Gustavo Maia Gomes
Wandeck Santiago. Pernambuco em Chamas: A intervenção dos EUA e o golpe de 1964. Recife, Cepe Editora, 2016 |
Aos que se
interessam pela história política brasileira, recomendo a leitura de Wandeck
Santiago, Pernambuco em Chamas: A
intervenção dos EUA e o golpe de 1964. Eu o li com grande proveito. Não concordo
em cem por cento com o autor. Longe disso. O subtítulo, por exemplo, me desagrada
um pouco. Nada contra o nome “golpe” aplicado àquele episódio; a palavra “intervenção”,
porém, me parece exagerada. Eu restringiria este termo a atos de força promovidos
por um agente externo que impõem ou tentam impor ao inimigo o resultado buscado
pelo agressor. Não devo estar sozinho nessa interpretação. Precisamos usar
termos diferentes para fenômenos desiguais – e existe a palavra “interferência”.
Intervenção é uma coisa – implica o uso da força bruta; interferência, outra,
mais branda.
Nesse sentido,
não houve intervenção de qualquer país estrangeiro no Brasil, antes ou depois
do golpe de 1964. Poderia ter ocorrido. Como sabemos (e Santiago também, pág.
182), “petroleiros da Marinha” dos Estados Unidos trazendo armas e munições chegaram
a iniciar viagem às costas brasileiras, para apoiar o golpe militar, na
hipótese de este enfrentar reação. Mas o plano foi cancelado, por desnecessário:
o governo Goulart desmanchou em um dia, sem oferecer resistência, e a frota americana
deu meia volta. Não se consumou a intervenção. Interferência, sim, houve, e
muita, como seria de se esperar naquele mundo imerso na Guerra Fria, a confrontação
ideológica e sempre perigosamente próxima de se tornar uma guerra de verdade,
entre os Estados Unidos e a União Soviética. Só que a interferência veio dos
dois lados, não apenas da potência americana.
A OUTRA FACE
DA VERDADE
Essa querela
em torno de um subtítulo talvez não seja irrelevante. Pois, os mesmos fatos que
Wandeck Santiago tão bem descreve e documenta sobre as tentativas de os Estados
Unidos influenciarem os acontecimentos políticos no Brasil poderiam ter sido
interpretados de maneira diferente daquela sugerida pelo rótulo “intervenção”. Para
tanto, seria preciso que o autor desse um peso maior ao fato de que, naquele
clima de Guerra Fria, qualquer política nacional (ainda mais de países grandes,
como o Brasil) fazia, inevitavelmente, parte do enredo maior da disputa entre
EUA e URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).
Ele está
consciente disso. (Leia-se a primeira frase do Prefácio, assinado por Pablo
Porfírio: “este livro é um thriller [narrativa de suspense] sobre a Guerra Fria”.
Ou o que o próprio Wandeck escreve à pág. 39, falando sobre a cassação do registro
do Partido Comunista Brasileiro como um “efeito” da confrontação pós-1945 entre
os EUA e a URSS). Mas, por algum motivo, terminei de ler o livro com a sensação
de que o autor tinha tentado me convencer de que houve uma “intervenção” – eu preferiria
dizer interferência – dos Estados Unidos na política brasileira, mas não ocorreu
nada parecido do lado oposto: a URSS e/ou, dava no mesmo, Cuba.
E daí? Daí que
uma narrativa mais equilibrada teria de também mencionar a interferência
soviética (leia-se, russa) sobre a política brasileira. Mesmo que este não
fosse o objeto principal do livro, a ressalva precisaria aparecer (aqui e ali,
é feita, mas sem a necessária ênfase, acho eu), para que o leitor de hoje, provavelmente,
nascido depois de 1964, pudesse ver os acontecimentos narrados sob uma
perspectiva mais verdadeira. O paradoxo é que a URSS influenciava a política
brasileira tanto quanto – ou mais do que – os Estados Unidos. Mesmo que os
detalhes dessa interferência nunca venham a ser completamente conhecidos,
alguns aspectos dela eram facilmente observáveis, ou vieram a público nos anos posteriores
ao golpe. Por exemplo:
(1) O Partido
Comunista Brasileiro (obediente a Moscou), na clandestinidade, mas com enorme
capacidade de doutrinar ideologicamente e de mobilizar as forças da esquerda,
nunca deixou de atuar. Wandeck escreve (pág. 133), citando José Arlindo Soares:
“Na Frente do Recife [aliança política de esquerda], que vencera as três
últimas eleições locais, o PCB ocupava posição de destaque. (...) nenhuma
dessas vitórias teria sido obtida ‘sem o Partidão
comandando a famosa Frente’”.
(2) O governo
de Cuba também apoiou as forças que visavam dar o golpe da esquerda, oposto ao
que, efetivamente, ocorreu. Cito Wandeck Santiago: “Em 1963, um grupo que
atuava dentro das Ligas [Camponesas] fez a opção pela luta armada. Enviou
militantes para treinamento em Cuba e montou campos de preparação da guerrilha
no Brasil” (pág. 70). Isso, convenhamos, era bem mais grave do que distribuir
leite em pó para crianças pobres, uma das formas mencionadas no livro da “intervenção”
dos EUA na política brasileira.
FATORES “CULTURAIS”
Além do que
foi mencionado acima, embora aqui não se possa falar de “interferência”
deliberada de uma potência estrangeira, havia na cultura política brasileira
fatores que favoreciam a penetração das ideias com as quais a URSS simpatizava. A
influência desses fatores na formação de uma opinião pública simpática às teses
de esquerda era muito maior do que a que poderia ser conseguida com as ações de
“intervenção” (segundo Wandeck) dos EUA na política nacional.
Por um lado, para
a imensa maioria da intelectualidade brasileira, ontem, como hoje, ser antiamericano era (ainda é) uma obrigação
moral. Pode-se imaginar o que isso significa em termos de predisposição para
votar ou apoiar ações violentas em favor da esquerda. Por outro lado, também produzia
esse mesmo efeito a facilidade de atrair adeptos que o discurso populista,
assumido integralmente por João Goulart nos seus últimos meses como presidente,
possuía. Em 1964, como hoje, qualquer político que prometesse aumentar
salários, confiscar propriedades, fazer “reformas de base”, limitar remessa de
lucros para o Exterior, e outras coisas semelhantes, tinha popularidade
garantida. E essas eram teses caras à União Soviética, pois sua difusão alimentava
a crise econômica que o país enfrentava nos anos sessenta, com enorme potencial
de desestabilização política e, portanto, de redução ou perda de influência dos
EUA no Brasil.
Eu gostaria de
ter encontrado uma ponderação maior de tudo isso no Pernambuco em chamas de Wandeck Santiago. Se ele o tivesse feito,
os fatos que trouxe a tona ou nos fez relembrar se tornariam ainda mais
significativos. Mas o livro é bom, mesmo com esse viés. Devo dizer, em defesa do
autor, que eu também gostava de acreditar na “intervenção” dos Estados Unidos
como explicação universal para o golpe militar. Repetir aquela visão simplista
do complexo processo político que, meio século depois, nos traria o flagelo dos
governos petistas, dava a todos nós o conforto das certezas absolutas, mesmo quando
falsas.
Precisei me
estender sobre esses aspectos para deixar claros meus argumentos. Ficou
faltando espaço, infelizmente, para uma apreciação mais demorada dos pontos
altos do livro – e são muitos. A pesquisa está bem documentada; o estilo é
fluente; muitos fatos descritos não eram de conhecimento geral; é preciosa a
recordação de que, há setenta anos, estávamos discutindo e tentando implementar
ações para estimular o desenvolvimento econômico (vide a Sudene, Celso Furtado,
o Relatório Merwin Bohan). Que contraste com o discurso dos tempos atuais, em
que o problema de superar a pobreza dos brasileiros e nordestinos foi reduzido à
distribuição das esmolas do Bolsa Família.
Considero que
Wandeck Santiago, a quem eu já conhecia como grande jornalista, elevou ainda
mais sua reputação com este livro, que não trata de incêndios nem apela para o
Corpo de Bombeiros, mas inclui as chamas de uma estranha passeata noturna feita
no Recife, em 1963 (possivelmente, na Avenida Conde da Boa Vista), por
camponeses nem sempre tão camponeses assim (na foto, muitos parecem estudantes
de classe média), conduzindo pedaços de pau pegando fogo.
Uma nota
final. Li o que Wandeck Santiago escreveu à pag. 95 de seu livro: “No auge da
Guerra Fria, é de se supor que o governo soviético também estivesse mantendo contatos
e encontros com autoridades e políticos brasileiros. A URSS, porém, nunca teve
política de liberação de documentos sigilosos, diferentemente dos EUA”. Pode
ser um reconhecimento parcial (e uma tentativa de justificação) de que seu livro sofre mesmo de certo desbalanceamento.
Que, entretanto, é amplamente compensado pelos pontos positivos a que fiz
referência. E por muitos outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário