Gustavo Maia Gomes
É
temerário falar a respeito de um livro que ainda nem terminei de ler, mas
sucumbi à tentação. Refiro-me a Sapiens:
Uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari (tradução Janaína Marcoantonio, 8a. edição, Porto Alegre, RS: L&PM, novembro de 2015). Para ser mais
preciso, tenho em mente o quinto capítulo (“A maior fraude da História”), que trata da invenção
da agricultura, ocorrida doze mil anos atrás.
O
autor carrega as credenciais de ter um doutorado em História por Oxford e de ser
professor da mesma disciplina na Universidade de Jerusalém. Sapiens tem sido um best seller mundial. No Brasil, o livro alcançou inacreditáveis oito
edições no mesmo ano de lançamento (2015). O que há por trás desse sucesso?
Tenho uma resposta preferida, que apresento a seguir, em etapas.
A explicação
Não
sei se foi na Inglaterra ou em Israel que Yuval Harari descobriu Jean-Jacques
Rousseau (1712-78), mas a influência do filósofo francês é perceptível no
quinto capítulo. Surpreendentemente, ele só é citado 300 páginas à frente e num
contexto que não tem diretamente a ver com a agricultura.
Rousseau
criou o mito do bom selvagem que, de tempos em tempos, é desarquivado, tem o
mofo removido, e ganha novos adeptos. Disse ele que, em seu estado bruto, as
pessoas humanas são livres e felizes. Vivem em paz com a natureza e com seus
semelhantes. A desgraça veio com a civilização, que lhes roubou a liberdade, impôs-lhes
tiranos e os fez trabalhar interminavelmente. Mas, a civilização nasceu da
agricultura, cuja invenção teria sido, consequentemente, “a maior fraude da
História”, nas palavras de Harari.
Detalho
um pouco: quem escreveu isto abaixo copiado foi Jean-Jacques Harari, também
conhecido como Yuval Noah Rousseau. Está em Sapiens
(pág. 89 da oitava edição brasileira):
Em vez de
prenunciar uma nova era de vida tranquila, a Revolução Agrícola proporcionou
aos agricultores uma vida em geral mais difícil e menos gratificante que a dos
caçadores-coletores. Estes passavam o tempo com atividades mais variadas e
estimulantes e estavam menos expostos a ameaças de fome e doenças. A Revolução
Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade,
mas os alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou em mais lazer.
Em vez disso, se traduziram em explosões populacionais [aqui Harari ecoa Thomas
Malthus, 1766-1834, sem citá-lo] e elites favorecidas. Em média, um agricultor
trabalhava mais que um caçador-coletor e obtinha em troca uma dieta pior. A
Revolução Agrícola foi a maior fraude da História.
Desconfio
que a popularidade do livro se deva, exatamente, a esse capítulo cinco. Mas, baseado
em que evidências o autor afirma ser a vida dos agricultores “menos
gratificante que a dos caçadores-coletores”? Esta não é uma proposição fácil de
comprovar (afinal, ainda não temos gratificômetros);
ela só parece auto evidente para os seguidores da parábola rousseauniana, dentre
os quais não me incluo. Há várias outras afirmações em Sapiens que também suscitariam refutações, mas vou ignorá-las. A grande
vendagem do livro veio de seu alinhamento à tese do bom selvagem e é nela que
concentrarei as atenções, daqui em diante.
Diálogo
surreal
Harari
pode estar certo ou errado em tudo o que disse no trecho citado, mas sua frase
mágica é a última: “A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História”. Eis
aqui um paradoxo. Mesmo se alguém concordasse integralmente com o restante da
citação, ainda acharia difícil aceitar essa conclusão bombástica. Entre outras
razões, porque fraudes pressupõem autores, gente operando conscientemente para
enganar outras pessoas, fazendo-as agir (ou impossibilitando-as de reagir) de
uma maneira que contribua para a realização dos objetivos do fraudador. E é
flagrantemente falso que a agricultura tenha sido inventada por um ou vários sabidões. Nunca houve, por exemplo, este
diálogo entre dois primitivos caçadores-coletores.
–
Aonde vais?
–
Vou ali inventar a agricultura.
–
Isso demora?
–
Nem um pouco. Guarda meu churrasco.
–
Tem certeza de que quer ir, mesmo?
–
Sim, por quê?
–
Comeremos o pão com o suor de nosso rosto.
–
E manteiga.
–
Esta vida gratificante de correr atrás de gazelas será destruída.
–
Haverá Big Macs.
–
A agricultura produzirá bethovens.
–
Teremos excelente música.
Viva a
agricultura!
Recentemente,
participei de um debate ao vivo e sem a intermediação da internet com um
economista francês chefe de uma agência governamental de planejamento que era,
também, padre jesuíta. (Não se trata de um detalhe irrelevante, como veremos.) Morando
próximo à catedral de Notre Dame, ele nos aconselhou a todos a mudar para as
brenhas da África ou da selva amazônica. Era onde, fugindo desta nossa civilização
carente de tudo isso, iríamos encontrar os povos dotados de sabedoria, ecologicamente
corretos, felizes desconhecedores da propriedade privada.
Repliquei
que discordava de tais conselhos e que, de bom grado, assumiria seu emprego em
Paris, providenciando para que ele, em troca, conseguisse uma posição na tribo
dos ianomâmis. Nem ele se entusiasmou com a ideia, nem o público presente me apoiou.
(Uns poucos homens e mulheres, talvez, sim.) Mas, o ponto importante é que a popularidade
do discurso primitivista mostrou-se muito clara, suscitando a pergunta: Por que
essa atração por Rousseau? Identifiquei, naquela pequena plateia, o mesmo
sentimento que explica a vendagem recorde do livro Sapiens, de Yuval Harari. Vou tentar interpretar isso, mas só
depois de fazer algumas considerações preliminares.
Eventos
ou sequências de eventos historicamente importantes quase nunca resultam de
decisões tomadas por agentes – indivíduos ou grupos de pessoas – dotados de
alguma consciência do que estão fazendo. Ainda menos comum é que os
responsáveis por essas decisões (quando for possível dizer que tais responsáveis
existiram na forma de pessoas específicas e, teoricamente, identificáveis) sejam
ou tenham sido capazes de antecipar seus efeitos de longo prazo. Nessas
condições, olhar para a História em busca de vilões fraudadores ou de heróis derrotados
que queriam continuar se abrigando em cavernas é um procedimento infantil. No
extremo, desonesto.
No
caso da agricultura, não se pode dizer que ela tinha tido “inventores”
conscientes. (Portanto, é fraudulento afirmar que sua invenção foi uma fraude.)
O fato histórico de sua criação deve ser registrado e as consequências
respectivas identificadas. Podemos fazer isso, tanto Harari quanto eu. A
diferença é que ele acha que a “invenção” da agricultura foi um malefício para
a humanidade, enquanto eu estou certo do contrário. Tudo bem, se for apenas uma
questão de valores diferentes. Mas não me parece que os neoadmiradores de
Rousseau percebam com clareza as implicações de suas preferências.
Com
efeito, nada do que tem valor reconhecido em nossa civilização existiria sem a
agricultura. Sócrates não teria filosofado contra os sofistas; Cervantes não
teria escrito Dom Quixote;
Shakespeare teria passado a vida flechando ovelhas selvagens; Michelangelo
teria sido um caçador de rãs; Johann Sebastian Bach seria um surdo a mais, no
meio de tantos comedores de amoras; as pirâmides nem teriam sido imaginadas,
nem as catedrais góticas, nem a Guernica de Picasso, nem a Mecânica Racional de
Newton, nem a Relatividade de Einstein, nem o ar-condicionado, nem a
penicilina, nem as vacinas, nem a possibilidade de viagens intercontinentais
rotineiras, nem o WhatsApp, nem o telefone, nem o jornal diário, nem o Big Ben de
Londres, nem a Torre Eiffel de Paris, nem o trem para Branquinha. Continuaríamos
a invejar os pássaros pela sua capacidade de voar.
Você
seria analfabeto, leitor, e eu também. Nunca teria tido o prazer de montar um
cavalo árabe selado; jamais teria visto o outro lado da Lua, nem acompanhado de
sua poltrona o jogo final da NBA. Charles Chaplin, por sua baixa estatura,
seria escalado para caçar tatus; somente os sapos adjacentes ririam de suas
graças. Ninguém pagaria um padre jesuíta e economista francês para atravessar o
oceano e dizer bobagens a plateias receptivas. Contra a sua vontade (se pudesse
imaginar as belezas da inexistente Notre Dame de Paris) ele estaria morando na
África, onde dormiria o dia todo todos os dias, devido a ter sido picado pela
mosca tsé-tsé. Nas poucas ocasiões em que abrisse o olho, se entediaria com ver
o Tarzan pendurado nas árvores soltando seu grito animalesco – AAARRRGGGHHHH!!!
Um minuto depois, estaria de novo a dormir.
Eu
não quero nada disso para mim e desconfio que, tampouco o quer o leitor ou o
jesuíta francês. Portanto, viva a agricultura!
Por que essa
atração por Rousseau?
Retorno
à pergunta feita acima e, agora, tento respondê-la. Por que o mito do bom
selvagem – e seu corolário de negação da agricultura e da civilização – atrai
tantos adeptos? Na origem, esse era, apenas, o discurso dos derrotados e dos
portadores de sentimentos de culpa. Aqueles que não tendo alcançado uma posição
satisfatória no mundo onde vivem, são consolados pela crença de que seu
fracasso se deveu à invenção da agricultura. Aqueles que, como os católicos, jesuítas
ou não, economistas ou não, sempre cometeram algum pecado original e
prazerosamente se redimem jurando que a virtude está com os perdedores. (Mas,
não acreditam nisso, de fato, o que só piora as coisas, por aumentar a
necessidade de expiação.)
Tudo
bem que esse tenha sido o núcleo original dos seguidores de Rousseau. Ocorre
que o número de pessoas que, hoje, se mostram receptivas ao discurso da
autoflagelação excede em muito a quantidade dos fracassados e portadores de
complexos de culpa. Quem compõe os contingentes adicionais, exércitos de
reserva das teses mais conservadoras?
Nas
sociedades contemporâneas, boa parte delas imensamente ricas, se comparadas com
os bandos de caçadores-coletores, há muitos professores universitários,
escritores, artistas regularmente pagos para não fazer nada de útil. Escrevem dissertações
estrambóticas, publicam livros com teses as mais esdrúxulas – e a sociedade
continua sustentando-os em seus altos padrões de vida. Essas pessoas são
propensas a dizer que o mundo é ruim. Percebem que, assim procedendo, despertam
muito mais simpatias e vendem quantidades maiores de suas obras, do que o
fariam se reconhecessem que este mundo criado pela agricultura, a indústria, as
tecnologias de alta eficiência, é tão bom, tão espetacularmente bem sucedido,
que até inúteis como eles encontram maneiras de viver com opulência e difundir
suas ideias sem grande esforço. Esses intelectuais vivem da multiplicação dos pães
possibilitada pela Revolução Agrícola, mas multiplicam seus clientes negando
esse fato óbvio.
Não estou dizendo que professores e escritores como Yuval Noah Harari sejam desonestos. Mas de que ele escreveu aquela frase terrível (“A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História”) com objetivos mercadológicos, tenho poucas dúvidas. Jean-Jacques Rousseau em Jerusalém.
Não estou dizendo que professores e escritores como Yuval Noah Harari sejam desonestos. Mas de que ele escreveu aquela frase terrível (“A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História”) com objetivos mercadológicos, tenho poucas dúvidas. Jean-Jacques Rousseau em Jerusalém.
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