Gustavo
Maia Gomes
(Versão preliminar de capítulo do livro em preparo Uma noite em Anhumas. Das usinas de açúcar ao predomínio urbano no Nordeste canavieiro: Histórias familiares, 1890-2001)Mario Brandão (1931) |
Um homem talentoso, sonhador, inquieto, boêmio, farrista, brigão, assassino, sofredor, resistente, suicida, preso em seus próprios grilhões. Assim foi Mario Brandão Maia Gomes (1906-43), filho de Alípio Maia Gomes (1878-1916) e Luíza Pires Guimarães Brandão (1887-1910). Nascido na Bahia, precursor do modernismo em Alagoas, autor de livros no Rio de Janeiro, jornalista nos três estados, Mario poderia ter atingido altos patamares na literatura, ou no jornalismo, ou se sustentado com os ganhos de um emprego estável, ou sido uma pessoa feliz, ou tudo isso ao mesmo tempo. Não conseguiu. Nunca chegou a escritor de renome; sua carreira de jornalista foi, repetidamente, segmentada em pequenos intervalos; só teve empregos precários; jamais alcançou felicidade duradoura. Vivia metido em confusões horríveis, das quais sempre saía pior do que entrava. De 1935 a 1938 – meros três anos, portanto – foi ferido na boca, perdeu um braço destruído a tiros, cometeu assassinato sem motivo aparente, ficou na cadeia ou no manicômio judiciário um tempo, dali fugiu duas vezes e tentou se suicidar outras tantas.
A tentação suicida
As duas tentativas de se matar que perpetrou quando estava preso não seriam as últimas. Ao longo da vida, Mario Brandão cultivou um permanente namoro com a ideia de suicídio – até ser plenamente correspondido por ela. Não exagero. No mais antigo texto dele que pude localizar, está escrito:
Avalie
só! A mulher, assim que lhe beijei, respeitosamente, a mão, antes mesmo de me
dizer qualquer coisa, suicidou-se estupidamente, seccionando a carótida com uma
segura navalhada. (...) Que fiz eu? Suicidei-me também.[i]
Se havia menção ficcional a
suicídio no seu conto de estreia, nada muito diferente se deveria esperar da
última notícia sobre o homem em carne e osso. Assim, em 14 de setembro de 1943,
vários jornais cariocas publicaram matérias como esta:
Foi
socorrido, ontem à noite, o Sr. Mário Brandão, jornalista, casado, apresentando
sério ferimento inciso no pescoço, provocado por navalha. A vítima tentou
suicidar-se em sua residência.[ii]
Era a quarta vez que Mario
tentava o suicídio; a terceira tinha acontecido sete meses antes. Seria,
também, a última, pois ele morreria poucas horas depois. A fixação com a ideia
de dar cabo da própria vida parece ter-lhe acompanhado durante quase toda a
existência. Assim, apenas duas semanas antes de se matar, publicou um conto no Diário da Noite, do Rio de Janeiro,
dedicado “à memória de minha filhinha que está no Céu”. A menina Maiby morreu,
desconheço em que circunstâncias, antes de completar dois anos. (Houve a versão
de que ele a tentou matar, assim como à mãe da pequena, mas não encontrei
nenhuma evidência disso nas muitas referências que, ao longo dos anos, a
imprensa do Rio de Janeiro fez a Mario Brandão e aos episódios rocambolescos de
sua vida.) O conto “Maiby” alude ao tempo em que seu autor ainda era um
adolescente. Começa assim:
Naquele
ano, 1922, quando fui passar as férias no engenho, levei na cabeça a ideia de
enforcar-me na árvore mais bela que eu tinha visto. (...) Seria melhor que um
tiro na cabeça, melhor que uma facada no coração, melhor que o fogo, a água, os
venenos e todos os numerosos e desaconselháveis recursos que o bicho homem
lança mão contra esse fastio de viver.[iii]
Tais impulsos suicidas, embora
dissimulados em composições literárias, são evidências de que o escritor
nascido na Bahia foi um homem atormentado. Isso pode ter tido muito a ver com
duas ocorrências trágicas de sua infância: a perda da mãe, aos quatro anos, e
do pai, aos dez. Foi com essa tenra idade – e em circunstâncias, por si sós,
desalentadoras – que ele precisou enfrentar a vida. Não conheço os detalhes de
como o fez; as linhas gerais, sim. Em 1916, quando ficou órfão também do pai,
Mario tinha cinco irmãos: Elmano (o único, além dele, filho de Luíza), Inah,
Yara, Francisco e Luiz (filhos de Elisette Cardozo, a segunda mulher de
Alípio). É provável que as seis crianças morassem na mesma casa. Surpreenderia
pouco saber que Mario e Elmano, naquele momento, se tivessem sentido
desamparados. Não eram filhos de Elisette. O pai não lhes deixara na Bahia um
parente sequer com quem pudessem contar. (Em Alagoas, sim, mas eram mundos
distantes.) Os Brandão ainda deviam ser importantes em Santo Amaro, porém o avô
materno dos dois meninos, Rodrigo (1865-1911), pessoa de maior destaque da
família, havia morrido há cinco anos. Desconheço se os seus descendentes se
interessavam pelos filhos de Alípio e Luíza.[iv]
Sim, Mario Brandão Maia Gomes
teve um começo de vida difícil. Dali para frente, entretanto, o que ele viria a
ser dependeria muito de sua fortaleza interior e, claro, do suporte que pudesse
receber da madrasta, dos irmãos (todos mais novos do que ele), de outros
parentes, talvez. Não sei o grau em que esse apoio existiu, mas posso constatar
pela sua história subsequente que aquele menino de dez anos nunca se encontrou
na vida. Tentar, ele tentou. Trocando de cidades, por exemplo. Aos vinte anos
(1926), era estudante em Maceió, aonde teria ido em busca do amparo familiar
que, talvez, lhe faltasse na Bahia. (São hipóteses, claro, não tenho como
afirmar inequivocamente quais eram sua real situação e intenções.) Se foi isso
mesmo, tudo indica que não encontrou o que procurava. Tentou, em seguida (1929
ou 1930), o Rio de Janeiro. Passados apenas alguns anos, retornou à Bahia (1932
ou 1933). Em 1935, estava de novo morando no Rio; pouco depois (1936), em
Maceió, tendo passado, entrementes, algum tempo na sua cidade natal, Santo
Amaro. Em cada um desses lugares, foi estudante (quando jovem) ou jornalista,
mas, sobretudo, foi boêmio e brigão – e sofreu as consequências que deveria
esperar, em ferimentos e, após cometer assassinato, em meses de reclusão. Se
mudar de cidade era uma estratégia para se livrar do desassossego, não parecia
estar funcionando. Apesar disso, ele continuou tentando.[v]
Saído do asilo judicial, na
verdade, uma prisão, para onde foi mandado após assassinar um motorista em
Maceió (1937), voltou para o Rio em 1942. Desta feita, trabalhou como redator
avulso do Diário da Noite, jornal em
que publicou matérias sobre assuntos variados e se engajou em campanhas cívicas que incluíam leilões de livros
e doações de metais e de aviões, a fim de ajudar na preparação da guerra em que
o Brasil estava na iminência de entrar. Também fazia palestras. Sobre o quê? Em
edição de maio daquele ano, deparei-me com uma das primeiras notícias relativas
a ele, nessa sua nova e derradeira fase carioca: “Literatura psicanalítica:
Conferência do jornalista Mario Brandão”.
Realizou-se
hoje (30/5/1942) no salão nobre do Liceu Literário Português, uma conferência
do jornalista alagoano (sic) Mario Brandão, a qual foi muito concorrida,
estando presentes nomes de valor da nossa literatura e também estudiosos em
questões de psicanálise. O conferencista intitulou seu trabalho “Literatura
psicanalítica”, criando um personagem para mostrar a influência freudiana na
literatura.[vi]
Pobre Mario: órfão de pai e
mãe, com um braço a menos, a boca deformada por um tiro e já trazendo no
currículo um assassinato e duas tentativas de suicídio, ele era a própria
encarnação de um personagem freudiano. Sabia do que estava falando.
