sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O encontro do Jeca Tatu com a Nega do Cabelo Duro

Mais uma obra de Monteiro Lobato é questionada por suposto racismo: após Caçadas de Pedrinho, entidade quer barrar distribuição de Negrinha. (g1.globo.com, 25/9/2012)



GUSTAVO MAIA GOMES


Acusado de racismo, Monteiro Lobato está preocupadíssimo. Não com ele, a quem o Biotônico Fontoura sempre protegeu. Com alguns dos seus amigos compositores. Demorou um pouco, mas terminou achando quem ele queria encontrar. 

-- Babo, como era mesmo aquela sua música do carnaval de 1931? 

Embevecido com a lembrança, Lamartine Babo não se fez de rogado. 

-- Fomos eu e os Irmãos Valença, do Recife, que fizemos. 

O teu cabelo não nega, mulata,
Porque és mulata na cor,
Mas como a cor não pega, mulata,
Mulata eu quero o teu amor 

-- Pois mude a letra, imediatamente. Por muito menos, estão querendo queimar meus livros. Tenho uma sugestão salvadora. Diga se gosta: 

A tua penugem da cabeça não desmente os fatos, afrodescendente, filha de caucasiano,
Porque és afro descendente, filha de caucasiano, na pigmentação da epiderme,
Mas como a pigmentação da epiderme não é transmissível por contato direto,
Afro descendente, filha de caucasiano, eu quero o teu amor

-- “Eu quero o teu amor, pode ficar”, disse Lobato, "se você acrescentar isso:" 

Mas só depois de saber
Que você é maior de idade,
E foi ao cartório dizer
Que me ama de verdade 

Lamartine virou uma fera. 

-- Ah, Lobato, nem os versos são meus e nem eu faço música pra alguém botar nela uma merda dessas. Se quiser, fale com os Valença, quem sabe? Eu prefiro continuar morto. 

*** 

Decepcionado com esse primeiro fracasso, Monteiro Lobato encontrou David Nasser e Rubens Soares. Não só eles, também os Anjos do Inferno. Estavam todos juntos. Com certeza, já sabiam do que se tratava: 

-- Mas que prazer revê-los! É sobre aquela música que vocês dois fizeram, em 1942, e os Anjos gravaram... 

-- “É isso aí, Monteiro. Grande sucesso. Quer que a gente cante?”, falou um dos anjos. 

-- Por favor, o caso é urgente. 

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia ?
Qual é o pente que te penteia ?
Qual é o pente que te penteia ?


-- Não, isso não. Por favor, jamais. É perigoso. Vocês precisam mudar a letra. 

Para surpresa do escritor, apareceu uma voz conciliadora: 

-- “Tem razão, Lobato”, interveio David Nasser. “Veja se fica bem assim:” 

Jovem senhora distinta, elegante, respeitadora das convenções sociais
Portadora de uma cabeleira com qualidades naturais as mais recomendáveis
Qual é o pente que te penteia ?
Qual é o pente que te penteia ?
Qual é o pente que te penteia ?


-- Não pode, David, não pode. Vocês não estão entendendo nada. Já andaram falando até do meu Jeca Tatu, imaginem. 

Mas David Nasser só admitia ir até ali. “Qual é o pente que te penteia?” ele não ia tirar de jeito nenhum. 
*** 
Monteiro Lobato encerrou a conversa naquele momento. Agora, só lhe restava um encontro. E era logo com Ari Barroso, o mais ranzinza de todos. 

-- Ari, amigo. É sobre aquela sua música de 1943, Terra Seca. 

O compositor já respondeu cantando: 

Trabalha, trabalha, nego
Trabalha, trabalha, nego
Nego tá molhado de suor
As mãos do nego tá que é calo só


-- É o seguinte, Ari, não sei se você acompanha as notícias. Estão perseguindo quem fez coisas desse tipo. Negro não existe mais, no Brasil. Agora, só afro descendente... 

Ari Barroso interveio de súbito, bem ao seu estilo: 

-- Parece coisa de veado. 

-- “Não importa”, retrucou Lobato. “Você tem de mudar a letra.” 

-- Trocar, eu não troco, mas, se alguém vier me dizer que não é pra negro trabalhar, eu lhe darei uma gravação da Aquarela do Brasil. 

Brasil, meu Brasil brasileiro 
Meu mulato inzoneiro... 

Desta vez foi Monteiro Lobato quem interrompeu, sem pedir licença. 

-- Nada feito, Ari. Inzoneiro até dá pra passar, mas mulato, em hipótese nenhuma. 

-- “Nesse caso, estamos conversados”, retrucou Ari Barroso. “Vou rever os jogos do Flamengo. Agora, pra você não me achar mal agradecido, tome aqui um presente.” 

*** 
Era um velho disco de 78 rotações por minuto, da Fábrica Rozenblit, daqueles que quebravam ao cair. Continha uma música, “Operação macaco”, dos pernambucanos Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, sucesso no carnaval de 1959. 

Monteiro Lobato conseguiu um jeito de fazer sua vitrola rodar de novo e ouviu os primeiros versos: 

Dizem que em sessenta
Negro vai virar macaco
Vejam só a grande confusão
Se é verdade o que diz o profeta
Penca de banana vai custar um milhão


“Desisto!”, pensou o escritor, em cuja obra os idiotas do dia vêem racismo. E balbuciou, desesperançado: 

-- Essa aí não tem no mundo quem conserte.

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