Gustavo Maia Gomes
Tendo participado como julgador – provavelmente,
no Rio de Janeiro – de festival de cantadores e repentistas nordestinos, Manuel
Bandeira compôs estes versos, parte de um poema mais extenso:
Saí dali
convencido
Que não sou
poeta, não;
Que poeta é
quem inventa
Em
boa improvisação [1]
Ignoro que festival foi aquele, nem isso importa
muito. Pode ter sido o de 1960, sobre o qual Théo Brandão escreveu “O cantador
que faltou”, no Diário de Notícias
(RJ), explicando: “Reporto-me a Manuel Floriano Ferreira, ao velho Manuel Neném,
de quem Aurélio Buarque de Holanda divulgou em 1939 (...) os repentes
extraordinários que causaram admiração nos meios intelectuais do Brasil”. Neném,
“nascido em Bom Conselho de Papacaça, Pernambuco, mas radicado desde novo em
Viçosa, Alagoas, (...) sempre se declarou viçosense”, depõe o historiador
Frederico Pernambucano de Melo.
Volto a Théo Brandão:
[Manuel
Neném] não era cantador como os de hoje, afeitos
aos grandes auditórios de rádios e televisões, que falam linguagem correta e
nunca rimam “pé macho com pé fêmea”. Não, Neném era um
poeta rude, trabalhador agrícola que ainda hoje o é e que cometia erros imperdoáveis,
cantava versos errados e sem sentido mas que, de súbito, em duas ou três
estrofes, redimia-se inteiramente e alçava-se aos voos mais puros e admiráveis
da poesia repentista.[2]
E, de novo, Frederico Pernambucano de Melo: “a
edição de 28 de junho de 1938 da Gazeta
de Alagoas (...) dava notícia da cantoria ocorrida em casa de Theo Brandão”.
No centro da festa regional, prossegue, estava “o poeta e repentista Manoel Neném,
nome artístico de Manoel Floriano Ferreira”. E ainda: “a frequência à casa de
Brandão [em Maceió] depõe a favor da qualidade de quem era considerado ‘o
melhor cantador do sertão alagoano”, como o apresenta a folha. Que diz ter o
poeta versejado por três horas, fazendo louvores aos presentes, cantando a
história de Lampião, improvisando uma interessante história do mundo...”[3]
Até meia
noite, ouviram-se os aplausos de José Aloísio Brandão Vilela
[casado com Laura Bahia, tia de Élide Bahia, esposa
de Théo], de Eloy e de Manoel Brandão, do padre
Diégues Neto, de Jacques Azevedo, de Nominando Maia Gomes [meu avô paterno; sua
mulher era tia de Élide], de Freitas Cavalcanti, de Humberto Bastos
[economista e jornalista, fez carreira no Rio de Janeiro], de
Aurélio Buarque de Holanda [dicionarista], de
Olympio de Almeida [sogro de Théo], de Joaquim e de Manuel Diégues Jr.
[sociólogo, pai do cineasta e membro da Academia Brasileira de Letras Cacá
Diégues][4]
Trabalhador agrícola, “poeta rude”, Manoel
Neném era analfabeto. Expressou isso, uma vez, de forma a não deixar dúvidas:
Sou
cantador atrasado
E meus
erros ninguém note
Eu só canto
porque Deus
Foi quem me
deu este dote
Mas eu só
conheço um O
Devido
à boca do pote [5]
Gostava de cantar, certamente, mais do que do
trabalho na terra:
A viola é
minha cruz.
Tou
crucificado nela
Enquanto eu
vida tive
Eu não
deixo o braço dela
Eu sou dela
e ela é minha
Ela
é minha e eu sou dela [6]
“Qual será, no meio de tantos cantadores o
maior de todos”, perguntava, em 1947, José Aloísio Brandão Vilela. E respondia:
“Manoel Neném é o maior cantador do Nordeste”. Opinião de quem entendia do
assunto. “Basta se fazer um estudo comparativo entre a sua poesia e a dos
outros cantadores para se notar a enorme diferença”, dizia o folclorista de
Viçosa.
Os
seus repentes são originais, as suas imagens são deslumbrantes, a sua veia
poética é inesgotável. E além de tudo é o poeta matuto que mais se volta para
os motivos regionais. Suas imagens são tiradas do ambiente em que vive, suas
comparações palpitam de um forte e delicioso nativismo. Há momentos em sua
cantoria em que ele se transfigura e atinge, pela naturalidade e pela
expressão, os elevados domínios da poesia pura.[7]
As cantorias de Manoel Neném, como toda boa
literatura, não importa se oral ou escrita, exprimem de forma bela, envolvente,
emocionante, a realidade de seu meio. Como nestes versos, recolhidos por José
Aloísio Brandão Vilela:
Criei-me
sem pai nem mãe
No meio
deste sertão
Andando de
déo em déo
Fui criado,
meu patrão,
Com o sol e
com a chuva
Como
as ramas do algodão [8]
E, finalmente, um último depoimento, o de Aleixo
Leite Filho, publicado em 1983: “Manoel Neném, apesar dos noventa e três anos e
de paralisia recente que o prende à cama, continua lúcido e capaz de improvisar,
como o fez recentemente, glosando o mote ‘Adeus até outro dia’ com que um companheiro
mais moço se despedia dele”.[9]
Eis o improviso:
Estou quase
de ida,
Pra ir pra
eternidade
Já estou
sentindo a saudade
Da hora da
despedida;
É breve
minha partida,
E parto sem
companhia;
Eu vou
fazer poesia
Pra os
anjos celestiais
E você não
me vê mais
Adeus
até outro dia [10]
Manoel Floriano Ferreira, o célebre Manoel
Neném de Viçosa deve ter morrido pouco depois disso. Desde meados do século XX,
ele, que havia nascido em 1894, já mostrava sinais de que os anos não lhe
haviam passado sem cobrar seu preço.
[1] Manuel
Bandeira, Estrela da Vida Inteira. Rio
de Janeiro, 25ª ed., 1993, págs. 256-57.
[2] Théo Brandão, “O cantador que faltou”, Diário de Notícias (RJ), 1/5/1960. A
citação anterior é de Frederico Pernambucano de Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do rei do
cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[3] Frederico Pernambucano de
Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do
rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[4] Frederico Pernambucano de
Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do
rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[5] Cf. Manuel
Diégues Jr. “Poetas que nascem feitos: Os cantadores do Nordeste”. Américas, 1958, em http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=cdu&pagfis=10395
[6] Cf. Théo Brandão, “O cantador que faltou”, Diário de Notícias (RJ), 1/5/1960.
[7] “A vida dos cantadores” (publicado
originalmente em 1947), em José Aloísio Brandão Vilela, Coletânea de assuntos folclóricos, Maceió, Museu Théo Brandão, 1982,
pág. 39.
[8] Cf. “A vida dos cantadores” (publicado
originalmente em 1947), em José Aloísio Brandão Vilela, Coletânea de assuntos folclóricos, Maceió, Museu Théo Brandão, 1982,
pág. 39.
[9] Aleixo Leite
Filho, “O glosador genuíno”, Boletim da
Comissão Catarinense de Folclore, 1983, nos 35-36, em http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/Boletim%20de%20Folclore/boletim%20folclore/BFC1983DEZ035-036.pdf
Acesso em 6/5/2019.
[10] Cf. Aleixo
Leite Filho, “O glosador genuíno”, Boletim
da Comissão Catarinense de Folclore, 1983, nos 35-36, em http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/Boletim%20de%20Folclore/boletim%20folclore/BFC1983DEZ035-036.pdf
Acesso em 6/5/2019.
Gustavo Maia Gomes
Tendo participado como julgador – provavelmente,
no Rio de Janeiro – de festival de cantadores e repentistas nordestinos, Manuel
Bandeira compôs estes versos, parte de um poema mais extenso:
Saí dali
convencido
Que não sou
poeta, não;
Que poeta é
quem inventa
Em
boa improvisação [1]
Ignoro que festival foi aquele, nem isso importa
muito. Pode ter sido o de 1960, sobre o qual Théo Brandão escreveu “O cantador
que faltou”, no Diário de Notícias
(RJ), explicando: “Reporto-me a Manuel Floriano Ferreira, ao velho Manuel Neném,
de quem Aurélio Buarque de Holanda divulgou em 1939 (...) os repentes
extraordinários que causaram admiração nos meios intelectuais do Brasil”. Neném,
“nascido em Bom Conselho de Papacaça, Pernambuco, mas radicado desde novo em
Viçosa, Alagoas, (...) sempre se declarou viçosense”, depõe o historiador
Frederico Pernambucano de Melo.
Volto a Théo Brandão:
[Manuel
Neném] não era cantador como os de hoje, afeitos
aos grandes auditórios de rádios e televisões, que falam linguagem correta e
nunca rimam “pé macho com pé fêmea”. Não, Neném era um
poeta rude, trabalhador agrícola que ainda hoje o é e que cometia erros imperdoáveis,
cantava versos errados e sem sentido mas que, de súbito, em duas ou três
estrofes, redimia-se inteiramente e alçava-se aos voos mais puros e admiráveis
da poesia repentista.[2]
E, de novo, Frederico Pernambucano de Melo: “a
edição de 28 de junho de 1938 da Gazeta
de Alagoas (...) dava notícia da cantoria ocorrida em casa de Theo Brandão”.
No centro da festa regional, prossegue, estava “o poeta e repentista Manoel Neném,
nome artístico de Manoel Floriano Ferreira”. E ainda: “a frequência à casa de
Brandão [em Maceió] depõe a favor da qualidade de quem era considerado ‘o
melhor cantador do sertão alagoano”, como o apresenta a folha. Que diz ter o
poeta versejado por três horas, fazendo louvores aos presentes, cantando a
história de Lampião, improvisando uma interessante história do mundo...”[3]
Até meia
noite, ouviram-se os aplausos de José Aloísio Brandão Vilela
[casado com Laura Bahia, tia de Élide Bahia, esposa
de Théo], de Eloy e de Manoel Brandão, do padre
Diégues Neto, de Jacques Azevedo, de Nominando Maia Gomes [meu avô paterno; sua
mulher era tia de Élide], de Freitas Cavalcanti, de Humberto Bastos
[economista e jornalista, fez carreira no Rio de Janeiro], de
Aurélio Buarque de Holanda [dicionarista], de
Olympio de Almeida [sogro de Théo], de Joaquim e de Manuel Diégues Jr.
[sociólogo, pai do cineasta e membro da Academia Brasileira de Letras Cacá
Diégues][4]
Trabalhador agrícola, “poeta rude”, Manoel
Neném era analfabeto. Expressou isso, uma vez, de forma a não deixar dúvidas:
Sou
cantador atrasado
E meus
erros ninguém note
Eu só canto
porque Deus
Foi quem me
deu este dote
Mas eu só
conheço um O
Devido
à boca do pote [5]
Gostava de cantar, certamente, mais do que do
trabalho na terra:
A viola é
minha cruz.
Tou
crucificado nela
Enquanto eu
vida tive
Eu não
deixo o braço dela
Eu sou dela
e ela é minha
Ela
é minha e eu sou dela [6]
“Qual será, no meio de tantos cantadores o
maior de todos”, perguntava, em 1947, José Aloísio Brandão Vilela. E respondia:
“Manoel Neném é o maior cantador do Nordeste”. Opinião de quem entendia do
assunto. “Basta se fazer um estudo comparativo entre a sua poesia e a dos
outros cantadores para se notar a enorme diferença”, dizia o folclorista de
Viçosa.
Os
seus repentes são originais, as suas imagens são deslumbrantes, a sua veia
poética é inesgotável. E além de tudo é o poeta matuto que mais se volta para
os motivos regionais. Suas imagens são tiradas do ambiente em que vive, suas
comparações palpitam de um forte e delicioso nativismo. Há momentos em sua
cantoria em que ele se transfigura e atinge, pela naturalidade e pela
expressão, os elevados domínios da poesia pura.[7]
As cantorias de Manoel Neném, como toda boa
literatura, não importa se oral ou escrita, exprimem de forma bela, envolvente,
emocionante, a realidade de seu meio. Como nestes versos, recolhidos por José
Aloísio Brandão Vilela:
Criei-me
sem pai nem mãe
No meio
deste sertão
Andando de
déo em déo
Fui criado,
meu patrão,
Com o sol e
com a chuva
Como
as ramas do algodão [8]
E, finalmente, um último depoimento, o de Aleixo
Leite Filho, publicado em 1983: “Manoel Neném, apesar dos noventa e três anos e
de paralisia recente que o prende à cama, continua lúcido e capaz de improvisar,
como o fez recentemente, glosando o mote ‘Adeus até outro dia’ com que um companheiro
mais moço se despedia dele”.[9]
Eis o improviso:
Estou quase
de ida,
Pra ir pra
eternidade
Já estou
sentindo a saudade
Da hora da
despedida;
É breve
minha partida,
E parto sem
companhia;
Eu vou
fazer poesia
Pra os
anjos celestiais
E você não
me vê mais
Adeus
até outro dia [10]
Manoel Floriano Ferreira, o célebre Manoel
Neném de Viçosa deve ter morrido pouco depois disso. Desde meados do século XX,
ele, que havia nascido em 1894, já mostrava sinais de que os anos não lhe
haviam passado sem cobrar seu preço.
[1] Manuel
Bandeira, Estrela da Vida Inteira. Rio
de Janeiro, 25ª ed., 1993, págs. 256-57.
[2] Théo Brandão, “O cantador que faltou”, Diário de Notícias (RJ), 1/5/1960. A
citação anterior é de Frederico Pernambucano de Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do rei do
cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[3] Frederico Pernambucano de
Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do
rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[4] Frederico Pernambucano de
Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do
rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[5] Cf. Manuel
Diégues Jr. “Poetas que nascem feitos: Os cantadores do Nordeste”. Américas, 1958, em http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=cdu&pagfis=10395
[6] Cf. Théo Brandão, “O cantador que faltou”, Diário de Notícias (RJ), 1/5/1960.
[7] “A vida dos cantadores” (publicado
originalmente em 1947), em José Aloísio Brandão Vilela, Coletânea de assuntos folclóricos, Maceió, Museu Théo Brandão, 1982,
pág. 39.
[8] Cf. “A vida dos cantadores” (publicado
originalmente em 1947), em José Aloísio Brandão Vilela, Coletânea de assuntos folclóricos, Maceió, Museu Théo Brandão, 1982,
pág. 39.
[9] Aleixo Leite
Filho, “O glosador genuíno”, Boletim da
Comissão Catarinense de Folclore, 1983, nos 35-36, em http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/Boletim%20de%20Folclore/boletim%20folclore/BFC1983DEZ035-036.pdf
Acesso em 6/5/2019.
[10] Cf. Aleixo
Leite Filho, “O glosador genuíno”, Boletim
da Comissão Catarinense de Folclore, 1983, nos 35-36, em http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/Boletim%20de%20Folclore/boletim%20folclore/BFC1983DEZ035-036.pdf
Acesso em 6/5/2019.
Parabéns pela homenagem e pelo tema. Manoel de Neném, Pinto do Monteiro, os irmãos Otacílio, Lourival Patriota; o cego Aderaldo, Romano da Mãe D'Água; Ignácio da Catigueira e alguns outros viveram o Mundo Encantado da Poesia Nordestina. Pena, que estejam tão esquecidos.
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