Reforçando a memória
Embora as lembranças dos
descendentes baianos do meu tio-avô Alípio Maia Gomes estejam bastante diluídas
(dos com quem eu falei ou me correspondi por meio eletrônico, somente uma das
netas, Elisa, filha de Yara, tinha informações – rarefeitas, porém – sobre ele
e sobre Mario Brandão Maia Gomes), consegui uma prova indiscutível de que o segundo
era filho do primeiro. Foi, quase, um golpe de sorte: num artigo assinado por
Mario e publicado no Diário da Noite do
Rio de Janeiro, em 1942, assim se expressou o jornalista:
O
que o Dr. Goebbels ainda não chegou a afirmar a respeito das virtudes do nazismo,
Furier (sic) proclamou a propósito das sombras eternas nas quais
espontaneamente mergulhou Catão, inimigo de Cartago, depois de reler um livro
de Platão. Furier (sic) me fora apresentado pelo meu próprio pai,
o Dr. Alipio Maia Gomes, em sua tese de doutoramento defendida em 1904 na
Faculdade de Medicina da velha Bahia, intitulada “O Espiritismo em face da
Medicina”.[vii]
Posteriormente a esse achado,
Elisa Cardozo Brandão (apesar do sobrenome, ela descende do casamento de Alípio
com Elisette Cardozo – o nome Brandão vem de seu pai, como fica claro da
citação a seguir) me enviou esta mensagem (intermediada pelo neto, Danilo
Brandão). Copio com as edições imprescindíveis:
Os
filhos [do primeiro casamento de Alípio Maia Gomes] se chamavam Elmano e Mario
Brandão. Ele [Mario] era escritor e meu pai, João Falcão Brandão Júnior, o “descobriu”
no Rio de Janeiro boêmio, esquivando-se, para não ser reconhecido. Ele não
usava o sobrenome Maia Gomes. Tinha lançado um livro com o título Freud e o meu personagem Emerenciano.[viii]
O pai de Elisa avistou ou
encontrou Mario Brandão entre novembro de 1942 e os primeiros meses de 1943,
quando o livro a que ela se refere foi lançado, no Rio de Janeiro. Como
confirmação adicional, se necessária fosse, à tese da filiação de Mario Brandão
Maia Gomes, no mesmo artigo citado anteriormente, ele também escreveu que “ontem,
na Urca, na casa de um neto e afilhado de Ferreira Viana, meu primo e amigo Sr.
Paulo José Pires Brandão...” Primo por parte de mãe, cujo nome completo era
Luíza Pires Guimarães Brandão. Por outro lado, sabemos, sim, desde O trem para Branquinha, que Alípio Maia
Gomes tratou, em sua tese de médico, dos “fenômenos preternaturais diante da
arte que hoje professo”. O filho Mario, anos depois, escreveria um conto
intitulado “Espiritismo”, que incluiu no seu primeiro livro e numa antologia de
contos alagoanos.[ix]
Também os anos de nascimento e
morte de Mario Brandão eu os descobri pelos jornais. O da morte (1943), como já
foi citado, teve ampla divulgação na imprensa. Quanto ao de nascimento,
veja-se, por exemplo, em A Noite (RJ)
de 8/11/1935:
Madrugada
de sangue: Um guarda civil prostra um jovem, a tiros, na Praça Paris. (...) O
ferido chama-se Mario Brandão, é solteiro, conta
29 anos e trabalha num pequeno semanário que aqui se publica.[x]
Ou no Diário de Notícias (RJ) de 2/2/1943:
Mario
Brandão, casado, de 37 anos, morador
à Avenida Mem de Sá, tentou contra a vida ingerindo certa quantidade de um
tóxico. Socorrido por uma ambulância, foi conduzido para o posto central da
assistência, sendo posto fora de perigo.[xi]
Essa notícia se refere à
terceira tentativa de suicídio de Mario Brandão, não à última. Nos dois casos
referidos nas citações, fazendo as contas, chegamos a 1906 como ano de seu
nascimento.
Primeiras andanças
Desconheço quando, exatamente,
o filho de Alípio e Luíza saiu de Santo Amaro, Bahia, e bateu com os costados
em Maceió. De positivo, tenho a informação de que em 1926 ele estava na capital
alagoana. Pode ter ido em busca da proteção familiar, como sugeri acima. Se a encontrou,
é difícil saber. Mas, mesmo que o amparo recebido tenha sido inferior ao
esperado, ele logo descobriria que Maceió (mais do que Santo Amaro, embora
menos, suponho, do que Salvador) tinha certos atrativos para um jovem com
propensões literárias como era, certamente, o seu caso.
Em 1919, fora fundada a
Academia Alagoana de Letras; em algum dos primeiros 1920, criou-se a Academia
dos Dez Unidos; em meados dessa década, já existia o Centro de Estudantes de
Alagoas, entidade com fins (também?) literários a que Mario Brandão se
associou, por pouco tempo. Ele estava entre os dissidentes do Centro responsáveis
pela criação, em junho de 1926, do Cenáculo Alagoano de Letras, entidade
inspirada na Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922) e no Congresso Regionalista
do Recife (fevereiro de 1926), que pretendia se opor ao “conservadorismo” da
Academia Alagoana de Letras.
Compunham o grupo fundador A.
S. Mendonça Junior, Zeferino Lavanère Machado, José Lima, Arnaldo Lopes de
Farias, José Salgado Bastos e Emilio Eliseu de Maya, além do próprio Mário
Brandão Maia Gomes (que, inclusive, participou da primeira diretoria, como
secretário). Logo depois, entraram Valdemar Cavalcanti, Yolanda Mendonça, Salustiano
Euzébio de Araújo Barros e outros. O Cenáculo foi criado na casa do irmão de
Alípio e tio de Mario, José Gomes de Oliveira Maia, nome de batismo de José
Maia Gomes (como ele, posteriormente, veio a se identificar), na antiga Rua das
Verduras, atual Pontes de Miranda, em Maceió. Teria o coronel cedido sua casa a
pedido do sobrinho? Possivelmente, sim, embora Emílio de Maya, filho de Alfredo
de Maya, um amigo da família Maia Gomes a quem fiz várias referências em O trem para Branquinha, também possa ter
tido um papel importante nesse episódio.[xii]
Em 1927, mais uma associação, o
Grêmio Guimarães Passos, entrou em cena. Élcio de Gusmão Verçosa relaciona essa
onda de iniciativas literárias à população de gente formada (bacharéis,
sobretudo) que havia em Maceió, à época: “De fato, de 1880 até 1922, só a
Faculdade de Direito do Recife diplomou 342 alagoanos”. (Meu avô, Nominando
Maia Gomes, estava entre eles; não deve ter sido o único parente.) Além desses,
havia, também, “os médicos formados na Bahia e alguns outros doutores
diplomados no Rio de Janeiro e em outros centros urbanos brasileiros de maior
destaque”. Nessas condições, conclui Verçosa, “o número de poetas crescia à
medida que aumentava [a quantidade] de bacharéis que circulavam em Maceió”. E,
no mesmo sentido, Tadeu Rocha, citado por Verçosa: “se o bacharel Júlio Auto
fazia versos, porque era mesmo poeta, muitos outros bachareis escreviam sonetos
porque eram advogados, juízes e funcionários públicos”. O que tinha sido
modismo acabou virando obrigação: “não se concebia um bom bacharel que não
cometesse alguns versos”.[xiii]
Tudo isso fazia parte de um
processo maior, já em curso, que estava levando aquela sociedade, na origem,
quase exclusivamente, canavieiro-açucareira, a fazer a travessia “da usina ao
predomínio urbano”. Neste novo mundo, cada vez mais, o bacharel – homem de
formação superior, morador da cidade, muitas vezes, detentor de um cargo de
mando no governo ou de um bom emprego público – iria ter ascensão sobre seus
pais, avós e irmãos plantadores de cana e mesmo fabricantes de açúcar. Ainda
não na Maceió dos anos 1920, certamente, mas, em breve, sim, também ali. De
qualquer forma, era para tornar inequívoca sua superioridade intelectual sobre
os que ainda viviam no campo, ou tinham empregos subalternos nas cidades, que
os bacharéis faziam versos. E também porque gostavam, sem dúvida. Nisso aí,
ninguém podia competir com eles. As mocinhas suspiravam ao ouvir seus amores
secretos declamarem sonetos parnasianos ou poemas modernistas: casar com um doutor
passou a ser o sonho de muitas delas. Esse ambiente contagiou, inclusive, os
estudantes secundaristas, como Mario Brandão e vários de seus companheiros. Raras
vezes antes, em Maceió ou no mundo, o poder da palavra havia sido tão grande.
Nem a literatura tão valorizada.
Mas, o Cenáculo Alagoano de
Letras teve vida curta. Promoveu, em 1928, uma Festa da Arte Nova (espécie de
réplica, porém, limitada a um dia, da Semana de Arte Moderna de São Paulo),
ocasião em que “Mario Brandão leu um conto regional que muito agradou” e foi
só. De acordo com o seu presidente, em depoimento prestado cinquenta anos
depois (reproduzido, recentemente, no blog História de Alagoas), o grupo de
fundadores logo se dispersou. “Mário
Brandão, o grande conteur machadiano
de Almas do Outro Mundo e Freud e o meu personagem Emerenciano
[livros que somente seriam publicados alguns anos à frente] foi morar no Rio de
Janeiro; Zeferino Lavenère Machado [outro que viria a se ligar ao lado paterno
da família de Mario Brandão, pelo casamento de uma de suas filhas com Alfredo
José, filho de Manuel Maia Gomes, neto de José Maia Gomes] matriculou-se na
Faculdade de Direito de Recife...” Etc., etc., etc.[xiv]
Rio de Janeiro e Bahia
Não me parece que, em Maceió ou
em qualquer outro lugar, Mario Brandão tenha concluído um curso universitário
ou aprendido algum ofício que lhe pudesse ser útil, profissionalmente. Sendo
assim, quando ele se mudou, pela primeira vez, para o Rio de Janeiro, em 1929
ou 1930, sua única habilidade era saber escrever. (Não sei como aprendera isso.
