscreve sua narrativa numa
dimensão diacrônica, ou seja, ordenada no tempo, ou seja ainda, ela possui uma
validade histórica nas reconstruções. As coordenadas espaciais e temporais se
projetam na maneira como os elementos foram coligidos e relacionados uns aos
outros.[4] E
se acrescente que os fatos colhidos são apresentados em conformidade com
exigências que se propõe a um historiador, mas que se inscrevem no gênero das
memórias com os comentários pessoais e diretos aqui e ali, circunstancialmente
evocados, pois o tom é claramente memorialístico. E é a memória que permite ao
homem se comunicar com o passado. Presos a um presente puro, carentes de nossa
história, nós a temos história diminuída, reduzimos nossa identidade e perdemos
a realidade (MATOS, 2010).[5] Junta-se
a isso a intenção de Maia Gomes, quanto a localizar, de referir-se a um espaço
de vida não somente no plano da história e da biografia, mas também projetando
uma espécie de via genealógica da ascendência e relações familiares, a origem e
a procedência. Mas envereda pelo plano, às vezes, folhetinesco, enfocando as
vinganças, as brigas familiares e as assinaladas mudanças de nomes como índices
aparentes de novos direcionamentos na vida, incluindo uma evolução de poder e
mando que vai do apogeu à decadência.
A
Parte V de O trem para Branquinha, com o título de Honra, Terra e Açúcar
oferece um percurso deveras interessante dos municípios alagoanos desde a época
dos banguês, engenhos e a instalação das usinas de açúcar, passando pela vinda
da estrada de ferro que trouxe certas facilidades e progresso. O século XIX se
projeta no início do século XX, com as observações de Maia Gomes pontuando com
visível ironia a grandeza e a decadência da região. O florescimento do comércio
trazido pela estrada de ferro, a Great Western do Brasil Railway, fazendo
convergir as produções mais diversas, também incentivou a mobilidade da
população. Maia Gomes pontua que “a chegada do trem foi um acontecimento de
profundas mudanças econômicas, que acelerou dramaticamente as mudanças já em
curso”, (TB, p. 299). Mas, já se projetavam daí outras mudanças profundas no
que se refere às propriedades e seus donos. É interessante considerar as idas e
vindas no foco narrativo dessas memórias e sua forma de composição, em
especial desta parte, em que há várias intervenções do autor, trazendo o
passado ao presente, voltando ao passado e projetando o futuro como uma espécie
de maldição inescapável. Apesar de toda a aceleração dramática das mudanças, o
curso desse progresso se esbate em particularidades familiares dos
proprietários. O autor, refere que “[eram] demasiados os herdeiros das regiões
do açúcar, não apenas de Alagoas, mas do Nordeste, e a cana não sustentaria a
todos. Nem o gado” (TB, p. 304). A aproximação da decadência vem
insidiosamente. E segue o autor adiante fazendo menção ao fato de que “[os] que
ficavam – os proprietários e os usineiros – iam levando a vida, ricos, alguns,
em termos relativos, endividados, todos, muito além das possibilidades de
pagamento proporcionadas por seus negócios” (TB, p. 304. Grifos meus).
Interessante
considerar aí, em toda essa Parte V, quando o autor ao longo de seu relato
monta um painel que o envia ao ofício do pintor ou do escultor e faz lembrar as
vias de operar as lembranças e documentos coligidos que noticiam a história e a
memória. De um lado, opera per via de porre, a saber, vai pondo as cores
e os contornos onde antes não os havia sobre um branco liso a documentar; em
troca, procede também per via de levare, tirando dos fatos o embaçamento
que lhes encobre a superfície do significado neles contido. As notas a cada
parte e capítulo mostram esse percurso, vastas e esclarecedoras e com certos
envios e deduções dentro dos parâmetros da construção de uma história e
memorialística. Nos capítulos que se sucedem, os saltos são significativos,
pela via da temática. Um capítulo inteiro[6] é
consagrado a sérias desavenças familiares, pontuadas por traços de caráter que
o autor nomeia, e tem como consequência um assassinato a facadas, trocas de
tiros e outros aspectos que, no relato, indicam, ou sinalizam um dos motivos da
decadência e das perdas ao longo da história. Quem viveu na região quando havia
progresso, produção e comércio não reconhece o estado em que ficou após a
severa decadência.[7]
“Os ressentimentos de alguns [...] primos e tios [...] vinham de longe. E a
reação dos ressentidos não podia ser ignorada” (TB, p. 355-56). O autor
investiga o campo das possibilidades e derivações das desavenças. A conclusão
do capítulo é desanimadora, a referência a “uma terra devastada, onde não há
sinal de atividade econômica e boa parte da população sobrevive de
transferência de renda, sem nada produzir” (TB, p. 361). Esta e outras
observações pertinentes do autor que percorrem todo o relato, estabelecendo
relações quanto a região enfocada e as motivações sócio econômicas de
seu progresso e decadência, têm fundamentos históricos num enquadre de
repetições gradativas, mas que também enfocam mudanças que podem ser percorridas
ao longo de uma História geral do Brasil. O que Maia Gomes faz é especificar
os contornos de uma região e tornar claro um padrão de desenvolvimento, de
organização econômica/comercial, de mando e de utilização e mão de obra na
produção. O estudo de Alberto Passos Guimarães, importante para a compreensão
das relações econômicas no Brasil desde a colonização, é generalizante e evoca uma
fundamentação de análise que não considera essas especificidades regionais.
Quatro séculos de latifúndio[8]
é uma obra mestra para compreensão das relações sócio econômicas e de produção
no Brasil que podem ser uma base da qual se pode projetar especificamente para
as regiões. Numa edição, certamente revista do estudo em 1981, Guimarães acrescenta
um capítulo retrospectivo desde a primeira edição. Há uma observação
interessante a considerar:
Compreende-se, à luz da
experiência dos países desenvolvidos, que a condição básica de abrir
caminho, sem entraves, à revolução tecnológica, é a preexistência de um
desenvolvimento intensivo da agricultura por período mais ou menos longo, o
que, por sua vez, só pode ter lugar quando precedido por mudanças
estruturais profundas [...] (GUIMARÃES, 1981. Grifos meus).
A abordagem não deixa de possuir
referências básicas para a compreensão do contexto abordado por Maia Gomes, mas
a revolução tecnológica, neste caso, foi entravada pela falta de mudanças
estruturais “profundas”, mudanças efêmeras que esbarravam no desinvestimento e
na irracionalidade administrativa dos donos das propriedades e usinas. Além
disso, o declarado esforço para localizar a história, que parte de Maia
Gomes, não se reduz às pessoas, mas projeta-se no espaço dos acontecimentos, no
enquadre do lugar que eles ocupam, onde se realizam e onde estão as pessoas.
Ora,
o espaço refere a constituição de um lugar, ou de lugares “com os quais a
memória individual e a coletiva estabelecem pactos secretos porque possuem o
‘dom da profecia’. Tanto o desenterrado quanto aquele que não deixa seu lugar
de nascimento têm muito a contar [...].” (MATOS, 2010, p. 137). O passado se
projeta no presente sob a forma do discurso ou da escrita documental, da fala
ou da escrita das pessoas, que revelam acontecimentos que podem não encaixar
no conjunto, como certos depoimentos que contradizem um registro
histórico ou reforçam ou ainda relatam o que não viveram e se baseiam numa
versão oral narrada.
Trata-se, nesse caso, de uma pós-memória, “a
memória de uma geração seguinte àquela que sofreu ou protagonizou os
acontecimentos – quer dizer: a pós-memória seria a memória dos filhos sobre a
memória dos pais” (SARLO, 2007, p. 91).[9] E
não só dos filhos, mas dos netos e bisnetos e seguintes. A reconstituição tão
fiel quanto possível dos fatos e do modo de vida de homens e mulheres em sua
especificidade. O que as gerações seguintes lembram vai precisar sempre de uma
aferição por seu caráter vicário. Young (2000) se faz a indagação de
como “lembrar” o que não se viveu, e essas aspas que assinalam a palavra
lembrar apontam um uso figurado. Verdadeiramente, o que se “lembra” é o vivido
antes, por outros. “Lembrar” é, portanto, diferente de lembrar, porque
Young denomina assim o caráter vicário da lembrança.[10] Maia Gomes, neste caso, dedica-se, com
esforço a revelar suas versões mais plausíveis, procurando descartar a
verossimilhança em detrimento da realidade, procurando tornar o vicário ao
lugar de onde foi deslocando, tentando desfazer os equívocos possíveis.
Seguindo
para a Parte VI de O trem para Branquinha, o autor resolve dar uma
guinada para a História e envia a certo sabor linguístico em sua
narrativa. O itinerário percorrido sai de Alagoas para a Bahia, mais
precisamente envia a Santo Amaro pela estrada de ferro e a trilha açucareira e
passa a um ensaio léxico semântico, tornando um dos personagens um cultor do
amor da língua. Trata-se de Alípio Maia Gomes, profissional médico e jornalista.
Aí, o autor intercala também episódios históricos, trazendo à baila o
abolicionismo, as referências à Guerra de Canudos e à questão do Acre. Mas o
capítulo 26, da Parte VI, que tem por título O médico que amava os adjetivos[11]
traz uma característica original porque faz um levantamento do vocabulário
usado pelo médico, à página 374, e adiante, à página 394, uma lista de
expressões possivelmente usadas por ele num provável discurso na comemoração de
aniversário de 480 anos de uma sociedade, denominada “Perseverança e Auxilio”
que teve grande cobertura num jornal. O discurso possível do médico não é relatado
na cobertura da comemoração. Todavia, o autor faz um suposto levantamento.
Não vamos saber o que ele disse,
pois isso não nos é relatado, mas podemos imaginar. [...] O espírito da época
era esse. Anotei aqui as seguintes expressões:
Estimados leitores
Bela e imponente festa
Operosa mocidade do comércio
Benemérita Sociedade
Esforçada corporação
Correta banda musical do Corpo de polícia
Simpática Filarmônica Minerva (TB, p.
194).
Essa listagem de sete expressões é parte
das apresentadas à página 194. Seguem mais sete e continua a lista à página 395,
com mais quinze expressões. Essa inserção torna o relato divertido, mas dentro
da seriedade do que era o cultivo da época dos homens cultos e de formação
superior de onde derivava o respeito e a consideração, no que isso também
traduzia nas relações uma via de investidura de poder.
O
título da Parte VI, Do Campo para Cidade evoca a mobilidade de uma classe
cuja condição econômica possibilitava o acesso à informação e o desenvolvimento
intelectual, o engajamento político das famílias enfocadas, sobretudo os
Maia Gomes que mantinham laços os mais diversos, desde os familiares aos
comerciais e parte do relato contido nos capítulos se torna uma espécie e
crônica de costumes valiosa para o conhecimento do que vigorava à época
considerada.
Ora,
há que se pontuar que O trem para Branquinha possui lances
cinematográficos e aportes que dariam uma adaptação para várias temporadas e
uma série televisiva. Suas características de relato memorialístico, crônica de
costumes, história econômica de uma região associada à formação atávica de
populações inteiras. Homens e mulheres que deixaram sua marca e foram objeto de
estudo do autor, um trabalho de mestre, um valioso levantamento e registros
trazem sua marca indelével. Suas observações pessoais de cunho econômico,
político e social, inseridas de forma oportuna aqui e ali no relato, trazem o
traço do espectador incorrigível e familiar, com uma demonstração sui
generis de sua veia de pesquisador que sabe fazer convergir todas as
abordagens possíveis por seu conhecimento de causa. Uma análise minuciosa de
sua produção – são 566 páginas de informação, incluindo notas e material
iconográfico – demandaria um estudo longo e aprofundado. E ainda se pode
indicar como valiosa obra para consulta e esclarecimento da história de toda
uma região que, não por acaso, se situa no Nordeste e, particularmente, em
Alagoas onde tudo acontece totalmente diferente do Brasil e do mundo. Essa
particularidade é um desafio originalíssimo. As transições históricas, sociais
e de desenvolvimento perfazem o campo do nunca visto em lugar algum.
*Psicanalista,
Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Alagoas, Critico de
Artes Plásticas e Cinema.
[1] MAIA GOMES, G. O trem para
branquinha. Dos engenhos às usinas de açúcar no Nordeste Oriental:
histórias familiares (1796-1966). Recife: Cepe Editora, 2018, 564p. As menções
ao corpo do texto se darão com a indicação TB e da página. Neste ensaio, o
objeto de análise são as Partes V e VI, respectivamente intituladas Honra Terra
e Açúcar e Do Campo para a Cidade, p. 290-442, que enfocam a família Maia Gomes
e seus ramos familiares com variações de sobrenomes.
[2] STRAUCH, O. Introdução. In: MARSHALL,
A. Princípios de economia. Tratado introdutório. Os economistas.
São Paulo: Abril Cultural, 1982, v. I., p. vii.
[3] LÉVI-STRAUSS, C. História e
etnologia. In: Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p.
13-40. Trad. Beatriz Perrone Moisés.
[4] LÉVI-STRAUSS, C. Op. Cit.
[5] MATOS, O. C. F. Benjaminianas.
São Paulo: UNESP, 2010.
[6] O título do capítulo incluído na
Parte V é bastante sugestivo, o Cap. 24: E tudo terminou em trinta e uma
facadas.
[7] Essa informação adicional me foi
dada por Ricardo Maia, primo do autor, que conhece a história da região,
repassada por seus parentes mais próximos.
[8] GUIMARÃES, A. P. Quatro
séculos de latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, 5ª edição.
[9] SARLO, B. Tempo passado.
Cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte: Editora ufmg/companhia
das Letras, 2007. Trad. Rosa Freire d’Aguiar.
[10] YOUNG, J. E. At memory’s edge: after images in contemporary
art and architecture. New
York and London: Yale University Press, 2000.
[11] O assinalamento em itálico
ressalta a originalidade
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