Gustavo
Maia Gomes
(23/11/2017)
Está
se formando no país o consenso de que os grandes responsáveis pela crise da Previdência
são os funcionários e ex-funcionários públicos, entre os quais me incluo. Isso
é verdadeiro, porque nós, em média, recebemos benefícios muito maiores do que os
dos trabalhadores egressos do setor privado. Mas alimenta uma versão incompleta
– e injusta – de como chegamos a este ponto.
Não
falo em “déficit” da Previdência, cuja existência (ou não) depende das fontes
de receita que cada um inclui nas contas. É indefensável, contudo, a destinação
de parcelas crescentes do produto nacional para pagar aposentadorias (sobretudo,
as precoces), enquanto as necessidades correntes de saúde, educação, segurança
pública e infraestrutura da população permanecem desatendidas, por falta de
dinheiro. Por isso, em tese, apoio a reforma, sim. Mas, não qualquer uma,
claro.
Misto quente
A
Aritmética sozinha não basta para que se atribua a culpa da crise previdenciária
aos funcionários públicos. Por trás dos números frios, há histórias quentes. (E
sanduíches, idem.) E estas precisam ser contadas, pois os moços as desconhecem
e os velhos, em sua maioria, preferem ignorá-las, satisfeitos com terem à mão respostas
simples para problemas complexos. Vejamos algumas dessas histórias.
Meu
avô paterno foi juiz de Direito. Funcionário público, portanto. Ganhava uma
miséria. Sempre morou em casas simples, alugadas. Seu único patrimônio era uma
fazenda recebida de herança. Meu pai, também formado em Direito, tinha um
emprego no Ministério da Agricultura. O que recebia dali não dava sustentar a
família. Ele reforçava os ganhos trabalhando como advogado.
Os
dois tiveram aposentadorias integrais? Sim. Ou seja: continuaram a ganhar, na
velhice, a mesma porcaria que recebiam quando jovens. Não foram responsáveis
por crise alguma exceto, talvez, a deles próprios.
Em
1979, eu morava no Exterior. Fazia o doutorado em Economia. Já era professor da
Universidade Federal de Pernambuco e me sustentava, nos Estados Unidos, com o salário
(mantido pelo governo, numa sábia política de qualificação), uma pequena bolsa
brasileira, e um auxílio como ajudante de pesquisas, pago pela universidade de
lá.
Os
mecanismos de remessa de dinheiro eram, à época, bem complicados. Minha mãe, procuradora,
tinha de preencher inúmeras exigências burocráticas, antes de comparecer ao
Banco do Brasil, a fim de me enviar mensalmente o salário. Nesse mesmo tempo, meu
irmão (engenheiro do setor privado) soube o quanto eu (economista, com
mestrado) ganhava na UFPE, uma universidade pública. Ficou chocado. Era,
provavelmente, menos de um terço do que ganhava ele.
Citei
exemplos familiares, mas as mesmas situações se repetiam em todo canto. Era
sabido que os funcionários públicos ganhavam pouco – seguramente, menos do que
seus correspondentes de qualificação semelhante recebiam na iniciativa privada.
Fazia, também, parte do conhecimento geral que a disciplina de trabalho nas
repartições do governo era frouxa, que ninguém seria demitido (salvo em casos
extremos), e que todos teríamos direito à aposentadoria integral. Umas coisas
compensavam a outra.
Meu
avô, meu pai e eu sabíamos dessas regras do jogo. Nenhum de nós achou
necessário poupar dinheiro para a velhice. (No meu caso de professor, a
aposentadoria integral só foi garantida após a Constituição de 1988, quando
viramos todos “estatutários”; até então, éramos regidos pela CLT.) A ninguém
ocorria que estávamos quebrando a Previdência. Como poderíamos, ganhando tão
pouco?
Eu
não ignorava que podia ter renda maior fora da universidade. De fato, quando,
em 1976, troquei São Paulo, onde era economista de uma grande empresa privada,
pelo Recife, onde passei a trabalhar na UFPE, meus rendimentos caíram pela
metade. Mas, eu queria ser professor. Nunca me arrependi daquela decisão. Achei
bom, quando soube que teria aposentadoria integral, mas continuei ganhando uma
miséria, ou pouco mais do que isso. Complementava a renda fazendo todas as
pesquisas que podia conseguir. Os pagamentos sempre vinham descontados da
contribuição previdenciária. E, por essa contribuição adicional, eu nunca
recebi nada em troca.
Enquanto
isso, meu irmão e todos os seus colegas tinham planos complementares de
previdência, parcialmente, pagos pelos empregadores. Isso não lhes garantiria a
preservação de cem por cento de seus rendimentos, quando se aposentassem, mas,
como eles ganhavam muito mais do que os funcionários públicos de qualificação
semelhante, a situação econômica futura dos dois grupos – dadas as
circunstâncias prevalecentes – tinha tudo para vir a ser muito semelhante.
De
um ponto de vista meramente financeiro, entretanto, eu tinha embarcado em um
mau negócio. Durante 40 anos de trabalho, eu ganharia a metade do que meu irmão
iria receber; no desconhecido tempo que me restasse entre a aposentadoria e a
morte, teria renda igual à dele. Se os parâmetros dessa situação não tivessem
mudado, ninguém poderia dizer, hoje, com um mínimo de razão, que eu faço parte
do grupo responsável pela crise da Previdência. Mas eles mudaram – e mudaram
radicalmente – desde 1985 e, sobretudo, durante os anos petistas (2003-16).
A Grande
Destruição
A
expressão acima é de Paulo Roberto de Almeida, diplomata e, portanto, também
funcionário público. Ele a aplica aos efeitos dos desastrosos governos petistas
de Lula e Dilma. Trata-se de uma avaliação correta.
O
PT, como sabemos, nasceu no ABC paulista. Queria ser um partido de bases
operárias, nos moldes da desgraça comuno-socialista que assolou o mundo durante
um século e que ainda prospera em países infelizes, como o nosso. Mas, se o PT
foi operário, não o é mais. Há muito tempo. Pelo menos, não nos moldes
clássicos, exclusivistas. Virou o partido dos funcionários públicos, dos sindicalistas,
dos arruaceiros invasores e depredadores de propriedades, dos artistas e
intelectuais que pensam com os cotovelos; dos professores universitários que nem
com os cotovelos pensam.
Quando,
finalmente, chegaram ao poder, os partidários de Lula trataram de fazer as
coisas que lhes permitissem permanecer no poder. Além de roubar como nunca
antes neste país, entre outras coisas, eles cortejaram os funcionários públicos,
aumentando-lhes desmedidamente os ganhos. Eu fui um dos beneficiados: meu
salário de professor cresceu muito, a partir de 2003 até, talvez, 2010. Caiu um
pouco, em termos reais, depois disso, mas permaneceu muito maior do que jamais
tinha sido durante toda a vida anterior das universidades públicas federais.
Tal
processo não deve ser confundido (mas se somou a ela) com a tomada de assalto
dos cofres públicos por parte de certas “categorias” (ah, expressãozinha
desgraçada!) de funcionários públicos. Essa precede a chegada do PT à
Presidência.
Desde
a redemocratização, ocorrida em 1985, classes como os auditores fiscais,
policiais federais, juízes, procuradores, deputados, senadores e poucas outras correlatas
perceberam o imenso poder que tinham, num ambiente politicamente aberto, de
chantagear o governo (qualquer que fosse ele), ameaçando-o com greves
devastadoras (caso do pessoal que cuida de coletar e cobrar impostos), com
investigações inconvenientes, com sentenças judiciais feitas sob medida, com
leis especialmente concebidas para destruir o país e, por decorrência, o
governo do momento.
Foi
usando esse poder que aquelas classes passaram a obter vantagens salariais e
outros benefícios pecuniários que jamais teriam sido imaginados por gente como
meu avô e meu pai. Ou por mim. Não foi o PT que inventou isso, mas ele ficou
muito feliz em atender a todas as demandas que essa gente fazia e continua a
fazer, até hoje.
O
que o PT inventou, ou aperfeiçoou notavelmente, foi a bajulação geral e
irrestrita ao funcionalismo público. Mesmo ao funcionalismo que não teria
forças para sitiar os governos, mas que, unido pelo agradecimento ao partido,
lhe asseguraria a votação necessária para a perpetuação no poder.
Junte
a isso o Bolsa Família, a elevação do salário mínimo (mesmo ao custo de
explodir a Previdência e as finanças municipais), as desonerações fiscais, o
crédito subsidiado para os empresários dispostos a pagar propinas, e você tem o
que parecia ser o Elixir da Longa Vida para o Partido dos Trabalhadores.
Tivemos sorte que circunstâncias outras (entre elas, a inacreditável
incompetência de Dilma Rousseff, uma pessoa, rigorosamente, débil mental)
apareceram, para desmascarar o jogo petista e possibilitar sua expulsão do
poder. Mas não a tempo de evitar a grande crise, inclusive, o agravamento da
situação previdenciária.
Foi,
portanto, nos anos da Grande Destruição que os salários dos funcionários
públicos (não apenas o das “categorias” mais privilegiadas) subiram muito e
insustentavelmente. Hoje, se meu irmão comparasse os rendimentos dos
engenheiros do setor privado com o que ganham os professores universitários já
não teria pena destes. Não houve melhoria de produtividade dos empregados
públicos, ou perda de eficiência dos engenheiros no setor privado, entretanto.
A elevação dos salários de gente, como eu, que trabalha ou trabalhou para o
governo, foi inteiramente devida a decisões políticas. Melhor dizendo, eleitoreiras.
Epílogo
No
passado, os que optavam por serem funcionários públicos sabiam que ganhariam
pouco. Um conjunto de outras vantagens compensava a inferioridade salarial. O
PT subverteu isso. Desconfio que hoje (embora não seja fácil compará-los com rigor), os
salários dos funcionários públicos estejam maiores que os pagos pelos empregos privados
correspondentes. Mas, a disciplina no trabalho continua a ser mais frouxa no
governo do que fora dele; a probabilidade de um funcionário público ser
demitido ainda é próxima de zero. E a aposentadoria, para os que entraram há
mais tempo, permanece integral. Misture isso tudo e conclua o óbvio: não podia
funcionar.
Vou
concluir perguntando: são os funcionários públicos os grandes
vilões das aposentadorias insustentáveis? Aritmeticamente, sim; na história real, menos. Estamos vivenciando a demonstração de que nenhum grupo de
pessoas pode se beneficiar permanentemente de privilégios que
implicam na destruição do país. O PT se aliou aos servidores do Estado para ganhar,
em retorno, seus votos. Aumentou nossos salários. Cobriu-nos de regalias. Hoje, estamos sendo
responsabilizados pela falência anunciada da Previdência. Quero, pelo menos,
dividir esta carga com o condenado Lula, a mulher sapiens Dilma,
e todos os seus aliados. Nunca fui um deles.
Até que enfim encontrei um artigo sobre o assunto que realmente faz sentido. Também sou servidor público federal, e reconheço que, de fato, essa é a realidade que estamos vivendo. Infelizmente, a grande maioria dos servidores públicos beneficiários desta situação têm muita dificuldade de reconhecer que o são, e na maioria das vezes, além de não se sentirem privilegiados, ainda insistem em dizer que trabalham muito e ganham o pouco, o que muitas vezes não condiz com a realidade, especialmente no serviço público federal. Também entendo que é difícil ter uma opinião definitiva sobre a reforma da Previdência, pois são muitas questões envolvidas (principalmente quando os políticos não dão o exemplo de enxugamento dos seus próprios gastos). No entanto, não há como negar que este sistema de aposentadoria que, no geral, privilegia o setor público em detrimento do setor privado, não se sustenta e precisa ser reformado. Parabéns pelo artigo.
ResponderExcluirObrigado pela consideração, Marcos Gregório. O assunto, concordamos, comporta várias facetas. Mantenho que havia um certo equilíbrio, até alguns anos atrás, entre as aposentadorias "privadas" e "públicas", pois as vantagens da aposentadoria integral eram compensadas pelas desvantagens várias de se ser servidor público. Cito mais uma dessas desvantagens, que ainda hoje persiste (e só me veio à lembrança depois de ter escrito o artigo): a proibição idiota de que servidores públicos possam participar da administração da (própria ou não) empresa. Ora, o que deveria haver seria uma cobrança de resultados (do servidor público enquanto tal. Se alguém pode dar conta com sobra de suas obrigações de servidor e ainda contribuir para o produto nacional com sua empresa, por que isso deveria ser proibido? Abraço.
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