Mario Brandão. Freud e meu personagem Emerenciano (Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1943, 123
págs.)
GUSTAVO MAIA GOMES
Freud e meu personagem Emerenciano tem um
miolo, com aproximadamente 60 páginas, e dois “adornos” (artigos dele mesmo, Mario Brandão, e
de terceiros), mais ou menos, do mesmo tamanho, ou seja, 30 páginas cada um.
Nem sempre dá para entender por que os enfeites estão ali, o que eles têm a ver
com a parte central do livro. Mas estão.
Deixando isso de lado, ficamos com as
páginas 37 a 97, o miolo. Que história elas contam? A de Emerenciano, diz Mario
Brandão. A de Mario Brandão, digo eu. Ou melhor, dizemos nós, L. Lavanére (da
Academia Alagoana de Letras, no Jornal de
Alagoas, em ano próximo, mas anterior, a 1943) e eu. No artigo suscitado
por uma conferência de Mario Brandão sobre o seu personagem (então ainda inédito)
e reproduzido nas págs. 105-107 do livro, Lavanére escreveu: “Com franqueza,
digo que não creio na ficção daquele Emerenciano. Para mim, [o que o autor
sente] é forte desejo de revelar alguns segredos de sua vida, tirar de sobre si
o peso do que se acumulou no seu cérebro e que lhe causa incômodo”.
Mario Brandão, até onde pude
saber, escreveu três livros. Apenas dois vieram a público: Almas do outro mundo – Contos típicos regionais (Rio de Janeiro,
Gráfica Ipiranga, 1931) e Freud e meu
personagem Emerenciano – Síntese de um romance (Rio de Janeiro, Freitas
Bastos, 1943). O terceiro (Penitenciária),
ele disse ter escrito, mas não publicou. (Seriam reminiscências de seus anos de
reclusão?)
Nem, sequer, tentou publicar,
segundo diz, embora quisesse, sim, que o livro fosse impresso e distribuído às
livrarias: “Penitenciária [é um]
romance mais ou menos dostoievskiano que há dois anos pretendo publicar do
mesmo modo que muita gente deseja ganhar a sorte grande sem comprar bilhete de
loteria”. Como este é, apenas, o primeiro paradoxo registrado em Freud e meu personagem Emerenciano, devo
advertir que outros virão. (O manuscrito de Penitenciária,
provavelmente, se perdeu para sempre.)[1]
Sabemos a que o intelectual
da Academia Alagoana de Letras se referia, ao comentar a palestra em que seu
criador apresentou o personagem Emerenciano. Mario Brandão devia ter saído há
pouco tempo do manicômio judiciário onde ficara recolhido – ou seja, preso – por
ter matado o motorista Perreque (Cícero de Carvalho Leite), em Maceió (1937).
Não fora aquele, por sinal, o único acontecimento trágico que o autor de Freud e meu personagem Emerenciano havia
sofrido ou, diretamente, causado. Essa é uma história contada no Cap. 11 de Uma noite em Anhumas (livro ainda em
elaboração), que não será repetida aqui. Foi para “tirar de sobre si o peso do
que se acumulou em seu cérebro”, volto a citar L. Lavanére, que Mario Brandão
“fingiu criar um indivíduo fantasiado de vestes alheias, mas, no interior, das
suas vestido”. É o que penso, também. Em sendo assim, o livro nos irá fornecer
preciosos elementos para uma melhor compreensão de Mario Brandão. Ou eu deveria
dizer “Emerenciano”?
O direito de nascer
Embora nunca o tenha dito
explicitamente, pelo menos, não nos escritos que pude resgatar, Mario Brandão
Maia Gomes era espírita, ou seja, acreditava na doutrina de Alan Kardec que,
ainda hoje, tem seguidores no Brasil. Parece que o pai, meu tio-avô Alípio Maia
Gomes, também era, pois ele dedicou sua tese de médico, formado na Bahia, às
relações entre “a arte que professo” (a medicina) e o mundo sobrenatural,
conforme descrito ou inventado pelo Espiritismo.
Em um dos artigos (seus e de
terceiros) com que adorna e dá volume a Freud
e meu personagem Emerenciano, Mario Brandão faz uma referência positiva ao
seu pai e à tese dele sobre os fantasmas cuja existência ninguém jamais
comprovou, mas muitos continuam a dizer que viram. Ao longo do livro, são
inúmeras as evidências de que ele acreditava nisso. Nem Alan Kardec, nem o
Espiritismo estão no título do segundo livro publicado de Mario Brandão. Freud
está. A despeito disso, eu encontrei muito mais Kardec do que Freud nas
aventuras e desventuras de Emerenciano. A começar do primeiro parágrafo do
primeiro capítulo:
O meu personagem, antes de tudo, precisava
nascer. Ele pairava, por assim falar, nos domínios do vago, do incalculável, do
ilógico, do impossível, do abstrato, do absurdo. Permanecia além dos estreitos
limites da concepção humana. (...) Do fundo da eternidade, nas regiões imateriais
onde se originaram os mundos e os espaços, a salvo de todos os princípios e
livre de todas as leis, ele experimentou uma infinita amargura. Talvez a
independência lhe houvesse provocado a necessidade imperiosa e inadiável de
escravizar-se.[2]
Isso, convenhamos, é boa
literatura. A este trecho inicial, entretanto, seguem-se alguns parágrafos
pretensamente de discussão filosófica que não me agradam. Sem ser crítico
literário, acho que as súbitas e repetidas mudanças de gênero narrativo, por
assim dizer, são o ponto fraco do livro. Mario Brandão é capaz de conceber
muitas situações interessantes e de descrevê-las com grande talento, mas, com
frequência, põe a perder esses bons começos mudando subitamente o tom do
discurso do emotivo-ficcional para o racional-científico.
Nessas divagações
inoportunas, ele gasta, às vezes, páginas inteiras. Depois, retoma o modo
anterior, mais próprio do romance que Freud
e meu personagem Emerenciano seria se houvesse sido terminado. (O que foi, efetivamente,
publicado ganhou o subtítulo “Síntese de um romance”.)
Emerenciano queria com todas as fibras de seu
ser metafísico o que quer que fosse do qual não podia ter uma noção exata. E
dos confins da inexistência lhe chegava um mal estar horrível.
De repente, teve um sobressalto e formulou
tragicamente esta decisão suprema:
– Vou nascer![3]
Para nascer, o “espírito de
Emerenciano” (Mario Brandão jamais usa esta expressão) precisava achar um homem
e uma mulher que estivessem dispostos a serem seus pais na Terra. “Encontrou-os,
sem muito esforço. Chamavam-se Augusto e Filomena”. É a partir daí que as
semelhanças entre as vidas de Emerenciano e do seu criador vão aparecendo em sequência,
justificando a opinião de L. Lavanére de que o autor estava, na verdade,
falando dele mesmo.
Nem Augusto nem Filomena foram felizes com o
trabalho genésico. Filomena, após ter cumprido a missão sublime da maternidade,
morreu, com um sorriso, delirando de febre, vítima de infecção puerperal. E
Augusto ficou a ponto de perder o juízo. Pensou decididamente em correr atrás
da companheira. Não passou, todavia, dessas cogitações graves. Temeu realizar a
desconhecida viagem.[4]
Primeira semelhança: Luíza
Brandão, a mãe de Mario, morreu de complicações no parto, quando ele tinha quatro
anos (contei essa história em O trem para
Branquinha, Cap. 27). Segunda: ao longo da vida, Mario Brandão tentou
suicidar-se quatro vezes, sendo, afinal, “bem sucedido”, diferentemente de
Augusto, o pai de Emerenciano, a quem “faltou o ânimo para empreender o grande
salto mortal até a Eternidade”. Terceira: apenas seis anos após perder a mãe,
Mario Brandão iria sofrer outro golpe, com a morte de Alípio, seu pai. A
criança Emerenciano também perdeu o pai, a propósito do que o autor do livro
escreveu uma das passagens mais bonitas de todo o livro:
Uma tarde Augusto tomou um navio com destino ao
Amazonas, de lá nunca mais regressando nem dando sinal de vida. Emerenciano
ficou espiando o navio. O navio sumiu-se no horizonte, e Emerenciano ficou
espiando o mar.[5]
A partir daí, prossegue a
narrativa, “a figura do pai, que representava a sua garantia na vida (...)
apagara-se-lhe no consciente e se confundia com o mundo”. Emerenciano vai,
então, morar com um amigo do pai. (Na vida real, Mario Brandão deve ter
continuado a viver com a viúva de Alípio, Elisette Cardozo, e com seus quatro
meios-irmãos. Não sei se a madrasta teve um segundo casamento, mas acho isso
improvável. De todo modo, é natural que o garoto de dez anos duplamente órfão
tenha se sentido desamparado.)
O pai adotivo de Emerenciano, infelizmente, “era
muito violento. Mais grosseiro do que mau”, atenua o narrador. Mesmo assim,
numa passagem incluída mais adiante no livro, mas que se refere a esses
primeiros tempos, diz o autor:
Logo no primeiro dia que chegara à casa do pai
adotivo, sentiu, repentinamente, dentro dos miolos o tremendo estrondo de um
cascudo [golpe dado na cabeça, com a mão fechada e usando as articulações dos
dedos; gíria da época]. Fora o pai de criação que assim lhe queria apenas
preparar o espírito para uma advertência a propósito do modo mais decente de
uma criança sentar-se à mesa.[6]
Com o tempo, Emerenciano
“deslembrou-se” daquilo embora (Freud!), inconscientemente, jamais tenha
esquecido a dor que o cascudo lhe provocara. Era hora da ceia. “Em torno havia
a dona da casa e muitos outros membros da família”. Dependurada na parede havia
uma enorme reprodução de um quadro da última ceia de Cristo.
O menino (...) vaga e confusamente, entendia que
ali estava o seu Deus, aquele que não deveria permitir que o pai jamais
regressasse desse Amazonas longínquo, aquele seu Deus que, mesmo ali do quadro,
decerto, possuía poderes para evitar o castigo imerecido que acabava de sofrer.[7]
Esse episódio fez com que, já
mais crescido, Emerenciano passasse “a odiar do fundo do inconsciente na pessoa
daquele homem que lhe batera, a família toda, no seio da qual vivia e a família
no sentido geral”. Da mesma forma, a odiar o Cristo “porque lhe ficara a ideia
mórbida de que Jesus, com os Apóstolos apreensivos, assistira impassivelmente
ao seu primeiro e injusto aviltamento na terra”. Para piorar as coisas, além de
o pai adotivo ser violento, a mãe
era indiferente ao destino de Emerenciano.
Parecia olhá-lo com certa mágoa por verificar inconscientemente que ele vinha,
de qualquer modo, subtrair-lhe um pouco das atenções devidas aos filhos. Os
filhos eram tratados pelos fâmulos por seu fulano e seu sicrano. Tratavam
Emerenciano por Emerenciano mesmo.[8]
Também aqui, o autor alcança
o nível da melhor literatura. O prosseguimento da narrativa (que, neste caso,
não perde o ritmo nem sofre alternância de modo) é muito revelador de que Mario
Brandão, como primeiro percebeu L. Lavanére, usava seu personagem Emerenciano
para fazer uma espécie de autodefesa, de justificativa para sua vida mais do
que atribulada. (Em favor de Elisette, a contrapartida real da fictícia e
inominada madrasta de Emerenciano, diga-se que ela tinha ainda mais razões do
que Mario para se sentir desamparada: a morte de Alípio lhe deixou com seis
filhos pequenos para criar, apenas quatro dos quais eram biologicamente dela.)
Como reagia Emerenciano (e
por quê?) ao seu próprio desamparo, num ambiente em que ele se julgava
preterido aos irmãos de criação?
Menino inteligente, superior, já experimentava
essa tortura da vaidade que acaba gerando a timidez. E a criança sentia
intimamente qualquer coisa inexprimível lhe dando uma convicção de
superioridade. Ela sentia-se muito mais gente do que seus irmãos adotivos. Mas
aquela diferença de roupa, de dormitório, de tratamento e até de alimentação
humilhava-o.[9]
Em poucas páginas, Mário
Brandão, projetando-se em Emerenciano, expôs os pilares de sua própria defesa
diante do mundo, atendendo ao desejo, como disse L. Lavanére, de “tirar de
sobre si o peso (...) que lhe causa incômodo”. Ele fora, Mário / Emerenciano,
uma vítima de trágicas circunstâncias e infelizes acontecimentos. E, se reagiu,
às vezes, de maneira tão violenta, foi porque era mais inatamente inteligente
do que a maioria da humanidade.
Uma criança medíocre não sofreria maiores
vexames em face dessas desigualdades. Não sentiria os grandes abalos morais.
Não seria vítima de nenhum trauma. Não se deprimiria na luta entre a altivez e
a pusilanimidade.[10]
Menino e rapaz
O rosário de infelicidades
continua a ser cantado. Sem ter atenção ou receber cuidados, Emerenciano sofre também
as consequências físicas disso. “Os dentes lhe principiaram a cariar. (...) Não
tardou a ficar desdentado. Era para ele uma tortura ter de achar graça em
qualquer coisa, sobretudo, diante de pessoas do outro sexo”. Teve uma paixão
precoce, aos cinco anos, “por uma moça que ganhara um concurso de beleza na sua
cidadezinha distante e esquecida”. E, como o personagem de Mario Brandão era um
ser diferenciado, “ele amou aos cinco anos com a intensidade com que muitos não
amam na adolescência”.
Segue-se um longo parágrafo em que o autor, incorrendo
naquele problema de alternar modos de exposição, se socorre em Freud para justificar
Emerenciano. Uma inserção com resultados negativos, um momento em que a
literatura é sacrificada em favor do discurso de advogado. Mas, findo o entre
parênteses e retomada a narrativa ficcional, aparece outra pérola:
Emerenciano não podia rir sem tentar
angustiosamente esconder a boca atrás das mãos, sem ficar rubro de vergonha,
sem se constranger, sem se recalcar, sem levar para o dia de amanhã a doença da
prevenção contra a humanidade. Toda vez que precisava rir, ele marcava na
folhinha do futuro uma necessidade de chorar.[11]
“Folhinha”, para quem não é
desse tempo, era como a gente chamava aqueles calendários apresentados em
blocos de 365 folhas arrancáveis, uma para cada dia. Esclarecido isso, devo
dizer que a frase “Toda vez que precisava rir, ele marcava na folhinha do
futuro uma necessidade de chorar” é impactante e dotada de rara beleza. Arrisco-me
a dizer, a despeito de meu pouco conhecimento a respeito, tratar-se de uma das
mais bonitas já escritas na literatura brasileira.
Mas o fato é que,
desdentado, o Emerenciano menino passou a conviver apenas quem também não tinha
dentes, os meninos pobres, enfim. Já homens feitos, tanto Emerenciano como seu
criador iriam cultivar esses relacionamentos. No caso de Mario Brandão, nas
boates de segunda categoria onde ia beber e, frequentemente, brigar.
Quanto mais crescia, mais
Emerenciano apanhava. Depois daquele primeiro cascudo, “ainda apanhou muito
bolo de palmatória, muito murro, muito pontapé, muita surra de cipó-pé com
culpa e sem culpa”. Adquiriu um complexo de inferioridade. Compensava-se disso
“praticando maus feitos”.
Foi Emerenciano quem botou sabão na panela. Foi
ele quem derramou tinta na toalha. Foi ele quem quebrou o copo. Foi ele quem
atirou uma pedra na vidraça do vizinho. Foi ele quem roubou o dinheiro do
oratório. E apanhava que era uma lástima.[12]
Apanhava sem chorar,
prossegue o relato. Não suportava era a dor moral. Os irmãos adotivos foram
estudar na Capital.
Emerenciano ficou estudando na aldeia. Adiante,
os irmãos de criação partiram para outros Estados, a fim de ingressarem em
escolas superiores. Emerenciano foi para a Capital empregar-se no armazém de um
comerciante que lhe pagava uma insignificância.[13]
Como “[não] tomava gosto pelo
trabalho, foi trabalhar num engenho como cabo de eito. Não deu para o engenho.
Foi estudar na Capital. O homem que o criara agora gostava dele. Talvez
intimamente se arrependesse de tanto o haver espancado. Mas, a verdade é que
Emerenciano não dava para nada”. (Seria este também o sentimento de Mario Brandão
sobre si mesmo?) A despeito disso, sentia,
de vez em quando, um desejo vago e confuso, uma
necessidade medonha de ser alguma coisa muito grande na vida, para mostrar
àqueles irmãos de criação, para mostrar àquele homem que o criara e a todas as
famílias do mundo de quanto era capaz.[14]
Emerenciano estudou algum
tempo e foi trabalhar num jornal (outra pista de que o autor está falando dele
mesmo). Trabalhar não como o repórter que Mario foi, por vários anos, no Rio de
Janeiro, mas “como uma espécie de contínuo”, como devia se sentir em seus
empregos precários e periodicamente rompidos pelas confusões que arranjava. Os
paralelos entre as vidas do personagem e de seu criador continuam a se
apresentar.
Era um jornal do tempo em que os poetas não
podiam viver sem beber. Encontrou boêmios, gente de cultura, ou apenas de
sensibilidade, personagens de Dostoievski, gente como Verlaine e Musset, gente
mal vestida e gente mal alimentada e gente feia e doente.[15]
Dessa maneira, o homem feito
Emerenciano repetia o menino que ele havia sido e que convivia apenas com
outros desdentados. E se dava bem com eles, como, agora, devia estar à vontade
ao lado da gente mal vestida, mal alimentada, feia e doente.
Emerenciano bebia. Embriagava-se. Amava
completamente bêbado. O lupanar era a alcova que ele sonhara... Procurava
encontrar, inconscientemente, no lupanar baixo aquela moça bonita que amara aos
cinco anos.[16]
“Lupanar”, para quem não sabe
(como não o sabia eu) é o mesmo que casa de meretrizes, bordel. Ou “recurso”,
como lembrou Humberto Gomes de Barros (Cap. 13). Muitos dos incidentes graves
em que Mario Brandão se envolveu ao longo da vida começaram ou terminaram em
bares e boates de segunda que, se não eram lupanares, chegavam perto.
Os amores frustrados, trágicos,
infelizes
Emerenciano “sentia-se,
inconscientemente, de uma inferioridade dolorosa para com as moças,
concebendo-as, num plano sublimado elevadíssimo, como se não fossem criaturas
vivas, como se fossem feitas de luz”. Mas, a despeito disso, teve suas
mulheres, seus amores. Todos problemáticos. Afinal, o que deveríamos esperar?
Não se achava bem nos ambientes familiares,
fugindo deles, pensando que assim o fazia por superioridade. (...) Não se
depravava em meio à depravação. Era como se misturasse com a lama não se
lameasse. Não ia para a sarjeta da vida, porque o seu espírito subia, procurava
galgar os cumes luminosos, o azul, a Via
Láctea... Um dia se apaixonou por uma infeliz criatura. Foi como se
houvesse apaixonado pela Branca de Neve. (...) Emerenciano, porém, com a sua
timidez, não podia possuir senão platonicamente aquela sua Dulcinéia.[17]
Ela o queria de graça, mas
Emerenciano, “de graça, era capaz para mulheres inferiores, de tamanco e
vestido sujo de chita, em cima de uma esteira, sobre uma velha cama de lona,
num cubículo da ‘Calçada Alta’. Mas aquela era decente. E ele se sentia diante
dela humanamente incapaz. Precisava de dinheiro para comprá-la”. Não tardou que
se separassem. “Nunca a esqueceu. Ouvia a música de sua voz. Sentia o perfume
de seus cabelos. E o tempo foi passando por ele, cada vez mais velho”. Em
determinado momento, o personagem de Mario Brandão comprou um bilhete de
loteria e...
ganhou uma porção de contos de reis. Foi um
desespero. Comia às pressas. Bebia às pressas. Vivia precipitadamente, numa
vertigem, dormindo somente quando estava exausto (...) Era como se quisesse se
desforrar do tempo em que vivera miseravelmente. Tinha medo de morrer antes de
o dinheiro acabar.[18]
Encontrou novamente aquela
mulher. “E foi humano e não mais apenas divino”. Sentia que, momentaneamente
rico, a podia comprar. “O dinheiro com que agora a mantinha diminuí-a um pouco
no seu conceito inconsciente para que se sentisse igual a ela e não inferior”.
Passou a sentir ciúmes. (E, então, em nova alternância, Mario Brandão passa a
discorrer sobre o ciúme em Freud. Chega a dizer: “vou sintetizar de forma
simbólica, como num verdadeiro sonho estudado por Freud, o que houve com
Emerenciano...” Isso me parece má literatura.)
A história que ele conta para
introduzir Freud em seu argumento é, na verdade, uma história de espiritismo,
não de Psicanálise. E, embora não seja desprovida de interesse, a narrativa
principal sofre, neste ponto, mais uma vez, um desvio injustificado e de
resultados literariamente ruins.
O capítulo seguinte, o
terceiro, começa com a frase “teve uma grande paixão na vida”. Não foi a mulher
que ele, no início, assimilava a Branca de Neve. Esta ficou para trás, sem
outras considerações. A “grande paixão” era o contrário dela.
Mas a paixão de Emerenciano era diferente.
Amava a uma criatura perdida, para a qual julgava não haver possibilidade de
salvação. A princípio não se apercebeu de que dificilmente seria capaz de
mantê-la entre a humanidade sem se livrar do egoísmo. Mais tarde compreendeu
que ela era uma mulher do diabo, embora não soubesse como livrar-se de sua
tentação (...) Num verdadeiro inferno vivia ele.[19]
Mais uma vez, a narrativa
sofre uma solução de continuidade, prejudicada pela tentativa inapropriada de
fazer análises explícitas ou recorrer a conceitos freudianos. Nesses momentos,
Mario Brandão escancara sua intenção de fazer do romance de Emerenciano um
libelo de autodefesa.
Mas o libelo poderia ser um romance ou um arrazoado,
nunca as duas coisas ao mesmo tempo: “Vou apresentar ‘os sintomas de seu
alheamento da realidade e do presente, de que nos fala o Pai da Psicanálise’”,
diz Mario, citando ele não diz quem na frase entre aspas no original. Quando
ele para de parecer científico e volta ao modo de romance, a narrativa cresce
em qualidade. Dessa nova paixão, Emerenciano também sentia um ciúme doentio.
Aparece o espectro do assassinato; reaparece o do suicídio. É Mario Brandão
falando de si mesmo, sob o disfarce de um personagem ficcional.
Preocupava-se de que não acabasse bem. Podia
matá-la. E antes a beijaria como Otelo e, de certo, lamentaria também não poder
ficar matando a vida inteira a amada infiel.
Podia matar-se. Se ficasse vivo, seria
encontrado junto do cadáver dela, considerando vagamente o que tinha feito, a
cabeça caída sobre o peito, os olhos parados nas órbitas, olhando-a no chão,
estendida, sem poder se levantar para chamar-lhe muito nome feio, atirar-lhe em
cima o que pudesse alcançar, e, em seguida, cair-lhe aos pés, de joelhos, com
as mãos postas, pedindo perdão.[20]
Tinha brigas contínuas com a
mulher. “Uma vez, ela lhe quebrara a cabeça com um vidro de remédio ainda
fechado. Emerenciano começara a dizer que ela era uma mulher miserável, uma
criatura monstruosa, uma degenerada, uma bandida”. A companheira não se conteve
“e atirou-lhe o frasco na testa. O sangue desceu misturado com o remédio”. Mas,
quando o viu ferido, “agarrou-se a ele”. Daí a pouco estavam bons amigos.
Apenas para brigar de novo, talvez, sem grande demora. Segue-se um dos trechos
mais dramáticos e bem escritos de todo o livro, que me permito citar na
integralidade.
Naquela noite brigaram mais uma vez. E mais uma
vez na vida recolheram-se intrigados. Ela deitou-se na cama. Ele ficou estirado
sobre uns caixões de querosene, embora no mesmo quarto. Numa situação tal,
dificilmente dormiriam. E não dormiram mesmo. Cada qual ficou aguardando da
parte contrária uma voz amiga, enternecida, generosa, de reconciliação. E se
mantiveram nessa luta silenciosa até alta noite. De repente, Emerenciano não se
conteve mais e pulou no meio do quarto como se fora aferroado violentamente,
gritando a plenos pulmões, no escuro:
– Olha, sinha vaca, quer saber de uma coisa?
Vou deixá-la! Trate de arrumar meus troços já neste instantezinho que eu vou me
meter na casa das setenta mil pestes. E você que se meta nas profundas do
inferno, gota serena, bexiguenta.
A companheira levantou-se sem uma recriminação.
Retirou a caixa de fósforos de baixo do travesseiro, acendeu o candeeiro, e com
ele na mão caminhou para Emerenciano. Ergueu a luz até a altura do rosto do
amante e respondeu serenamente:
– Pode se danar.[21]
O homem, efetivamente, foi
embora na madrugada. Mas, no dia seguinte, retornou, para encontrar “o lugar
mais limpo”. Saiu dali, entrou numa taverna. “Virou sombra também. Todos os
dias protelava o recomeço da vida para o dia seguinte. A vida de todos os
párias, de todos os sombras, sempre começa amanhã”. Não se sentia mais feito de
pensamento, como antes sentira. “Ele se sentia o fim vago de qualquer coisa
vaga, como o ponto final de uma carta que está dependurado da pena no
derradeiro instante da vida”.
Isso é Mario Brandão em um
dos seus melhores momentos!
De um querer morrer à aventura em São
Luís do Maranhão
O capítulo IV de Freud e meu personagem Emerenciano tem
meia página de extensão. Trata, apenas, de uma tentativa de suicídio que não
teve sucesso.
Emerenciano, a quem o tédio da inexistência
levara a formular tragicamente aquelas palavras desesperadas que revelavam a
sua firme decisão de nascer, agora decidia o contrário, levado pelo tédio da
própria existência.
Emerenciano decidiu morrer. Tomou qualquer
coisa doce que lhe lembrou o próprio gosto da boca daquela mulher, que eu estou
sentindo na minha boca neste instante em que escrevo a vida desse personagem.[22]
Mas não morreu: “a
aproximação da morte fê-lo enxergar mais detalhadamente a vida. E a vida lhe
pareceu sublime, pelo menos no instante primeiro da salvação”. E Emerenciano
viajou... Vamos encontrá-lo, no capítulo seguinte, em São Luís do Maranhão. Sem
nenhuma razão óbvia, em São Luís do Maranhão, onde vive uma aventura. “Como
tinha sido de jornal, decidiu fazer uma reportagem [contínuo fazia reportagem?]
E foi esta a reportagem: uma coisa meio kafkiana, embora Kafka ainda nem fosse
conhecido no Brasil. “Vai alta a noite”, começa Mario Brandão. “A cidade, por
assim dizer, dorme. Apagam-se as lâmpadas no último café”. Baixa o silencio e a
intensa escuridão. O repórter (Emerenciano, naturalmente) “deixa o local em que
se escondera e avança pela rua trevosa”. De repente, os vultos que ele podia
divisar, somem-se nas trevas.
Caminhando até o local em que os vultos desapareceram,
verifica, à sua direita, um portão de ferro dando acesso a enorme edifício
desabitado, em princípios de ruína. Transpõe-no, disposto a sondar o mistério
até o fim, custasse o que custasse.[23]
Avista, “de costas para ele,
sentados no soalho, os dois vultos brancos que seguira, desde a Praça Gonçalves
Dias. De frente, da mesma forma sentados, encontram-se mais onze indivíduos, de
feições macabras”. Esses últimos, prossegue, “usam vestes escuras. Olhares
verdadeiramente alucinados percorrem as complicadas linhas de uma espécie de
mapa”.
Em dado momento, erguem-se todos, como se
fossem tomados de sobressalto atroz. E um deles se afasta. Acompanha-o
visualmente o repórter através da fechadura. Habituara-se a escrever sobre o
corriqueiro, o chão, o concreto e também sobre o fantasmagórico, o abstrato, o
absurdo, o real menos verossímil e o fabuloso com insofismáveis, iniludíveis
caracteres de puro realismo.[24]
(Mario Brandão esquece aqui
que era ele, não Emerenciano, quem fazia tais coisas. Mas, como são a mesma
pessoa...) Neste momento, o indivíduo que se afastara dos demais volta,
carregando nos braços “um corpo desnudo e inanimado de mulher”. Mario Brandão
aproveita o ensejo para instilar um toque de Alan Kardec à cena, dizendo que se
ouve uma oração concebida para afugentar os maus espíritos.
– Não está morta – assegura, por fim, com voz
rouquenha e pausada, o sujeito que a trouxera nos braços – mas se acha o seu
espírito em condições de abandonar, transitoriamente, a matéria, e, galgando o
espaço, de lá nos trazer, desvendados, os segredos sob os quais repousam as
grandes arcas de ouro em S. Luís, enterradas pelos holandeses.[25]
A presença, em local próximo,
do repórter Emerenciano observando a cena é, entretanto, descoberta e ele
“sente repercutir dentro dos miolos o tremendo rumor de uma cacetada”. Perde os
sentidos. Tem noção, não sabe quão pouco depois disso, de que “está sendo
conduzido em automóvel, de olhos fechados, com as mãos atadas às costas e com
uma quase asfixiante mordaça”. O veículo para e lhe ordenam que desça. Sente o
cheiro do mar. Imagina que lhe vão amarrar uma pedra ao pescoço e lança-lo às
águas. Mas logo percebe que a intenção dos adeptos da magia negra é outra.
Querem que ele decifre uma inscrição gravada em certa pedra.
– Mas não tenha receio – lhe diz um dos
detentores. O amigo viaja em nossa companhia exclusivamente com o fim de
traduzir a inscrição de que lhe falamos. Se acertar, ficará rico também. (...)
Se não acertar, paciência! Somos constrangidos a matá-lo.[26]
Parece que ele não acertou,
pois, em determinado momento, os homens decidem acabar com a sua vida. Só não
conseguem porque o repórter lembrou-se de que tinha sido, na juventude, campeão
de corridas e escapou de seus captores. Pegou um bote e remou para o mar, deixando
para trás quem lhe perseguia.
Cheguei a me afastar tanto da terra que durante
muito tempo não vi em torno de mim senão céu e mar. Mas não demorou que
soprassem ventos amigos e as correntes marítimas me reconduziram a solo firme.
Antes houvesse morrido mesmo, apunhalado pelo
verdugo preto ou afogado no verde abismo, pois que chegando quase morro de
raiva. Contei a minha história aos amigos de rua, aos companheiros de hotel,
aos colegas de jornais, aos membros da família, a muita gente de quem pude
dispor de um minuto de atenção e todos diziam que era história de Trancoso, que
era conversa para boi dormir, que era o raio que os parta.[27]
Últimos capítulos
A primeira história do
Capítulo VI tem a ver com um companheiro de Emerenciano chamado Pinho.
“Esbofeteara-o um dia. E o Pinho descera as escadas a jurar, humildemente, que
ainda havia de lhe mostrar uma coisa. Morrera meses depois, o seu amigo, num
desastre de automóvel”.
Fora visitá-lo no necrotério. Saíra dali, da
casa da morte, com uma tristeza enorme no coração. À noite, não pudera
fechar-se nas sombras lúgubres daquele aposento dos fundos de um sobrado velho.
Os quatro meses durante os quais viveram juntos ameaçavam, lá dentro, caminhar
para ele com o olhar apagado do morto.[28]
Poucas linhas depois dessas,
reflexões filosóficas sobre o significado da vida e o medo da morte interrompem
a narrativa ficcional, substituindo-a por um arrazoado psicofilosófico. A
qualidade literária da obra sofre prejuízo. Mas, enfim, retomando o fio da meada:
nessa altura de sua vida, que o autor não especifica bem qual fosse,
Emerenciano era dado a orações com as quais procurava conseguir uma espécie de
expurgo espiritual. Os resultados, como deveríamos esperar, nunca eram os
melhores.
Quando Emerenciano procurava comunicar-se com o
seu Anjo da Guarda aparecia o sexo fantasiado com o complexo, por assim dizer,
do demônio, a desnudar santas, por chifres em santos, a praticar ignominiosos
sacrilégios de toda a ordem.
Emerenciano procurava compreender Jesus, se não
aquele que inconscientemente odiava, o da ceia distante de sua infância, pelo
menos aquele Jesus que levara Madalena à casa de Lázaro e que encontrou
desassombro de amor nos prelados revolucionários das catacumbas romanas.[29]
E as coisas caminhavam assim
até que “um dia Emerenciano foi preso”. (Mais uma vez, as histórias de autor e
personagem se confundindo.) Havia um chaveiro, sentenciado, que “batia a grade
com muita força e mordia os lábios ao girar três vezes, violentamente, a enorme
chave”. Estava, talvez, se vingando.
Na Penitenciária, como Dostoievski, ele
[Emerenciano] entrou em contacto com frios sicários, bandoleiros impávidos e
românticos, com o espírito da independência aguçado, homicidas e ladrões de
toda sorte, autores de latrocínios e de crimes passionais, mandatários e
mandantes de assassinatos horrorosos e sistemáticos, integralistas, comunistas,
alguns inocentes misturados com os culpados como luz e sombra, como bons e
maus, fracos e fortes.[30]
Nesse meio “dolorosamente
heterogêneo”, encontrou um amigo. Um tipógrafo com oito filhos. A mulher que o
visitava aos domingos “tinha a fisionomia de santa martirizada numa fogueira”.
E este cidadão, prossegue a narrativa, “era uma espécie de louco a pregar (...)
contra o dinheiro e as leis dos homens que o possuíam, sem odiar os homens que
o possuíam”.
O meu pobre Emerenciano começou a tentar
compreender o problema econômico da humanidade. Não mais haveria justificativa
sentimental, pelo menos de caráter monetário, como se nota no princípio dessa
apressada narrativa, para complexos de inferioridade sexual. E Emerenciano leu
Marx. Foi um desespero igual ao que sentiu quando ganhou o bilhete da loteria.
Queria viver não para gastar o dinheiro, mas para transmitir aos outros o
achado. Faltava, porém, solução para o problema espiritual.
Ficou materialista. Dentro do seu materialismo,
o que ele demonstra é uma necessidade de força propulsora para subir, para
sentir o Além.[31]
Os dois capítulos finais
acrescentam pouco e, neste sentido, reduzem o valor da obra. Algumas passagens,
entretanto, são preciosas. Como esta:
Eu criei Emerenciano e queria traçar como um
Deus o destino de minha criatura na face do meu mundo de ficção. Pensei
ingenuamente em fazê-lo um menino feliz, que mais tarde pudesse ser um doutor e
ter uma placa dourada na porta com o seu nome.[32]
Não apenas isso. Mario Brandão
também pensou em tornar Emerenciano governador do seu Estado, ou mesmo
presidente da República, ou deputado “para que defendesse os interesses da Pátria
e as garantias individuais de seu povo” (raros deputados procedem assim, caro
Mario Brandão; o mais provável é que seu personagem se corrompesse por
quaisquer trinta dinheiros), em grande orador, literato de renome...
Eram estes os sonhos de glória que eu sonhei
para Emerenciano. Mas eu também tive para com ele os meus sonhos de felicidade
pura e simples. Sonhei em fazê-lo rico, bom e belo e em casá-lo com uma bela
mulher.[33]
Se eram esses os sonhos que Mario
Brandão tinha para Emerenciano e para si mesmo, nada deu certo, nem com o
personagem, nem com seu criador. Ambos se tornaram pessoas pobres, feias, sofridas,
cheias de amargura, vítimas e provocadoras de acidentes, infelizes. Com a
passagem do tempo, a vida dos dois foi piorando, piorando, até se tornar
inteiramente desgraçada.[34]
[1]
Mario Brandão, Freud e meu personagem Emerenciano. Rio
de Janeiro, Freitas Bastos, 1943, pág. 21 (Apresentação).
[2]
Idem, pág. 37.
[3]
Idem, pág. 38.
[4]
Idem, pág. 40.
[5]
Idem, págs. 40-41.
[6]
Idem, pág. 45.
[7]
Idem, pág. 46.
[8]
Idem, pág. 42.
[9]
Idem, pág. 42.
[10]
Idem, pág. 42.
[11]
Idem, págs. 43-44.
[12]
Idem, pág. 47.
[13]
Idem, pág. 47.
[14]
Idem, pág. 48.
[15]
Idem, pág. 49.
[16]
Idem, pág. 49.
[17]
Idem, pág. 53.
[18]
Idem, pág. 54.
[19]
Idem, pág. 63.
[20]
Idem, págs. 64-65.
[21]
Idem, págs. 66-67.
[22]
Idem, pág. 69.
[23]
Idem, pág. 69.
[24]
Idem, pág. 77.
[25]
Idem, pág. 78.
[26]
Idem, pág. 79.
[27]
Idem, pág. 81.
[28]
Idem, pág. 85.
[29]
Idem, pág. 87.
[30]
Idem, pág. 88.
[31]
Idem, pág. 93.
[32]
Idem, pág. 93.
[33]
Idem, pág. 93.
[34]
Idem, pág. 89.
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