(Entrevista concedida a José Milton de Castro,
em Viçosa, Alagoas, por José Aloísio Vilela, Jornal de Alagoas, Maceió, 5/8/1956)
(Nota
prévia: José Aloísio Brandão Vilela, 1903-76, que se casou com minha tia-avó
paterna Laura Soares Bahia, foi um dos integrantes da famosa Escola de Viçosa,
formada também pelos folcloristas Théo Brandão, José Maria de Melo e José
Pimentel de Amorim, todos autores de obras clássicas e premiadas nacionalmente.
Gustavo Maia Gomes)
Montado a cavalo, um cigarro apagado
esquecido no canto da boca, os olhos perdidos no lençol verde dos canaviais. A
usina soltou uma fumaçada pelo charuto imenso de seu bueiro e deu um urro
tremendo que se foi morrendo imprensado pelas gargantas da Serra dos Dois
Irmãos. E pareceu-me ouvir a voz bondosa de Jorge de Lima, a sussurrar-me,
baixinho:
– Ah, Usina, você engoliu os
banguezinhos do país das Alagoas...
Estava eu na Usina Boa Sorte, no
município de Viçosa. Aproximei-me do cavaleiro que continuava com seu cigarro
apagado no canto da boca. Era o folclorista José Aloísio Vilela, em suas
ocupações agrícolas e industriais. Disse-lhe do motivo de minha visita e chamei
uns caboclos para juntos tirarmos um retrato. O meu desejo era que esta
entrevista se tivesse realizado ali, sentindo o cheiro gostoso do açúcar
queimado nas estufas, junto daqueles homens simples, daquela terra vestida de
verde a quem o escritor José Aloísio Vilela dedica a sua vida e a sua inteligência.
Mas ele protestou com aquele seu jeitão engraçado de dizer as coisas:
– Qual entrevista, qual nada, seu
repórter? Você diga ao Arnaldo Jambo [editor
do Jornal de Alagoas, á época; passaria a ser diretor poucos dias depois da
publicação desta entrevista. GMG] que eu quero saber é quando chove. Quem
já viu nesta terra de Viçosa, neste mês do Senhor São João, o massapê rachando
e o barro vermelho levantando poeira? São estes fenômenos climáticos que estão
impressionando toda gente e fazendo com que o homem do campo bote a boca no
mundo num longo pedido de misericórdia.
QUEIXAS E RECLAMAÇÕES
Já se tinham passado três dias daquela
minha visita frustrada ao folclorista Aloísio Vilela, mas neste intervalo
muitas outras vezes estive com o escritor. O homem do “Coco” das Alagoas [dança folclórica, foi objeto do mais
conhecido livro de José Aloísio Vilela, que ele demorou, mas, afinal, publicou,
em 1961. GMG] não queria mesmo saber de entrevistas, e nem tampouco de
retratos. Tornei-me insistente, fiz-lhe as maiores lamúrias, mas nada... O
folclorista continuava firme no seu propósito.
Como, porém, acredito no provérbio de
que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, prossegui em minha luta.
Certo dia, invadi o seu gabinete de trabalho, em sua residência na Viçosa e
encontrei-o em plena atividade literária. Para não ser mais insistente do que
já vinha sendo, disse-lhe ter ido ali para conhecer a sua monografia sobre a
origem do “Coco”, apresentada no Congresso Nacional de Folclore, no Rio [1951]. Esse estudo sobre a tão debatida
origem do “Coco” é um trabalho de pesquisa, de erudição, escrito sem pressa.
Foi-lhe justa a citação de Câmara Cascudo no seu Dicionário Brasileiro do Folclore.
Não sei por que José Aloísio insiste
nessa sua teimosia de não querer publicar um livro. José Aloísio não atende às
solicitações que lhes são feitas para colaborar nos jornais, não atende ao
pedido de Veríssimo de Melo que em toda carta lhe escreve em letra de manchete:
“Lembre-se do livro que você deve ao Nordeste”. Parece não dar ouvidos às
referências aos seus trabalhos e à sua erudição de profundo conhecedor da
Ciência da Civilização Tradicional, feitas pelo grande Cascudo e pelo
inesquecível Leonardo Mota. Esse, já em 1939, escrevia nos jornais do Rio que
jamais suspeitara existir em Alagoas um folclorista como José Aloísio Vilela.
