Gustavo Maia Gomes
Em 19 de agosto último,
promovi um encontro de parentes em Maceió, interessado que estava em reunir
informações para dar conteúdo ao capítulo sobre o último Gomes (Manoel Gomes
dos Santos, meu bisavô, 1841-1925) e os primeiros Maia Gomes (especialmente,
José Maia Gomes, 1874-1947) do livro que estou escrevendo.
Falamos, principalmente,
sobre a Usina Campo Verde (já extinta, localizava-se em Branquinha, Alagoas),
que pertenceu a José, e sua história tumultuada, até que minha prima Vânia me perguntou
se as dificuldades intermináveis da atividade açucareira (incluindo as que
levaram ao fechamento da Usina Campo Verde) não teriam como explicação parcial,
mas importante, um componente político.
Respondi-lhe que, em minha
opinião de economista e, no passado, estudioso do setor, influência política
houve, sim, e muita, mas (sobretudo, desde os anos 1930) ela explica mais a sobrevida da cana e do açúcar nesta
região do que seu declínio. Veio-me à mente, alguns dias depois, que havia
escrito bastante sobre este mesmo assunto, quase 40 anos atrás. E que havia
trabalhado no setor, em São Paulo, durante pouco mais de três anos. Quem sabe,
esta não é a hora de recordar um pouco isso?
ANOS PAULISTAS
Em janeiro de 1973, com os
créditos do mestrado em Economia completados na Universidade de São Paulo, mas
ainda sem defender a dissertação, comecei a trabalhar na Copersucar, Cooperativa
Central dos Produtores de Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo. Permaneci no
emprego até meados de 1976. O escritório ficava na Rua Boa Vista, edifício
Jockey Clube, em pleno centro financeiro antigo da capital paulista.
Lá estavam Marcio Diniz Gotlib,
nosso chefe (grande figura humana, assim como os demais integrantes da
Assessoria Econômica), Reinaldo de Barros Alcântara, Norberto Antônio Batista,
Diogo Galhardo, José Santana, Akio Tanaka. Um ano depois, chegaram Júlio Maria
Borges, meu colega de mestrado na USP e grande amigo, até hoje, Eduardo Palma,
Ênio Rodrigues de Souza e Fernando Coutinho.
Foi uma experiência importante
e um tempo de muito aprendizado. Com direito a momentos de descontração. Por exemplo:
entre 1971 e 1973, devido aos preços astronômicos então alcançados pelo açúcar
no mercado internacional, a Copersucar se tornara a maior empresa brasileira em
faturamento. Tinha tanto dinheiro que até inventou de construir e patrocinar um
carro de Fórmula Um, a ser pilotado por Wilson Fittipaldi Jr. Foi um desastre. Aquela
droga mal saía do canto. E nós, os colegas e eu, fazíamos piadas a cada fiasco
do Belo Antônio.
Mas, não ríamos de nossas
tarefas diárias, que eram muitas. No meu caso particular, especializaram-me em
redator de cartas anônimas (que, entretanto, o presidente da empresa assinava)
para os então ministros do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, e da
Fazenda, Mário Henrique Simonsen. Sempre pedindo vantagens para os usineiros. E,
para minha surpresa, quase sempre, sendo atendido. Eles, não eu.
Explico. Na década de 1970, o
setor açucareiro no Brasil continuava a ser fortemente controlado pelo governo.
As exportações, em particular, eram monopólio do Instituto do Açúcar e do
Álcool. O IAA comprava o açúcar a preços tabelados e o exportava. Quando as
cotações internacionais estavam altas, essa transação dava lucro ao Instituto; em
épocas de preços baixos lá fora, ocorria o contrário.
Para permitir a estabilização dos
preços pagos aos produtores, fora criado o Fundo Especial de Exportações (FEE).
Era onde o governo depositava os excedentes que obtinha vendendo açúcar no
estrangeiro a um preço mais alto do que o pago internamente. E de onde o IAA
sacava, nos anos em que ocorria o inverso.
Acontece que os preços externos
do açúcar obtidos partir de 1971 (e até 1975, inclusive), de tão altos, eram
absolutamente inéditos. Em alguns casos, mais de dez vezes superiores aos pagos
pelo governo aos produtores. Em tais condições, o FEE, rapidamente, virou um
cofre de Tio Patinhas, abarrotado de moedas fundamentais e, sobretudo, de dólares.
Aquela fortuna que não parava
de crescer logo despertou a cobiça dos usineiros, algo facilmente explicável e,
nas condições vigentes, justificável. As relações entre empresários do açúcar
(na época, o álcool tinha menos relevância) e o governo passaram a ser do tipo:
“eu peço, tu me dás”. Não sei se “passaram a ser”; acho que sempre foram. A
diferença era que, dessa vez, havia muito dinheiro para ser distribuído.
Num determinado momento, um
dos participantes desse jogo descobriu que eu sabia escrever interessantes cartinhas
pedindo favores para os usineiros paulistas (e, por decorrência, também os
alagoanos, pernambucanos...), sob justificativas mais ou menos plausíveis. Desde
então, uma parte de meu tempo na Copersucar passou
a ser empregada nesta atividade. Devo dizer que a empresa me pagava bem, mas
terminei cansando daquilo, sendo esta uma das razões que me fizeram voltar para
o Recife, em 1976.
Parei, assim, de redigir
cartas anônimas que me rendiam um bom dinheiro para virar escritor de livros
técnicos e reminiscências familiares que não me dão dinheiro nenhum. Mas, não
me arrependo.
OS PREÇOS LOUCOS
Para ser fiel aos fatos, também
produzi estudos mais substanciais, naquele tempo. Um deles, a análise histórica
do mercado internacional do açúcar. Em tese, este trabalho deveria ter sido
apresentado num congresso sobre o assunto que a própria Copersucar promoveu, em
1975. Na época, os preços internacionais do açúcar ainda estavam muito altos,
mas já davam sinais de queda.
Ocorreu que minha participação
foi cancelada, diante da coincidência de o presidente do IAA, general Álvaro
Tavares Carmo, haver escolhido o mesmo tema para adornar o discurso que faria e
fez no conclave. Devo esclarecer aos mais jovens que, no regime militar
(1964-85), cada tanque de guerra tinha seu general e cada general, o seu
tanque. O de Tavares Carmo era o IAA. Não que ele entendesse de açúcar tanto
quanto devia entender de ordem unida.
Mas lhe tinham arranjado
aquele emprego e ele se sentia na obrigação de dizer alguma coisa sobre o
assunto. E ele disse ser impensável que os preços internacionais do açúcar
voltassem jamais para níveis inferiores a 500 dólares a tonelada. Do meu
assento de ouvinte, sorri: em toda a história, os preços do açúcar somente
haviam ultrapassado 500 dólares em 1974. Mesmo 100 dólares eram uma marca
altíssima, poucas vezes atingida. O general devia ter um plano secreto para
transformar o excepcionalíssimo em ultranormal.
Se tinha, não o pôs em prática.
De 1975 até hoje – ou seja, passados 41 anos! –, os preços internacionais do
açúcar (sem descontar a inflação dos Estados Unidos acumulada no período)
somente ultrapassaram os 500 dólares a tonelada em dois anos: 2011 e 2012. Em
termos de dólares com o poder de compra que eles tinham em 1975, que são os que
interessam, nunca mais os preços chegaram nem perto daquilo: os valores
correspondentes a 2011 (USD 137/t) e a 2012 (USD 121/t) pouco ultrapassaram os
100 dólares a tonelada.
Mesmo em 1980, no auge do
segundo choque do petróleo, o açúcar foi vendido a USD 314/t (se medirmos este
preço pelo valor que o dólar tinha em 1975). Nessa pisada, poucos meses após a
fala do general no congresso da Copersucar, desmoronou toda a política
açucareira (fusões, incorporações, relocalização e modernização de usinas)
financiada com crédito abundante e juros subsidiados, que havia sido montada desde
o início da década, na expectativa – garantida pelo general Tavares Carmo – de
que os preços do açúcar nunca mais cairiam abaixo de 500 dólares a tonelada. E
eu voltei para o Recife, com muitas lições aprendidas, por vontade própria, não
em decorrência da nova conjuntura internacional do açúcar.
E A PERGUNTA?
Mas isso está me afastando da
pergunta de Vânia. Encurto, pois, os entretanto,
para mais rápido chegar aos finalmente,
como diria Dias Gomes. Já no Recife, em 1978, aproveitando minha experiência de
São Paulo, elaborei proposta de uma nova política açucareira, a pedido de
assessores de Marco Maciel, que seria o próximo governador de Pernambuco.
A política continuaria a ser
federal, mas Maciel, se quisesse, poderia utilizar a proposta como bandeira
política, pressionando os generais presidentes a mudarem um pouco a abordagem
tradicional para o setor, que se tinha revelado ineficaz. O estudo, assim como
as proposições dele derivadas, foram, previsivelmente, ignorados já no âmbito
estadual, de modo que deles ninguém ouviu falar, fora de Pernambuco. (A não ser
um público seleto de acadêmicos, pois publiquei vários artigos técnicos a
respeito do assunto, entre 1979 e 1981.)
E aqui me reencontro com a pergunta de
Vania Bahia Maia Gomes: “teriam as dificuldades permanentes da atividade açucareira,
como explicação parcial, mas importante, um componente político?”
Em 1979, dei publicamente uma
resposta a questões essencialmente similares a essa, aproveitando o que havia
aprendido com a experiência na Copersucar e, em seguida, com os estudos sobre o
assunto feitos para atender o pedido da equipe de Marco Maciel. Copio de mim
mesmo, nos próximos parágrafos. Escrevi isso em 1979.
“A política do IAA [a política
de longo prazo, digamos assim] foi bastante eficiente no que toca à sua tarefa
fundamental de adequar os níveis de produção de açúcar e de álcool aos
respectivos níveis de demanda, interna e externa, pelos mesmos produtos. (...) Algo
muito diferente ocorre quanto aos objetivos de aumento de eficiência. Neste ponto,
os êxitos têm sido extremamente reduzidos, quando não se dá o caso de que os
indicadores de produtividade se comportem exatamente em sentido contrário ao
desejado. ”(Gustavo Maia Gomes, “Caráter e Consequências da Intervenção Estatal
no Setor Açucareiro do Brasil". Estudos
Econômicos, São Paulo, Fipe-USP, vol. 9, n. 3, 1979)
Vale lembrar que o IAA foi
criado durante a grande crise econômica internacional dos anos 1930, quando os
preços internacionais dos produtos vendidos por países como o Brasil (o açúcar,
inclusive) caíram a níveis extremamente baixos. Naquele momento, houve um
perigo real de fechamento em larga escala de usinas, especialmente, no
Nordeste, região mais dependente do comércio internacional do produto do que sua
concorrente (São Paulo, sobretudo).
A intervenção do IAA evitou
isso, distribuindo os custos de uma redução não-catastrófica da produção entre
agricultores e industriais de São Paulo e do Nordeste, seus credores e o
próprio governo. O “Reajustamento Econômico” decretado por Vargas (1933), mesmo
não sendo uma política específica para o setor açucareiro, reduziu em 50% a
dívida da usina Campo Verde. (Não só dela, claro.)
Desde uma perspectiva mais
ampla, entretanto, equilibrar a produção e o consumo e evitar uma quebradeira
geral de usinas não era tudo o que interessava: “Pode-se ver, assim,
acompanhando a história da política de preços (um instrumento fundamental de
intervenção do governo no setor açucareiro) o delineamento de um padrão:
enquanto os fatores estruturais responsáveis pela debilidade da economia
açucareira (nordestina, em particular) não são nunca enfrentados, o governo
passa a ministrar paliativos destinados a evitar o colapso do setor. Nenhuma
medida efetiva é tomada para incrementar a produtividade da agroindústria
nordestina”. (Idem.)
“Ora, esse padrão de política,
não acompanhada de um esforço em atacar as raízes dos problemas tem, pelo
menos, dois defeitos graves: de um lado, já que as causas estruturais da
deterioração da economia canavieira nordestina não são nunca enfrentadas, a
política não consegue mudar o curso dessa tendência, resultando daí que a
distância absoluta, em termos de eficiência técnica e econômica, entre o
Centro-Sul e o Nordeste só faz aumentar a cada ano”. (Idem.)
De outro lado, e isso era
ainda mais fundamental, “Como faz parte da filosofia
mesma justificadora da intervenção não deixar o setor sucumbir, ao contrário,
amparando-o, a periódica ministração de paliativos, na forma de crédito
paternalista, termina criando nos empresários açucareiros a certeza de que suas
empresas nunca irão quebrar e que, em consequência disso, eles não precisam se
preocupar seriamente em melhorar a eficiência com que produzem”. (Idem.)
AINDA VALEM?
Velhas de 37 anos, as
conclusões deste artigo perderam, em grande medida, a atualidade. Há hoje, por exemplo,
maior liberdade de os empresários fixarem preços e quantidades produzidas, do
que no tempo de José Maia Gomes, virtual dono da Usina Campo Verde. Mas, não a perderam totalmente. Talvez,
nem essencialmente. Persiste viva, sobretudo, a relação clientelista entre
governo e empresários do açúcar e álcool, mormente os do Nordeste.
Não fosse
assim, não encheriam os usineiros os vôos para Brasília, pelo menos, uma vez
por mês. Correspondentemente, ainda devem existir muitos escritores de cartas
anônimas espalhados pelo Brasil, a pedir o impossível e ser atendidos, como por
milagre.
A resposta, portanto, à
pergunta de Vânia, me parece ser esta: a política foi, sim, um dos fatores
explicativos do que aconteceu ao setor açucareiro de Alagoas, do Nordeste e do
Brasil. Essencialmente, a intervenção governamental permitiu que usinas
econômica e financeiramente inviáveis seguissem existindo pela vida afora.
Nada de decisivo foi tentado
para corrigir as fraquezas estruturais; apenas se protelava a vida das menos
eficientes. Mas – tanto para o setor, como um todo, quanto para a usina dos Maia
Gomes, em particular – essa tolerância teria um custo e, algum dia, um fim, exemplarmente
ilustrado pela situação atual de Murici e Branquinha, Alagoas.
Em 1946, quando
José Maia Gomes ainda era vivo, os dois municípios (que, na época, eram um só)
tinham cinco usinas em seu território: Alegria, Bititinga, Campo Verde, Mucuri
e São Simeão. Hoje, não têm nenhuma.
Sabem o que foi colocado no lugar
delas? Bolsa Família e invasões de terras.
Gustavo. O resumo da história recente do açúcar está de acordo com a história. Fato pouco comum. Parabéns. Lembro que no período 1973-2000, quando
ResponderExcluirCopersucar, principalmente, e Planalsucar atuaram efetivamente em busca de mais eficiência e produtividade, os custos reais no período reduziram em 57%.De lá para cá (2015) aumentaram em 22%. Uma pena.
Obrigado pelo comentário, Júlio. Valioso, ainda mais quando o autor é um dos maiores especialistas brasileiros -- ou o maior -- no assunto.
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