Lendo muito, provavelmente.) Tinha, portanto, de arranjar emprego onde possuir
essa capacidade fosse importante. Virou jornalista (a exemplo de tantos
marios-brandão de antes e depois dele, até os anos 1950 ou mesmo 1960), embora
não imediatamente: em 1931, ele trabalhava no setor de publicidade da Light, a
empresa gigante (ainda existente) que, no início do século XX, fazia quase tudo
e mais alguma coisa na capital federal, cuidando da geração e distribuição da
energia elétrica, do fornecimento de gás, do transporte público, da telefonia e
da iluminação de ruas e praças.[xv]
Nessa
época, o jovem Mario devia fazer serviços internos, pois seu nome raríssimamente
aparece em matérias assinadas. Alguma atividade política, entretanto, ele
desenvolveu, como membro da Cruzada Nacionalista O Brasil pelo Brasil,
associação “operária” criada em abril de 1931, aproveitando o clima político suscitado
pelo movimento revolucionário do ano anterior. Segundo o CPDOC (Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação
Getúlio Vargas), a Cruzada promovia a discussão de temas definidos como
“questões nacionais” (por exemplo, a Lei dos Dois Terços, de 12/12/1930, que obrigava
toda empresa nacional a ter entre seus empregados essa proporção de brasileiros
natos),
além de prestar serviços assistenciais aos associados. Uma notícia de dezembro
de 1931 identifica Mario Brandão como “diretor da Folha Nacionalista, órgão oficial daquela agremiação”. Significaria
isso que ele já havia deixado a Light? Não possuo evidências conclusivas a
respeito.[xvi]
Mesmo se, em 1931 e 1932, não
mais estivesse vinculado à empresa de energia, Mario Brandão continuou morando
no Rio de Janeiro. Em janeiro, pronunciou palestra – “O Brasil a olhos nus” –
na sede da Cruzada Nacionalista. Falou sobre “as diversas questões que dizem
respeito à nossa vida política, econômica e social no momento”. Foi
apresentado, pelo Diário de Notícias
(6/1/1932), em matéria anterior ao evento, como “nosso confrade da imprensa” e
um dos “mais festejados escritores regionalistas da nova geração de
intelectuais”. Poucos dias depois, dizia o jornal A Noite (12/1/1932) que, na conferência realizada, “Mario Brandão
fixou aspectos e descreveu costumes do interior do Brasil e dissertou sobre
nossa gente e a grandeza de nossa terra”. Para o mesmo jornal, o conferencista
era “um dos nossos mais brilhantes escritores regionalistas”. Em abril,
“comemorando a passagem da data de sua fundação”, a Cruzada Nacionalista se
reuniu em sua sede social. Havia representantes do Sindicato dos Ferroviários,
da União do Norte e do Centro dos Empregados do Cais do Porto. Mario Brandão sentou-se
à mesa, como um dos que dirigiram os trabalhos.[xvii]
Contudo, nem na Light, nem na
Cruzada Nacionalista, o jornalista permaneceu por muito tempo. Em 1933, ele já
trabalhava para o Diário da Bahia e O Imparcial,
de Salvador. É provável que o emprego em seu estado natal (ou ele poderia ser,
apenas, um repórter a vender matérias avulsas para os jornais, sem manter
vínculos mais estáveis com os mesmos?) lhe tenha sido arranjado devido a
conexões familiares dos Brandão que, como disse, eram ou haviam sido uma
família importante na Bahia. (Seu avô, Rodrigo Brandão, foi secretário de
Fazenda todo-poderoso de Luís Viana, no período 1896-1900). Em depoimento
posterior, ao qual faço referência mais adiante, Mario revelou uma de suas
atividades nesse tempo: era “repórter marítimo”.[xviii]
Fora espreitar navios e escrever
sobre eles, o que mais fazia Mario Brandão nesse tempo, em Salvador? Entregava-se
à boemia, como, anos à frente, iria recordar um seu amigo à época, Ramayana
Chevalier:
A noite foi o nosso teto. As
escusas ladeiras baianas o nosso palco. O ruído dos mecanismos tipográficos o
nosso aplauso. Libações para esquecer da burrice mesológica. E o tédio, irmão
da saciedade espiritual e da precariedade física, que marca o caminho dos que
não têm caminho.[xix]
Na sua permanente busca em
novas cidades de algo que, se não encontrasse na própria cabeça, não acharia em
lugar nenhum, em abril de 1935, ele estava de volta ao Rio de Janeiro, outra
vez, com um emprego precário. Sei disso porque, quando ele se envolve em uma
briga séria e é agredido por um policial na Praça Paris, seu nome aparece no
noticiário e o autor da matéria o identifica como “redator do semanário Pamphleto”. Uma publicação inexpressiva,
onde dificilmente haveria empregos bons. Retomo este enredo mais adiante, pois,
em 1931, houve um acontecimento importante e não traumático na vida do nosso
personagem.
Almas do outro mundo, o livro
Inegavelmente, o ponto alto da
truncada carreira literária de Mario Brandão foi a publicação, em 1931, do
livro Almas do outro mundo, que ele
subintitulou “Contos típicos regionais”.
São dez contos, distribuídos em 111 páginas: “Almas do outro mundo”,
“Espiritismo”, “Engole cobra”, “Timidez”, “Imaginação”, “Conto de vigário”,
“Noite de São João”, “O tipógrafo sonhador”, “O hóspede calado” e “História de
brinquedo”. O livro teve uma tiragem limitada (eu, por exemplo, embora o tenha
procurado, jamais pude vê-lo), inteiramente vendida no Rio de Janeiro. Nenhum
exemplar chegou ao “Norte” – a expressão incluía o que hoje chamamos Nordeste
–, a se acreditar no que disse O Jornal
em 9/11/1935, mas houve a notícia de que dele sairia uma segunda edição. Não
saiu. A primeira foi resenhada, com acolhida favorável, pelo menos, em Fon Fon, Beira Mar, A Noite, Jornal do Brasil, Diário de Notícias e O Jornal,
todos do Rio de Janeiro.[xx]
A revista Fon Fon escreveu: “Mario Brandão é da Bahia, aparecendo pela
primeira vez seu nome em livro. O gênero explorado requer talento, pois, caso
contrário, a leitura torna-se monótona. O autor consegue interessar o que, sem
dúvida, é uma grande vitória para um estreante”. O crítico da Beira Mar observou: “se eu fosse
procurar no passado um nome parente literário do Sr. Mario Brandão, não
vacilaria em citar o de Artur Azevedo. O Sr. Mario Brandão é assim natural,
humorístico e, sobretudo, profundamente humano”. Na opinião de A Noite, “Almas do outro mundo é um livro que se
pode ler de uma só vez. Desde as suas primeiras páginas, agrada, a leitura
atrai pelo seu conteúdo, pelo inesperado de seus detalhes”. O Jornal do Brasil disse: “Almas do outro mundo é formado por dez
histórias que a gente lê com prazer, gostando do que diz o autor e apreciando a
sua prosa fácil e escorreita”. Para o Diário
de Notícias, “Mario Brandão mostra-se, efetivamente, um escritor de grandes
possibilidades. Além do estilo, que se recomenda pela leveza e pelo pitoresco,
é dono de uma inteligência ágil e aguda”.[xxi]
Porém a crítica mais importante
apareceu em O Jornal, sendo assinada
por Tristão de Athayde, já então um intelectual de grande prestígio. Disse ele:
[Mario Brandão é um] nome
inteiramente desconhecido para mim, o que sempre é um prazer raro, quando se
descobre alguma coisa de valor literário. E esses contos têm certo valor. Não é
o mesmo [valor que o dos contos] do Sr. Marques Rebello [livro resenhado no
mesmo dia e na mesma coluna Sinais mantida por Athayde]. O autor [Mario] desses
contos não vive neles. Não deixou neles emoção alguma. Não parece ser moço ou,
se o é, tem uma alma precocemente envelhecida. Cético, sarcástico, seco, não se
entrega nunca, ao contrário do autor [Marques Rebello] de Oscarina.[xxii]
“Alma precocemente
envelhecida”? Talvez, sim. Mas, sobretudo, uma personalidade às voltas com
sofrimentos passados jamais resolvidos. Não deveríamos pedir a Tristão de
Athayde que descobrisse isso apenas lendo a prosa de um autor estreante, tanto
mais porque os episódios tristemente espetaculares da vida de Mario Brandão
ainda estavam por acontecer. Mas, as pistas de seus tormentos ele já as
colocara no livro que tantas resenhas mereceu. – Pistas? – Sim. Por exemplo, no
conto “Almas do outro mundo”, que integrou o livro de mesmo nome, como seu
primeiro capítulo. Publicado, anteriormente (ou uma versão resumida dele) na
revista Fon Fon, em 1930, ele é,
nitidamente, composto por duas partes independentes. Deixo a primeira de lado e
copio a segunda repetindo, inclusive, um trecho que já citei linhas acima. O
autor dialoga, na imaginação, com uma possível namorada, ou esposa, que,
entretanto, não está ao seu lado, no momento em que ele escreve.
Chi! Meia noite! Você já deve
estar morrendo de sono, meu amor! Vou fechar o parêntese.
Não sei mais em que pé ficou o
que me sucedeu na semana passada. Sim! Eu estava no segundo andar do hotel.
Tinha ido assistir à “première”
de uma companhia francesa, coisa muito boa. Depois do primeiro ato, os amigos
me levaram aos bastidores e ali fui apresentado à atriz Giovana de Genova, na
qualidade de crítico teatral. De modo que ficamos amigos.
Voltei cedo ao hotel e subi
para o quarto, número 13. Mudei de roupa. Estirei-me na cama. Fiquei com o
cérebro a ruminar as sensações do dia. Daí a pouco, ouço umas pancadinhas na
porta do quarto.
Nunca me dei bem com o número
13! Este número sempre me persegue.
O espiritismo fala-nos acerca
de uma certa classe de duendes dados a pancadinhas. E a própria Igreja não nega
isso. Segundo li algures, havia até nos seus antigos rituais uma oração
destinada a afugentar os espíritos que se manifestam por meio de pancadinhas:
“Afugentai, Senhor, todos os espíritos malignos, todos os fantasmas, todos os
espíritos que batem”. (Spiritum
percucientum).
As pancadinhas repetiram-se
mais alto. Fiquei assombrado. Levantei-me. Botei a pistola no bolso. Abri a
porta.
Era o porteiro do hotel que me
trazia um bilhete urgente. Giovana pedia que eu fosse ter com ela na Pensão
Internacional, quarto número 13. Dizia tratar-se de assunto de grande
importância. E se eu não chegasse dentro de um quarto de hora, minha vida
estaria em perigo. Na porta do hotel havia um automóvel à minha disposição.
Tudo isso era pavoroso,
inexplicável, impossível! Tive vontade de mandar o porteiro para o inferno com
o bilhete de Giovana, com o diabo que o carregasse.
Mas a curiosidade, que tem mãos
de ferro, não me deixou esbravejar e me arrastou até o quarto da jovem atriz, a
tal que me apresentaram no teatro.
Já lhe pedi que não tivesse
ciúme. Pense no que me aconteceu e deixe de ser afobadinha.
Avalie só! A mulher, assim que
lhe beijei, respeitosamente, a mão, suicidou-se estupidamente, seccionando a
carótida com uma segura navalhada. O pior, entretanto, é que ela não havia
deixado a mínima declaração. Era preciso que eu fugisse dali sem demora. Do
contrário, seria acusado de assassínio. Mas não pude fugir. Um hóspede do
quarto contíguo botou a boca no mundo a berrar loucamente: “Socorro! Socorro! O
homem matou a mulher!”
De repente, era uma multidão
que gritava: “Lincha este monstro!”
Fiquei numa situação horrorosa.
Tentei explicar o fato. Implorei que tivessem calma. Pedi, de joelhos, que
fossem mais prudentes, porque eu estava inocente. Mas tudo foi em vão. As feras
avançavam, as mãos crispadas, jurando esganar-me.
Que teria feito você nestas
circunstâncias?
Que fiz eu?
Suicidei-me também. Atirei na
cabeça e me joguei pela janela fora a fim de evitar que os loucos me comessem
cru.
Não tenha medo! Palavra de
honra que não sou defunto. Eu não cheguei a morrer. O que me sucedeu foi o
seguinte: caí da cama, sonhando, naturalmente porque não havia rezado para as
almas do purgatório, que ontem vieram puxar meus cabelos, meu amor...[xxiii]
O suicídio – objeto de desejo, temor,
planejamento, inspiração – sempre esteve presente em Mario Brandão Maia Gomes,
como se, a cada momento, ele precisasse se matar para saber que estava vivo.
Os anos fatídicos
Em abril de 1931, Mario Brandão
publicou Almas do outro mundo; no
final desse mesmo ano e em janeiro do ano seguinte, tenho notícias de suas
atividades na Cruzada Nacionalista. Provavelmente, perdera ou se desligara de
seu emprego na Light. Sobrevivia como diretor da Folha Nacionalista, órgão da Cruzada, o que não devia significar
muita coisa, nem em termos de remuneração, nem de segurança. Talvez por isso,
em 1932 ou em 1933, ele resolveu deixar o Rio de Janeiro e voltar para a Bahia
– Salvador, especificamente. Estando lá, integrou, como jornalista, a comitiva
da viagem do presidente Getúlio Vargas ao Norte do país (Norte e Nordeste,
diríamos hoje). Em 1934, notícia publicada no Diário de Pernambuco dá conta de
uma visita à redação daquele periódico de
Afonso Ligorio Costa e Mario Brandão, “que se acham [no Recife] a serviço da Grande Companhia Lírica
Italiana, que estreará proximamente nesta capital.” Mario é descrito
como “nosso colega da imprensa baiana e nome de relevo nos círculos literários
do sul do país”. Ele estava, portanto, ainda trabalhando na Bahia.[xxiv]
Por algum motivo, nesse mesmo
ano (1934), ou no seguinte, o filho de Alípio resolveu voltar para a capital
federal. Em retrospecto, podemos ver que não foi uma decisão feliz. Com efeito,
os anos fatídicos de Mario Brandão iriam ter início em 1935. E, a rigor, só
iriam terminar com sua morte, ocorrida oito anos depois. Nos dias 8 e 9 de
novembro daquele ano, os jornais traziam a notícia de um acontecimento policial
relevante:
Madrugada de sangue: Um guarda
civil prostra um jovem, na Praça Paris. (...) O ferido chama-se Mario Brandão,
é solteiro, conta 29 anos, e trabalha num pequeno semanário que aqui se
publica.[xxv]
Outros jornais também se
ocuparam do incidente. “Quando deixava a Caverna Beira Mar Casino, discutiu por
questões de despesa e foi baleado na boca” (A
Manhã, RJ, 8/11/1935). “Um crime brutal. Verificou-se o delito na Praça
Paris. A vítima foi o jornalista Mario Brandão” (Jornal Pequeno, Recife, 9/11/1935). “Selvagem atitude de um
policial: Abatido com um tiro na boca um frequentador do Cabaré Caverna” (Diário de Notícias, RJ, 9/11/1935).
“Alvejado por um guarda civil: Cena de sangue na Praça Paris” (O Jornal, 9/11/1935). “Cena de sangue no
Cabaré Caverna: O guarda civil 362 feriu, gravemente, a bala um homem
embriagado” (Jornal do Brasil,
9/11/1935). Pelo visto, Mario Brandão trocara as ladeiras da Bahia pelas boates
do Rio, mas continuava a ter a noite como teto.
O jornalista ferido expôs o que
tinha havido, dando a sua versão dos acontecimentos:
Eu me achava na [boate]
“Caverna” na companhia de três mulheres minhas conhecidas, quando, com sono,
deliberei ir repousar. Chamei o garçom, paguei a despesa e dispus-me à
retirada. Mas, ao sair, o garçom acercou-se e disse que eu não pagara a
despesa. Protestei e daí originou-se a discussão.[xxvi]
O pior, entretanto, aconteceria
nos momentos seguintes, ainda segundo a mesma versão:
Empurraram-me porta a fora,
ferindo-me ao bater com a cabeça no meio fio. Nessa ocasião, o guarda civil n.
362 aproximou-se e pôs-se a me insultar. Depois, pegando-me pelo paletó,
esbofeteou-me. Reagi energicamente. Foi quando ele, sacando de um revólver,
alvejou-me.[xxvii]
O Diário de Notícias criticou a atitude do policial: “chegados à rua
[Mario e o homem que fazia a segurança da boate] aos pontapés e bofetões, ali,
Altivo (sic) [o guarda] saca de seu revólver, detonando-o contra o boêmio.
Revelava assim a espécie de policiais que servem às casas daquele gênero em
nossa capital.” Também para o Jornal do
Brasil (9/11/1935), o episódio
seria “mais um crime praticado por um indivíduo que a nação paga, justamente,
para manter a ordem”. Outras versões do mesmo episódio, entretanto, sem deixar
de criticar o policial, ofereceram uma descrição menos favorável ao jornalista.
O Jornal (9/11/1935) disse que Mario
Brandão “encontrando-se bastante embriagado e provocando incidentes no interior
da ‘Caverna’, a direção [da boate] deliberou afastá-lo da casa”, enquanto o Jornal do Commercio assim relatou o
mesmo acontecimento:
Na madrugada de ontem, em
estado de embriaguez alcoólica, Mario Brandão, redator do Pamphleto (...) foi obrigado, violentamente, a retirar-se do Cabaré
Cinema (sic), situado na Praça Paris, em meio de tumulto. (...) Não atendendo
ao estado deplorável em que se achava a vítima que, alterada pelo álcool, a
todos ameaçava e provocava, o guarda Altino (sic), também ameaçado por Mario,
antes de outras providências, sacou da pistola e fez contra ele dois disparos.[xxviii]
O incidente deixou sequelas na
boca da vítima, deformando-a levemente. Algum tempo depois, ele estaria em
Santo Amaro, Bahia, aonde pode ter ido para se refazer dos ferimentos ou
tentar, novamente, um emprego em jornais de sua terra natal. Mais uma mudança
de endereço que não resolveria seus problemas. Com efeito, já em julho do ano
seguinte aos acontecimentos da boate Caverna, os jornais novamente iriam se
ocupar com destaque de Mario Brandão. O Diário
de Pernambuco, por exemplo:
Alvejado
a tiros.
O jornalista Mario Brandão foi alvejado a tiros, no braço esquerdo, pelo
inspetor de veículos Rubem Pinheiro, no arraial de Berimbau, no município de
Santo Amaro [BA]. O Sr. Mario Brandão amputou o braço.[xxix]
(“Teve o braço amputado”
pareceria mais correto.) Poucos dias adiante, A Noite, do Rio de Janeiro, daria uma versão mais completa do
episódio. O título e subtítulo da matéria são sintomáticos da fama que, àquela
altura, na imprensa carioca, o filho de Alípio já tinha: “Estava escrito que
seria um policial... O jornalista Mario Brandão, já baleado por um guarda nesta
capital, foi alvejado por um inspetor de tráfego na Bahia. – Perdeu o braço
esquerdo”. E prosseguia, fazendo um relato dos acontecimentos que haviam levado
àquele desfecho:[xxx]
No dia de São Pedro, Mario
Brandão, acompanhado de seu irmão Francisco Maria (sic) [o correto seria
Francisco Maia], do inspetor de veículos Rubens Pinheiro Costa e de outras
pessoas, regressava do arraial de Berimbau. O grupo voltava de uma festa e
estava bastante alcoolizado. Em caminho, estabeleceu-se forte discussão entre
Francisco e Rubens, no decorrer da qual este esbofeteou o primeiro, fugindo a
seguir.
Ontem, casualmente, Mario
Brandão encontrou, na porta de uma venda, o esbofeteador de seu irmão. Sacando
de uma pistola, avançou contra ele e o alvejou, errando, porém, o alvo.
Rapidamente, Rubens Pinheiro revidou, desferindo contra o agressor dois tiros
que o atingiram no braço esquerdo. (...) O jornalista, que teve o braço
esquerdo ontem mesmo amputado, encontrava-se na Bahia há vários meses.[xxxi]
Dessa vez, não consegui
encontrar uma versão da vítima (“vítima provocadora”, convenhamos) para os acontecimentos.
A amputação do braço, segundo matéria vinda da Bahia e publicada em O Jornal do Rio de Janeiro, foi uma
decisão tomada pelos médicos que atenderam o jornalista “a fim de evitar a
gangrena”.[xxxii]
Três meses depois de perder um
braço na Bahia, Mario Brandão já tinha, de novo, trocado de cidade. Em 18 de
outubro do mesmo ano, há uma notícia com origem em Maceió dando conta de uma “excursão
do secretariado da Fazenda à zona do [Rio] São Francisco”. O secretário “da
Fazenda e da Produção” de Alagoas era José de Castro Azevedo; a comitiva,
composta “dos senhores Ildefonso Lopes, diretor da Diretoria de Agricultura;
Benon Maia Gomes, Inspetor de Plantas Têxteis; Enock Macedo, diretor da Colônia
Agrícola de Arapiraca; Mario Brandão e Américo Mello”. Benon Maia Gomes era
filho de José Maia Gomes e, portanto, primo legítimo de Mario Brandão Maia
Gomes. Pelo visto, mais uma vez, o jornalista brigão se aproximava da família
de seu pai. Porém, logo um novo episódio policial iria recolocar o baiano no
noticiário.[xxxiii]
O
jornalista Mario Brandão assassinou o chofer Perreque em Maceió. A vítima deixa esposa e filhos.
O criminoso achava-se aqui há meses, vindo do Rio, onde militava no jornalismo.[xxxiv]
No incidente, em si, não houve
discussão ou briga, mas, pouco antes, o jornalista havia insultado “um
companheiro de classe da vítima e, encontrando mais adiante o chofer Perreque,
disparou contra ele cinco vezes a arma que conduzia”. Em seguida, procurou evadir-se
sendo, entretanto, preso no Hotel Pimenta, localizado a poucos metros da cena
do crime. Era onde ele residia. No prosseguimento, a reportagem em que me
baseio neste ponto refez um pouco da história recente do Mario Brandão,
mencionando os acontecimentos do Rio de Janeiro e da Bahia. E continua:
Voltando a Maceió há cerca de
seis meses, aqui continuou frequentando os bordeis, cafés e pensões, nos quais
era constante altercar com qualquer dos presentes. Em virtude desses fatos,
esperava-se que, mais dia, menos dia, Mario Brandão viesse a ter um encontro
fatal. E ontem, após passar o dia, segundo alguns testemunhos, em libações
alcóolicas, abateu o inditoso chofer Merreque.[xxxv]
Bordeis, cafés e pensões, em
Maceió; ladeiras noturnas regadas a libações, em Salvador; boates, álcool e
mulheres, no Rio de Janeiro. Mario Brandão mudava de residência, mas não de
cabeça. Embora preso em flagrante, na cadeia não permaneceria por muito tempo.
Seu advogado alegou insanidade mental (29/1/1937) e ele foi absolvido por
decisão de um juiz (14/4) e internado em asilo. A acusação apelou e conseguiu
reformar a sentença (31/5); o matador de Perreque, entretanto, continuou preso
até 18/1/1938, quando fugiu. Por pouco tempo, ficou em liberdade; já no dia seguinte,
foi recapturado (“estava homiziado no povoado de Serra Nova”) e recolhido,
desta vez, à penitenciária do Estado. Esse episódio deu margem às reações
usuais: o interventor federal em Alagoas ordenou a abertura de inquérito “a fim
de apurar a quem cabe a responsabilidade pela fuga do criminoso e psicopata
Mario Brandão do Asilo Santa Leopoldina, onde se achava internado.” (22/1).
Dois meses depois, levado a julgamento no Tribunal do Júri (17/3), foi
absolvido por maioria de votos. Houve apelação e ele continuou preso. No final
de março, mesmo com a sentença de absolvição ainda vigente, Mario tentou por
duas vezes se suicidar (1/4).[xxxvi]
Essa história continuaria ainda
por algum tempo, mas os episódios imediatamente seguintes aos até aqui narrados
não foram noticiados pela imprensa. Somente em 26 de abril de 1939, um jornal
do Recife fez uma espécie de resumo da ópera, instigado pela fuga e subsequente
prisão do jornalista baiano na capital pernambucana. Absolvido em Alagoas pelo
Tribunal do Júri, sob a alegação de insanidade mental, Mario deveria ter sido
recolhido a um asilo judiciário naquele Estado. Entretanto,
Não havendo em Maceió
estabelecimento especializado para esse fim, o juiz Mario Guimarães removeu o
autor da morte para esta capital [Recife], sendo [o mesmo] recolhido ao
manicômio Correia Picanço, a fim de ser submetido a exame.
Anteontem, um irmão da vítima,
Sr. Antonio Caracilles (sic) Leite, que reside nesta cidade, ao passar pela Rua
do Imperador, com surpresa, viu Mario Brandão sentado numa mesa, no restaurante
A Cabocla, palestrando com um amigo.
Levou o estranho fato ao
conhecimento do Dr. Etelvino Lins, chefe de polícia, que ordenou a prisão do
criminoso, o que se verificou anteontem no referido estabelecimento pelo
investigador José Gomes.[xxxvii]
Depois disso, desconheço por
quais motivos, cessam, mais uma vez, por um tempo, as notícias sobre Mario
Brandão. Tendo adicionado ao seu currículo, após matar o motorista Perreque,
duas tentativas de suicídio e duas fugas de asilo, ele deve ter sido, no
prosseguimento (embora eu não tenha conseguido documentar isso), absolvido em
definitivo ou condenado a uma pena de curta duração. E, assim, quite com a
Justiça, vamos reencontrá-lo em 1942, no Rio de Janeiro, escrevendo matérias
avulsas para o jornal A Noite,
participando de campanhas cívicas e de proteção aos animais e pronunciando a já
referida conferência sobre as relações entre a psicanálise e a literatura. Para
quem havia sido declarado, poucos anos antes, mentalmente insano, não era
pouco. Infelizmente, para o filho de Alípio, essa última etapa de sua vida iria
durar pouco. O suficiente, entretanto, para ele escrever e publicar mais um
livro.
Freud e meu personagem Emerenciano, o segundo livro
Era para ser um romance
completo. Apareceu, apenas, uma síntese. Publicado em fins de 1942, Freud e meu personagem Emerenciano seria
o segundo e último livro de Mario Brandão. Ao contrário do livro anterior, este
teve recepção discreta. Mereceu uma quantidade menor de resenhas. As que,
efetivamente, vieram à luz falam tão pouco sobre o conteúdo da obra que mais
parecem registros burocráticos. Mesmo a crítica favorável de Ramayana Chevalier
(amigo de Mario Brandão, diga-se de passagem) diz mais do autor do que da obra.[xxxviii]
O que falaram os críticos? De
acordo com O Jornal (1/11/1942), “o
romance Freud e meu personagem
Emerenciano, [é] constituído por uma série curiosa e original de cenas
criadas por uma imaginação viva e combativa”. O Diário de Notícias (11/11/1942) refere-se ao livro como uma “obra
escrita para a Campanha do Livro que está merecendo da crítica fartos
aplausos”. (Não consegui, infelizmente, localizar muitos desses aplausos.) A Revista da Semana (16/1/1943) informa
que a parte publicada é, apenas, “a síntese de seu romance completo” e que
Mario Brandão “antes de apresentar um perfil de Emerenciano, personagem
solitário do livro que acaba de trazer a público, já debuxara o personagem em
conferência causa de discussões, de interrogações e de respostas, estas do
próprio apresentador de Emerenciano”.
Ramayana Chevalier, já citado
anteriormente, era um jornalista com quem Mario Brandão havia trabalhado na
Bahia nos anos 1933-34. Eis parte do que ele escreveu sobre Freud e meu personagem Emerenciano:
Li, e com que desusado prazer,
o novo e vigoroso livro de Mario Brandão.
(...) Contar como conheci [o autor] é pedir contas ao determinismo social,
que aproxima todos aqueles que sofrem e lutam no mesmo círculo das cinco partes
da terra. Os jornalistas se aproximaram, mediram-se, houveram por bem arrolar
entre si todas as suas legítimas tendências (sic) e os seus inocultáveis
valores mentais e se fizeram amigos.
Mario Brandão sempre se
especializou no escafandrismo psicológico dos bonecos humanos. Com uma nota
impressionante: o seu personagem é uma síntese de todos os lutadores pobres do
universo. E Freud, não resta dúvida, aí está, sincero e superior, aureolando
com suas classificações ao Emerenciano que, negando veementemente ao seu
criador, é incapaz de negar as próprias tendências.
A técnica literária de Mario
Brandão é forte, sugestiva, ágil e brilhante. Os objetivos estão gastos pela
publicidade paga e pela logorreia dos speakers.
Com tudo isso, há sempre um lugar sagrado para as aferições de
inteligência. E nesse lugar está o escritor baiano que é, sobretudo, cidadão do
mundo.[xxxix]
Freud
e meu personagem Emerenciano não teve forças para alçar seu
autor a alturas maiores no Panteão literário. Redigi-lo talvez tenha servido
para apaziguar Mario por uns tempos. Não por muitos.
Os anos derradeiros (1942-43)
O nome de Mario Brandão
reapareceu na imprensa carioca em 10 de março de 1942, numa reportagem especial
a que ele deu o título “A bordo de um navio em águas brasileiras”. O mundo
estava em guerra – embora o Brasil ainda permanecesse neutro – e já tinha
havido ataques a navios mercantes do nosso país por submarinos alemães, mas,
todos os afundamentos haviam ocorrido em águas do Atlântico Norte, nas
imediações dos Estados Unidos. Não era por isso que se podia navegar tranquilo
nos mares da costa brasileira. Houve, inclusive, rumores de que navios haviam
sido atacados próximos à Bahia. E foi de um trajeto marítimo entre o Recife e o
Rio de Janeiro (seria sua última viagem de volta à capital federal) que o
repórter falou ao se lançar, mais uma vez, na imprensa da cidade. A novidade é
que ele vinha casado com Luzia Antunes Brandão e trazia junto a filhinha dos
dois, Maiby, nascida no Recife em novembro de 1941.[xl]
Noite no mar. Navio às escuras.
Circulam a bordo boatos de novos atentados à marinha mercante nacional. Os
passageiros que se reúnem em pequenos grupos no convés, logo depois do jantar,
conversam nervosamente. As senhoras fazem questão de exagerar o temor que lhes
assedia o coração. Os homens revelam-se, como de ordinário, muito discretos em
suas em suas apreensões. Parecem preocupados em esconder um dos outros a
consciência do perigo provável. Por isso mesmo, devem raspar (sic) mais susto
do que as representantes do ainda considerado sexo frágil. Aquelas desabafam.
Estes recalcam, intoxicando-se, consequentemente, de medo.[xli]
Prossegue o relato:
Na verdade, todos falam com voz
trêmula. Isso se justifica, porquanto é a primeira noite que se navega em
trevas. As providências tomadas pela Nação no sentido de preservar a nossa
frota surpreenderam-nos de Maceió para a Bahia. (...) Os últimos navios nossos
felizmente só em imaginação postos a pique haviam tido sepultura em águas
baianas. Atravessávamos, portanto, a zona perigosa. De modo que era natural
aquele nervosismo. (...) Também tive receio, mas só na primeira noite. No dia
seguinte, senti um certo tédio. Arranhava-me por dentro a unha do monstro que
matou Leopardi. [xlii]
O poeta italiano Giacomo
Leopardi (1798-1837) morreu em circunstâncias nebulosas, provavelmente, vítima
do cólera. Mario Brandão continuou:
Tentei determinar-lhe os
fatores preponderantes no fundo da personalidade. Investiguei tudo pelos
subterrâneos do mundo íntimo, com a lanterna da psicanálise à mão. Encontrei a
causa de meu tédio: decepção inconsciente por não haver sucedido algo daquilo
cuja hipótese consciente tanto repelia o meu instinto de conservação.[xliii]
Mario justifica seu sentimento
revelando ter sido repórter marítimo na imprensa baiana. Inconscientemente, estaria
desejando que o navio afundasse, a fim de ter um bom tema sobre o qual
escrever, mais ou menos, como se diz que Nero incendiou Roma para tocar harpa na
cidade em chamas. Outro psicanalista talvez identificasse aqui apenas mais uma
manifestação do velho namoro do escritor baiano com o suicídio.
O
fato é que, nos dezoito meses que iria passar no Rio de Janeiro, os últimos de
sua vida, Mario Brandão se entregou a uma atividade frenética. Escreveu um
livro e deve ter quase terminado outro (Dezembro
de 1943 acabará a guerra), que chegou a ser prometido para o mesmo ano. (Não
viveu o suficiente: setembro de 1943 acabou com ele.) Deu conferências sobre
Freud e a literatura. Passados seis meses, desde que chegara, encontrou
acolhida como repórter especial (pago por colaboração, sem vínculo permanente)
no Diário da Noite. Envolveu-se em
campanhas cívicas insufladas pelo ambiente de guerra.
Depois
de longa hesitação, o Brasil entrou no conflito em agosto de 1942. Em setembro,
Mario lançou, por conta própria, a “Campanha do livro contra os bárbaros
incendiários das criações de Freud, Einstein e Zweig”, título de uma de suas
matérias, publicada no dia 18/9/1942.
Sugiro uma grande feira de livros
notáveis, antigos e recentes, de mortos e de vivos e daqui peço o concurso de
nossas livrarias, de nossas editoras, de nossos intelectuais, de nosso povo
para o custeio dos canhões da vitória da civilização que haverão de ser
fabricados com o ferro da “Pirâmide do Brasil”.[xliv]
“Pirâmide do Brasil” era uma
alusão à campanha de doação de metais para ajudar no esforço de guerra. Sua
filhinha, com poucos meses de idade, foi uma das primeiras doadoras,
naturalmente, levada pelo pai. Poucos meses depois, quando a menina morreu, de
causas que não pude conhecer, o mesmo jornal relembrou seu gesto: “houve uma
garotinha cuja vontade simbolizada no desvanecimento de seus pais, trouxe ao Diário da Noite sua canequinha de
alumínio como contribuição de guerra”. A menina era Maiby, filha do jornalista
Mario Brandão e de Luzia Antunes.[xlv]
Mas, Mario Brandão nunca iria
deixar de ser Mario Brandão. Em fevereiro de 1943, ele tentou, pela terceira
vez, o suicídio, “ingerindo grande quantidade de um tóxico”. Em uma ambulância,
“foi conduzido para o posto central da Assistência, sendo posto fora de
perigo”.[xlvi]
Em julho desse mesmo ano, ele voltou
às lides jornalísticas. Escreveu um artigo atrás do outro e, pelo menos, um
conto muito significativo, ao qual deu o nome de sua filha prematuramente
morta. Envolveu-se, também, em outra campanha, desta feita, em defesa dos
animais. Informou aos seus leitores cariocas que já havia feito isso,
interessar-se pelos bichos, quando trabalhava na Bahia:
Eu era redator do Diário da Bahia [Ele escreve “Baía”, sem
o “h”] (...) Vivia, por esse tempo, na Ladeira da Montanha, um misterioso
bichano. Os moradores daquela íngreme e tortuosa via pública da Boa Terra
teciam, em torno da existência do felino, os mais impressionantes comentários.
A julgar pelo que se tornara voz corrente ali, o gato era encantado. (...)
Consegui entrevistar o estranho personagem. (...)
Sinto-me, como se vê, à vontade
entre os bichos. Os mais amigos, como o cavalo e o cão, podem nos dar um coice
ou uma patada. Em todo caso são, efetivamente, mais amigos do homem que o
próprio homem.[xlvii]
Na continuação do artigo ou
crônica, não sei, o autor alinha uma blague atrás da outra. “Muitas pessoas
costumam ser injustas com a jararaca, pondo-lhe o nome em algumas senhoras de
gênio violento”. “Conheço uma senhora que, se fosse mordida por uma cascavel a
cobra talvez morresse”. “Até o urso, ficou provado, não é tão amigo urso quanto
certos homens”. Ao passar em frente a uma loja especializada em animais, Mario
Brandão percebeu que “uma enorme cobra escapulira da gaiola”, provocando pânico
entre os que estavam ali. “Como reconhecesse nas pessoas que vinham em
disparada, o meu prestamista Jacó, logo evoquei a cena dos israelitas castigados
pelo Senhor (...) por haverem blasfemado contra Moisés”. Resolve, então, entrar
na loja e escrever uma reportagem sobre ela. Conversa com os bichos: “a coruja
falou em nome de todos os companheiros. (...) Entusiasmando-se, deitou erudição
para cima do repórter”.
De uma em uma, chegamos, enfim,
à gaiola do papagaio. (...) Considerei, então, a gafe que havia cometido. A um
papagaio, com efeito, e, sobretudo, a um papagaio que se chama Zé Carioca, é
que deveria ter sido concedida a palavra para interpretação geral daquela
turma.
– Uma turma deletéria!, disse
Zé Carioca, acrescentando: Esta coruja é uma mulher velha e horrenda e estes
cachorros são extremistas... Estava despeitado.[xlviii]
Nas semanas seguintes, ele
prossegue com suas reportagens sobre fatos animalescos. Escreve “Quincas Borba
no hospital” (Era um cachorro.) Visita uma “Cidade aristocrática de rãs”, que
funcionava na Granja Comary, em Teresópolis (muitos anos depois, tornada
célebre por servir de concentração à seleção brasileira de futebol). Aproveita
para publicar, anexa à matéria sobre Quincas Borba, uma carta dirigida ao
“redator” do jornal que teria sido enviada por alguém escondido sob o
pseudônimo de “Burro Canário”. Desconfio que o autor da missiva tenha saído o
próprio Mario Brandão, aproveitando o disfarce para falar de si mesmo ao
público. Lida sob essa hipótese, ela se torna um preciosíssimo documento
redigido por um homem que, dois meses mais adiante, iria, finalmente, se
suicidar, depois de o haver tentado em três ocasiões diferentes. Eis um resumo
da carta escrita, acredito eu, pelo nada burro Mario Brandão. A matéria
anterior citada no texto é aquela comentada algumas linhas acima.
Li, senhor redator, no Diário da Noite de sábado último
[3/7/1943], zurrando a bandeiras despregadas, a espirituosa crônica-reportagem
desse Mario Brandão contra o qual o destino injusto e os amigos ingratos ou
pérfidos e traiçoeiros têm aplicado tantos coices. (...)
Soube que o nome de Mario
Brandão não constava da folha de redatores do Diário da Noite, recebendo ele apenas um “vale” sobremodo
compensador por crônicas-reportagens como aquela “Dezembro de 43 acabará a
guerra” que esgotou até nos arquivos dos [Diários] Associados a edição do
jornal. (...)
Eu estou no desvio da
notoriedade, como se diz na gíria literária. Falar a verdade a respeito dos
homens é espeto. Muito melhor, porque é muito mais verossimilhante do que falar
a verdade a respeito dos homens, é mentir brilhantemente, como Mario Brandão a
respeito dos animais.[xlix]
Das que pude localizar, a
última matéria publicada por Mario Brandão (Diário
da Noite, 1/9/1943) foi o conto “Maiby”, dedicado à sua filha, que havia
morrido no início do ano. Embora a peça (com outro título) houvesse sido
escrita muito antes, a publicação naquele momento tinha um significado especial,
em face de mais uma tragédia acontecida na vida do escritor. O tema único do
conto, como se deveria esperar, é o suicídio. A publicação funcionou como uma
espécie de despedida: duas semanas depois, Mario Brandão estaria morto. Tinha
cortado o pescoço com uma navalha, exatamente como, treze anos antes, havia
feito sua personagem Giovana de Genova, no conto “Almas do outro mundo”.
Mario morto, o que aconteceu
com sua mulher, Luzia Antunes Brandão? As informações sobre ela são
absolutamente escassas. Com uma exceção: em 30/5/1946, o Diário da Noite publicou esta nota:
Faz anos hoje, dia 29, a
galante menina Maria Alechandrovna, filha da Sra. Luzia Antunes Brandão. A
aniversariante oferece uma mesa de doces às amiguinhas, em sua residência à Rua
do Rezende, no 15.[l]
Seria essa Luzia Antunes
Brandão a mesma mulher que havia sido corajosa o bastante para se casar, no
Recife, com Mario Brandão, apenas quatro anos antes? A mãe de Maiby? Creio que
sim. Os três nomes Luzia, Antunes e Brandão, são pouco comuns – juntos e nesta
ordem, ainda menos; a residência no Rio de Janeiro e a época da notícia
diminuem a probabilidade de se tratar de uma homônima da Luzia de quem quero
falar. Mas, e Maria Alechandrovna
(com “ch” e não com “x”, e um sobrenome que significa, em russo, “filha de
Alechandre”)? Procurei notícias mais recentes sobre ela. Nada achei, assim como
já não tinha encontrado sequer rastros de Luzia, além do referido acima. Maria
Alechandrovna sumiu completamente; Luzia Antunes Brandão parece ter deixado de
existir no dia em que sua filha completou nem sei quantos poucos anos. Perdeu-se
Maiby; extraviaram-se Luzia e a misteriosa Maria Alechandrovna. Mario Brandão
estava morto.
Adeus, Mario. Pobre e
acorrentado Mario.
(Recife, Alto do
Céu, 15 de março de 2017)
[i] Mario
Brandão. “Almas do outro mundo”. Conto publicado na revista Fon Fon (Rio de Janeiro), na seção O
Conto Brasileiro, 9/8/1930, pág. 3.
[iii] Mario
Brandão. “Maiby” (Conto dedicado “à memória de minha filhinha que está no Céu”).
Diário da Noite (Rio de Janeiro),
1/9/1943, pág. 4. A versão de que ele teria tentado matar a filha e a mulher
está em Francisco
Reinaldo Amorim de Barros, ABC das
Alagoas, vol 1, verbete “Mario Brandão”, que pode ser acessado em http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1104/739030_vI.pdf;
[iv] Conforme
esclareci em O trem para Branquinha
(nota ao Cap. 26), o nome “Elmano” me foi passado, via telefone, por Isa, filha
de Yara Maria José Cardozo Maia Gomes, e neta de Alípio e Elisette. Mas a
própria Isa me confessou não estar muito segura de que o meio-irmão de sua mãe
tinha, mesmo, aquele nome. Sabia, também, que Alípio e Luíza haviam tido outro
filho (descobri, independentemente, que se tratava de Mario Brandão Maia
Gomes), mas, deste, ninguém mais se lembrava.
[v] A
dúvida sobre se Mario Brandão saiu de Maceió para o Rio de Janeiro em 1929 ou
1930 decorre de duas informações, aparentemente, contraditórias. Por um lado,
A. S. Mendonça Júnior (Vida
social alagoana na década de vinte: Da fundação do Cenáculo Alagoano de Letras
à Revolução de Trinta. Depoimento lido na sessão
conjunta da Academia, Instituto e Reitoria da Universidade Federal de Alagoas,
em 02 de setembro de 1978, Blog
História de Alagoas, http://www.historiadealagoas.com.br/vida-social-alagoana-na-decada-de-vinte.html)
menciona que, após junho de 1928, o grupo de intelectuais reunidos no Cenáculo
Alagoano, de que Mario Grandão fazia parte, dispersou-se, deixando a impressão
de que a debandada aconteceu pouco tempo depois daquele mês. (Mais sobre isso
adiante.) Por outro lado, o redator de uma notícia relativa ao primeiro livro
do jornalista baiano (“Mario Brandão. Almas de outro mundo”, Beira Mar, 12/4/1931) o descreve como
tendo “fixado residência no Rio há pouco mais de um ano”, o que é compatível
com a hipótese de que ele teria ido morar na capital federal no início de 1930.
As demais datas de mudanças estão um pouco mais bem documentadas, como mostro
no decorrer do texto.
[vi] “Literatura
psicanalítica: Conferência do jornalista Mario Brandão”, em Diário de
Pernambuco, 31/5/1942, pág. 4.
[vii] Mario Brandão. “A campanha do livro contra os bárbaros incendiários das
criações de Freud, Einstein e Zweig”. Diário
da Noite (Rio de Janeiro), 18/9/1942, pág. 3. O autor, provavelmente, se
refere a Charles Fourier (e não “Furier”), o socialista utópico nascido em 1772
e morto em 1837 que, aparentemente, tinha ideias afins ao Espiritismo.
[viii] Comunicação
a mim repassada, via Facebook, em 8/3/2017, por Danilo Brandão, neto de Elisa
Brandão, bisneto de Yara Cardozo Maia Gomes, trineto de Alípio Maia Gomes e de
Elisette Cardozo. Elisa (ou Isa, como é mais conhecida), mora em Salvador. Ela
me informou, no mesmo conjunto de mensagens, que sua mãe, Yara, a terceira
filha de Alípio, foi diagnosticada com o Mal de Alzheimer, vindo a falecer no dia 6/04/2003.
[ix] Verbete
“Mario Brandão”, em Francisco
Reinaldo Amorim de Barros, ABC das Alagoas, vol 1. O
livro citado no verbete é Romeu de Avelar
(Org.). Antologia de
Contistas Alagoanos, Maceió: Departamento de
Ciência e Cultura, 1970.
[x] “Madrugada de
sangue: Um guarda civil prostra um jovem, a tiros, na Praça Paris”, em A
Noite
(RJ) de 8/11/1935.
[xi] Diário de Notícias (Rio de Janeiro),
2/2/1943, pág. 2. A Gazeta de Notícias (2/2/1943,
pág. 12) confirma em 37 anos a idade do jornalista. É preciso notar,
entretanto, que, quando se noticiou sua morte, ocorrida nove meses depois dessa
tentativa de suicídio, os jornais atribuíram a Mario Brandão a idade de 35
anos. Preferi considerar que, nesse caso, eles todos se basearam num mesmo
comunicado (possivelmente, incorreto) do hospital onde o jornalista foi
socorrido em novembro de 1943, mantendo, portanto, minha estimativa de que ele
nasceu em 1906 (e não em 1908), mas existe a possibilidade de essa última
informação e não as anteriores, duas das quais com datas bem distanciadas entre
si, seja a correta.
[xii] Francisco
Reinaldo Amorim de Barros, ABC das
Alagoas, vol 1, http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1104/739030_vI.pdf; Elcio de
Gusmão Verçosa. Cultura e educação nas
Alagoas: História, histórias. 4ª edição. Maceió, Edufal, 2006, pág. 128;
Marta Emília de Souza e Silva. Poesia
visual em Alagoas. Maceió: Edufal, 2007, pág. 69; A. S. de Mendonça Júnior. Vida social alagoana na década
de vinte: Da fundação do Cenáculo Alagoano de Letras à Revolução de Trinta. (Depoimento lido na sessão conjunta da Academia, Instituto e Reitoria
da Universidade Federal de Alagoas, em 02 de setembro de 1978), Blog História de Alagoas, http://www.historiadealagoas.com.br/vida-social-alagoana-na-decada-de-vinte.html.
[xiii] Élcio de
Gusmão Verçosa. Cultura e educação nas
Alagoas: História, histórias. 4ª edição. Maceió, Edufal, 2006, pág. 128.
(Não consegui recuperar a publicação original em que Tadeu Rocha escreveu as
frases citadas.)
[xiv] A. S. de Mendonça Júnior. Vida social alagoana na década
de vinte: Da fundação do Cenáculo Alagoano de Letras à Revolução de Trinta. (Depoimento lido na sessão conjunta da Academia, Instituto e Reitoria
da Universidade Federal de Alagoas, em 02 de setembro de 1978). Em Blog
História de Alagoas, http://www.historiadealagoas.com.br/vida-social-alagoana-na-decada-de-vinte.html
(A informação relativa a Zeferino Lavenère Machado me foi passada por
Ricardo Simões, sobrinho de Alfredo José de Maya Gomes.)
[xv] O
autor não identificado de uma das resenhas do primeiro livro de Mario Brandão (Almas do outro mundo, 1931) descreve-o
como “nosso prezado confrade da Publicidade
da Light” (Beira Mar, RJ,
12/4/1931). A revista Fon Fon (Rio de
Janeiro) publicou uma foto em que aparece Mario Brandão, devidamente
identificado na legenda, no meio de um grupo de “funcionários de publicidade da
Light” (Fon Fon, 10/1/1931, pág. 51.)
As informações sobre as múltiplas tarefas da Light, em seus primeiros anos, eu
as colhi no site da empresa, em http://www.light.com.br/grupo-light/Quem-Somos/historia-da-light.aspx
[xvi] CPDOC, em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/cruzada-nacionalista; Jornal do Brasil, 8/12/1931, pág. 9.
[xvii] Diário de Notícias (RJ), 6/1/1932, pág. 12;
A Noite (RJ), 12/1/1932, pág. 2. Diário de Notícias, 19/4/1932, pág. 3.
[xviii] Em
1943, registrou Mário Brandão: “Já escrevi acerca do presidente Getúlio Vargas.
Foi na Bahia, em 1933” (Mario Brandão, “A solidariedade do Presidente Vargas
para com os mutilados”, Diário da Noite,
19/7/1943, pág. 3). Outra evidência de que ele trabalhava na Bahia, em 1933:
“No dia 22 do corrente [agosto de 1943] completará dez anos de início da
excursão do presidente Getúlio Vargas ao Norte da República. (...) Os
jornalistas que tomaram parte na comitiva [dentre os quais] Mario Brandão, do Diário da Bahia e do Imparcial... (“A viagem do presidente ao
Norte do país”. Diário da Noite, 13/8/1943,
págs. 1 e 10.)
[xix] “Os
estudiosos de Freud na literatura brasileira: Em torno de um livro esgotado”. Diário
da Noite,
19/8/1943, pág. 5.
[xx] Mario
Brandão. Almas do outro mundo: Contos típicos
regionais”. Rio de Janeiro, Gráfica Ipiranga,
1931.
[xxi] Fon Fon, 15/8/1931, pág. 49; Beira Mar, 8/8/1931, pág. 4; A Noite, 11/4/1931, pág. 8; Jornal do Brasil, 3/4/1931, pág. 9; Diário de Notícias, 17/4/1931, pág. 11.
[xxii] Tristão
de Athayde. Resenha crítica do livro Almas
do outro mundo, de Mario Brandão. O
Jornal, 5/7/1931, pág. 4.
[xxiii] Mario Brandão.
“Almas do outro mundo”. Conto publicado na revista Fon Fon (Rio de Janeiro), na seção O Conto Brasileiro, 9/8/1930,
pág. 3.
[xxiv]
Cf. relatado, dez anos depois, em “A viagem do presidente ao norte do país”, Diário da Noite (RJ), 13/8/1943, págs. 1 e 10. A notícia da passagem de
Mario Brandão pelo Recife está em Diário
de Pernambuco, 5/7/1934, pág. 4 (Na seção “Viajantes”).
[xxxiii] A
notícia sobre a viagem do secretário alagoano e sua comitiva à “zona
sanfranciscana” foi colhida em O Jornal (RJ), 18/10/1936, pág. 3.
[xxxvi] As datas inseridas
no parágrafo a que se referem estas notas correspondem às das edições dos
jornais de onde as informações foram colhidas. Na ordem em que aparecem no
texto, as fontes são: Diário de
Pernambuco, 29/1/1937, pág. 7; Diário
de Notícias, 14/4/1937, pág. 2; A
Noite, 31/5/1937, pág. 25; A Noite, 18/1/1938,
pág. 24; A Noite
(RJ), 19/1/1938, pág. 21; Jornal do
Brasil, 22/1/1938,
pág. 17; A Noite
(RJ), 17/3/1938, pág. 4; Diário de
Pernambuco, 18/3/1938,
pág. 2; Diário de Pernambuco, 1/4/1938,
pág. 3.
[xxxviii] O lançamento ou o anunciado lançamento
do livro Mario Brandão, Freud e meu
personagem Emerenciano... Síntese de um romance. (Rio de Janeiro, Livraria
Editora Freitas Bastos, 1943) foi registrado em O Jornal (RJ), 1/11/1942, pág. 14; no Diário de Notícias (RJ), 11/11/1942, pág. 10; na Revista da Semana (RJ), 16/1/1943, pág.
10; e no Diário da Noite, 19/8/1943,
pág. 5.
[xxxix] “Os
estudiosos de Freud na literatura brasileira: Em torno de um livro esgotado”. Diário
da Noite,
19/8/1943, pág. 5.
[xl] O nome
da mulher de Mario Brandão aparece em “Primeira doadora de metais do Brasil” (Diário da Noite, RJ, 8/9/1943, pág. 18).
Segundo o mesmo Diário da Noite (2/9/1943,
pág. 4), Maiby nasceu no Recife, no dia 25/11/1941 (e não 1942, como aparece; a
menina acompanhou o pai na viagem de março desse ano; não poderia ter nascido
em novembro!) e morreu em 3/1/1943. Essa última data também está sujeita a dúvida:
no dia 6/1/1943, o Diário da Noite (“Adeus
Maiby”) noticiou a morte da menina como tendo ocorrido no dia anterior, ou
seja, em 5/1/1943.
[xli]
Mario Brandão. “A
bordo de um navio em águas brasileiras”. Diário da Noite (RJ), 10/3/1942, pág. 2.
[xlii]
Mario Brandão. “A
bordo de um navio em águas brasileiras”. Diário da Noite (RJ), 10/3/1942, pág. 2.
[xliii]
Mario Brandão. “A
bordo de um navio em águas brasileiras”. Diário da Noite (RJ), 10/3/1942, pág. 2.
[xliv] Mario Brandão. “A Campanha do Livro
contra os bárbaros incendiários das criações de Freud, Einstein e Zweig”. Diário da Noite, 18/9/1942, pág. 3.
[xlvi] Diário
de Notícias (RJ), 2/2/1943, pág. 2.
[xlvii] Mario
Brandão. “Os bichos continuam dando palpite...” Diário da Noite, RJ, 3/7/1943, págs. 12 e 14.
[xlviii] Mario
Brandão. “Os bichos continuam dando palpite...” Diário da Noite, RJ, 3/7/1943, págs. 12 e 14.
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