E isso foi em 39, e Aloísio Vilela
nunca parou de estudar. Possui uma grande biblioteca, está em dia com todo
assunto referente ao “folk” publicado no Brasil, mas permanece com essa psicose
de não querer ver o seu nome pelos jornais. O farto material inédito e
publicado que dá para uns cinco grossos volumes, colheu-os José Aloísio
diretamente do povo. É um homem teimoso e simples, esse folclorista de Viçosa.
Os já firmados nomes dos grandes
centros vivem a colher as suas pesquisas despretensiosas para encaixar em seus
volumes, porque ele não pretende publicá-las. O que quer, isso notei, é viver
na sua Viçosa. Em toda festa é convidado a discursar. É o orador da terra.
(Esse ano irá ser o Paraninfo da turma concluinte do Ginásio de Viçosa, a
convite dos ginasianos daquele estabelecimento de ensino.
O “coronel doutor” José Aloísio
Vilela, como o chama o mestre Cascudo, não quer saber de publicar livro. Quer é
estudar o folclore; quer é viver ali mesmo nas suas terras, sentindo o cheiro
bom dos canaviais, ouvindo o aboio dolente dos seus vaqueiros ecoando pelas
grutas de Viçosa, misturado com o gemer das águas do Paraíba, rasgando-se por
entre a Serra dos Dois Irmãos para cair nos braços alvos da cachoeira do
Inhamunhá. E eu bem sei que dali, daquela “cidadezinha” do país das Alagoas ele
jamais sairá atrás de glórias. O folclorista José Aloísio Vilela dedicou-se ao
estudo da poesia popular; por isso, ele é assim, simples como a poesia que
brota despretensiosa da boca do povo.
PLANTADOR DE CANA
Como insistisse em dizer que não
pretendia reunir os seus trabalhos em livro, perguntei-lhe para que então todo
aquele material colhido em tantos anos de pesquisa; por que razão um homem
culto e viajado como ele, que é convidado a comparecer a todos os congressos de
folclore do Brasil, teima em dizer que não é folclorista e não pensa em
publicar livro; é apenas um estudioso do folclore e plantador de cana. Então
ele sereno com aquele seu ar de matuto intelectualizado comentou a razão de ser
como é:
– Depois de entrosado novamente em
minha luta de obscuro plantador de cana do Nordeste, tenho a impressão de que
nunca saí dessas grutas da minha Viçosa, de que nunca me afastei dos limites
destes canaviais a que dediquei minha vida. Isto vem apenas provar que os
árduos trabalhos da agroindústria canavieira, as preocupações e as
responsabilidades, amortecem completamente em meu espírito as melhores
intenções de um possível folclorista.
FOLCLORISTA DA “RAZUEIRA”
– Folclorista José Aloísio, que acha o
sr. da nova orientação dos estudos folclóricos brasileiros?
– Tudo muito bonito no terreno da
dialética e da erudição. Mas tudo ainda muito incerto na real fixação de certos
elementos básicos da nomenclatura da realidade folclórica. A falta de
compreensão, a multiplicidade dos pontos de vista, fazem com que os mestres do
assunto não se entendam. E o excesso de erudição é o que está estragando as
melhores das intenções dos sábios e cientistas. Quando estes homens discutem, o
mundo se acaba e eles não chegam a um acordo.
Depois de uma pausa, prosseguiu:
– Mas eles têm razão, porque há por aí
um conceito de que “para ser folclorista é preciso ser sábio”. E, sendo assim,
você não me chame mais de folclorista. Entre os cantadores de viola, há uma
divisão interessante. A dos sábios que dizem cantar ciência e a dos analfabetos
que possuem apenas o instinto poético, a quem o povo chama de cantadores de
razueira. Estes dão por paus e por pedras e dão o seu recado, seja lá de que forma
for. Como homenagem muito especial, você pode me chamar de folclorista de
razueira.
E quando acabou de falar,
encontrava-se em meu bolso um seu retrato acompanhado de três famosos poetas
populares, que consegui roubar habilmente de um de seus arquivos.
A DECEPÇÃO DE MARINUS
Quando interrogado sobre o que achava
do resultado dos congressos folclóricos realizados no Brasil, declarou Aloísio
Vilela ter considerado os resultados do I Congresso Brasileiro de Folclore, no
Rio de Janeiro em agosto de 1951 mais satisfatórios do que o Congresso
Internacional de São Paulo [1954],
embora o Congresso Internacional tivesse a presença de sábios folcloristas como
Stith Thompson e Ralph George, dos Estados Unidos da América; Fernando Ortiz,
de Cuba; Jorge Dias e Jaime Lopes, de Portugal; Castillo de Lucas, da Espanha;
A. Marinus, da Bélgica; Tobias Rosemberg, da Argentina e muitos outros nomes de
fama internacional, não chegaram a uma conclusão lógica, ficando a própria
conceituação de fato folclórico no mundo da lua, apelando para os auspícios da
Unesco. E por causa disto, Aloísio Vilela acha que ainda hoje Joaquim Ribeiro e
Edison Carneiro estão discutindo e fazendo malabarismos de toda sorte.
Disse ainda José Vilela que o próprio
relator do Congresso Internacional realizado em São Paulo, A. Marinus,
escrevera não poder impedir de exprimir sua tristeza, sua decepção.
Continuando, declarou o escritor entrevistado que “a parte mais interessante do
Congresso foi o desfile folclórico, porque ali se viu “o elemento popular
cantando e dançando sem vaidade e pose, independente de mestres e
proprietários”, como dissera o velho Cascudo. E prosseguindo:
– Foi ali que tive a satisfação de ver as 500
mil pessoas que lotavam o Parque do Ibirapuera aplaudir entusiasmadamente a
coreografia e os cantos populares do Reisado de Viçosa. Nas palavras que
pronunciei nessa ocasião, frisei bem que São Paulo conhecia o Nordeste através
do espetáculo triste dos Paus de Arara. Mas o que todos estavam vendo ali era
uma paisagem diferente. Era o Nordeste que vibrava no pedestal da tradição,
elevando bem alto a flama da raça e da brasilidade.
– E a Escola de Viçosa, folclorista
Aloísio Vilela, como vai?
– Já lhe disse que não sou
folclorista. O que sou é plantador de cana, mas como você perguntou pela Escola
de Viçosa lhe digo que este caso está dentro de certos postulados do folclore.
É um vasto motivo de controvérsias. Colocando o negócio num ponto pacífico,
vamos dar razão a Diégues Jr., Aurélio Buarque, Valdemar Cavalcante, Humberto
Bastos e outros intelectuais de boa vontade que inventaram essa história de
Escola de Viçosa. Como você sabe, eram quatro os membros dessa Escola: Théo
Brandão, José Maria de Melo, José Pimentel Amorim e o folclorista de razueira
que fala neste momento.
Como na anedota dos quatro evangelistas,
esses quatro folcloristas estão reduzidos a dois: Théo Brandão e José Pimentel
de Amorim. O Dr. José Maria de Melo, por enquanto, está fazendo o secreto
folclore da política e eu como você sabe nem cavo nem tiro terra.
Era tarde no dia de São Pedro e eu me
encontrei com o folclorista José Aloísio Vilela no Clube de Viçosa, a apreciar
entusiasmado uma quadrilha infantil marcada por seu filho Paulo.
– Então vamos concluir a nossa
entrevista, perguntei.
– Não me atrapalha, rapaz, deixa eu
ver sossegado o menino marcar a sua quadrilha!
E no pátio do Clube, o jovem filho do folclorista marcava sisudo a bonita
dança dos nossos salões
imperiais:
“Cada
qual com sua dama
En avant tour
Chaine de dames
Chaine de chevaliers”
– E o livro, quando
publica? – indaguei-lhe insistente.
– Livro de quê? Autor de
livro é como cantador de viola, só presta bom. E já dizia com muita razão o
velho Manuel Nenén:
“De cantadores ruins
A nossa terra anda cheia.
De muito cabra safado
Que só faz figura feia
Como
esses que anda bebendo
E cuspindo a casa alheia”
É,
de autores ruins, o Brasil está repleto e o pior, querendo a força cuspir a
casa alheia.
– Sr. José Aloísio – interferi de novo
– Estou com o Veríssimo de Melo, o sr. deve um livro ao Nordeste e já é tempo
de pagá-lo, com juros!
– Olhe, vamos parar com isso... E diga
ao Jambo que só não o chamo aquele nome feio que o Cascudo chamou ao Condé dos
“Arquivos Implacáveis” [João Condé, 1912-69,
jornalista pernambucano nascido em Caruaru fez carreira no Rio de Janeiro. Sua
coluna semanal Arquivos Implacáveis, publicada na revista O Cruzeiro, revelava confidências de escritores famosos]
porque acho que ele é um rapaz direito.
[Fonte: “Excesso de erudição é que mata
intenções dos sábios e cientistas”. Entrevista de José Aloísio Vilela com José
Milton de Castro. Jornal de Alagoas, Maceió,
5/8/1956, 20 Caderno, págs. 1 e 4.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário