quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

As duas mortes de um magistrado



Gustavo Maia Gomes


Nominando Maia Gomes morreu em 1966. Nesse ano, ele morava em Maceió, na Rua João Pessoa, 99, com Tereza, Marieta e seus remédios. E um piano cujos últimos Recuerdos de Ypacaraí há muito se haviam perdido. Desde 1964, as controvérsias em torno da venda de Monte Verde o tinham afastado bastante, embora não totalmente, do filho, Mauro, que nunca se conformou em deixar de ser o seu único herdeiro, pois agora haveria uma Tereza também querendo a parte dela. Lembro-me de que, à época, embora eu fosse um menino de 17 anos, tendia a achar que o avô tinha, sim, o direito de se casar novamente. Em semelhante clima, contudo, quando ele morreu, os tênues laços existentes entre Tereza e nós – filho, nora e netos de Nominando – se extinguiram completamente. Ninguém lembra, sequer, o seu sobrenome.

Mas, a morte, em 1966, não foi a última de Nominando, assim como não tinha sido, meio século antes, a de Alípio; e nem seria, em 1972, a última morte de Fernando a que os médicos viriam a atestar. A aniquilação final dos três Maia Gomes que deixaram o campo e foram morar nas cidades somente se completaria 20, 30 anos depois, com o desmoronamento definitivo do mundo em que eles, seus pais e irmãos haviam nascido. Um mundo feito de terras, cana e açúcar; de trabalhadores, alguns, apegados aos patrões por genuína amizade, como o foram Abílio, Lupicínia, Jairo, Apolinário, em Monte Verde; de engenhos e usinas; de João Barbeiro, em Branquinha, cortando o cabelo de rapazes e homens em quatro gerações; de riquezas muitas vezes fictícias e dívidas invariavelmente asfixiantes; de brigas familiares e assassinatos. Mas, também, de beleza rústica, coragem extrema, ternuras contidas, poesias apenas esboçadas. Um mundo de luízas, elisettes, afras, marias, josefas e terezas; marietas, talvez – as mulheres deles: todos os três irmãos se casaram mais de uma vez.

Foi somente quando esse mundo desapareceu para sempre que os alípios, fernandos e nominandos morreram pela segunda vez e, então, definitivamente. Quando sumiram as terras próprias e ficaram as que o banco havia tomado; quando se fecharam os engenhos e se arruinaram as usinas; quando morreram ou foram embora os trabalhadores leais; quando os irmãos já não brigavam com os irmãos, nem os sobrinhos com os tios, nem os primos com outros primos. Pior do que isso tudo: Nominando morreu sem volta quando já ninguém mais podia chegar àquele lugar tão dele montado em um vagão de primeira classe puxado por uma locomotiva de segunda. Meu avô morreu quando o trem sumiu. Quando o trem para Branquinha sumiu.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Graciliano e Josefa; Nominando e Marieta




Segundo as difusas lembranças de Ivan Pedrosa de Maia Gomes, neto de Nominando, essa poderia ter sido a casa em que seu avô residiu, em, pelo menos, um período, nos anos quarenta ou cinquenta do século passado, em São José da Laje (AL) A fotografia é de Ivan e foi tirada em 2016.

Gustavo Maia Gomes

Ao saber como se chamava meu avô paterno, uma pessoa amiga, cunhada da segunda safra, exclamou: “Não é um nome; é um gerúndio!” –- Pois, sim. Nominando Maia Gomes (1887-1966) havia sido promotor público e juiz, mas, quando o conheci, passava o dia em casa. Uma vez, eu ainda garoto, minha mãe quis saber de meus projetos de vida. Respondi-lhe que queria ser como ele: trabalhar aposentado. (E não é o que faço, hoje?)

Nominando era filho de Manoel Gomes dos Santos (1841-1925) -– coronel bom de briga –- e de Teresa de Jesus Maia (c.1851-c.1930). Formou-se, em 1911, pela Faculdade de Direito do Recife, com a primeira turma a terminar o curso após a conclusão do novo (e belíssimo) prédio ainda hoje em uso. Foi colega de celebridades futuras, como Francisco Pontes de Miranda, F. Pessoa de Queiroz e Francisco Barreto Campello. Casou-se, em ano próximo a 1915, com Josefa Costa Bahia (1890-1954), filha de Ernestina de Azevedo Cruz (c.1870-1906) e Francisco da Costa Bahia (1867-1921). Esse último, pernambucano de nascimento (Bom Conselho), mudou-se para Alagoas e ali se tornou um rico comerciante, em cidades como Pilar, Atalaia e Viçosa. Nominando e Josefa tiveram apenas um filho, Mauro Bahia de Maia Gomes (1916-97), meu pai.[i] 

Em Viçosa, aonde foram residir com os filhos, em 1903, Francisco da Costa Bahia e Ernestina de Azevedo Cruz se tornaram amigos da família de Graciliano Ramos (1892-1953). Nem os Bahia, nem os Ramos, contudo, eram dali. Os pais do escritor casaram-se em Palmeira dos Índios (AL, 1891), mudaram-se para Quebrângulo (AL, 1892), onde nasceu Graciliano, depois para Buíque (PE, 1895), e apenas em 1899 chegaram a Viçosa, quatro anos antes de Francisco Bahia, sua mulher e filhos.

Na pequena cidade alagoana, Josefa e Graciliano, que eram quase da mesma idade, devem ter convivido bastante, enquanto crianças e adolescentes. A julgar por uma carta a Graciliano escrita por meu pai, em ano próximo a 1939, a amizade entre as duas famílias se prolongou até depois de os Ramos terem saído de Viçosa (1905) e Josefa Bahia ter se casado (c.1915) e ido morar na Fazenda Monte Verde, em Branquinha, Alagoas. Francisco Bahia, pai de Josefa, sogro de Nominando, permaneceu residindo em Viçosa até se suicidar, em 1921, aparentemente, pressionado por dívidas comerciais que ele sabia impagáveis. Matou-se -- detalhe cruel -- em frente ao túmulo da primeira mulher, Ernestina, embora estivesse casado há quinze anos com a segunda, Alice Soares.[ii] 

Um dia, já viúvo, de passagem por minha casa (1962? 1963? Eu, adolescente, ainda morava com meus pais), meu avô pediu-me que o ensinasse a operar a radiola (aparelho reprodutor de sons gravados em discos; só o Google ainda lembra o que era isso). Iria receber uma visita feminina. A música deve ter sido boa (lembro-me de que gostava de operetas e, na veia mais popular e romântica, da guarânia “Recuerdos de Ypacaraí” -– com o Trio Yrakitan, devia ser), pois ele casou-se com a Tereza visitante alguns meses passados do episódio. Antes dela – e depois, também –, desde quando Josefa (que detestava seu nome e só queria ser chamada de Maninha), ainda vivia, houve Marieta Cassella (1892-1988), de São José da Laje (AL), cidade próxima a Branquinha, onde Nominando fora juiz. Não sei se os dois foram namorados; amigos muito próximos, sim. Amantes platônicos, talvez.

Marieta teve vida própria destacada -– na política e na assistência social -–, sendo reconhecida como uma benfeitora da pequena cidade onde nasceu e viveu quase toda a vida. Havia uma evidente simpatia entre meu avô e ela. Quando Nominando enviuvou, em 1954, Marieta ainda devia ser casada, mas seu marido, o Cassellinha, tinha tido algum problema que o deixara imobilizado. (Não sei quando isso aconteceu; em 1953, o casal Cassella visitou Monte Verde. Ele não devia estar inválido, ainda.) Meu avô não esperou que ele morresse: casou-se com Tereza, por volta de 1963.

Alguns anos à frente, aí, sim, com certeza, já viúva, Marieta, praticamente, transferiu-se para a casa de Nominando e Tereza, que a acolheram muito bem à Rua João Pessoa (antiga Rua do Sol) no 99, na região central de Maceió, lugar que muito frequentei nos anos 1960. A amiga administrava os remédios do velho Nominando, o que mantinha os dois o dia todo ocupados. Eu conheci apenas essa Marieta de pendores domésticos e preocupações farmacêuticas que, na casa de meu avô, parecia uma mulher, em tudo, igual às outras. Tive uma grata surpresa quando soube que, por trás daquela figura comum, havia uma personalidade feminina à frente de seu tempo. 

"Marieta Bezerra Cassella, filha do Major Olympio Bezerra e chefe política de São José da Laje da Laje (...), foi a líder feminista que ingressou no quadro partidário da extinta UDN, União Democrática Nacional, para, nos anos 1950 (sic), junto ao então candidato ao Senado da República Arnon de Mello, colocar sua terra e sua gente nos caminhos da prosperidade. Arregaçou as mangas e empreendeu campanhas vitoriosas, contribuindo diretamente para a vitória do amigo Arnon. Com seu prestígio, Marieta conseguiu eleger o médico Mário Guimarães prefeito dos lajenses."[iii] 

Arnon Afonso de Farias Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor de Mello, já tinha sido governador de Alagoas quando se candidatou a senador (e foi eleito), em 1962. Um ano depois, em plena sessão do Senado, tentou acertar com um tiro de revólver seu arqui-inimigo político Silvestre Péricles. De valentia inversamente proporcional à sua habilidade com a arma, terminou matando o colega José Kairala, do Acre, que nada tinha a ver com aquela briga alagoana. Mas, voltando a Marieta: 

"A sua residência era o reduto maior dos udenistas. Não havia nem dia nem hora para se traçar planos de trabalho voltados para o crescimento da sigla partidária na região da Mata alagoana. Era amiga fiel do senador e jornalista Arnon de Mello e de sua esposa Leda Collor de Mello, a quem recorria sempre para ajudá-la nas campanhas caritativas. No campo social, (...) liderava um grupo de senhoras (...) para trabalhar pelas famílias pobres de Laje. Foi presidente da LBA e, ainda, dirigiu a Escola Reunida de Corte e Costura e a Escola Educacional Joana D’Arc locais."[iv] 

Em reconhecimento pelos serviços prestados por Marieta Cassella à sua cidade, a Câmara Municipal de São José da Laje criou (e lhe concedeu, em data que não pude determinar) a Comenda de São José. Daí o seu título, evocado por Mauro Sélvio, de “Comendadora”. Marieta sobreviveu 22 anos ao seu amigo, talvez, grande amor sublimado, Nominando Maia Gomes. Ele morreu em 1966; ela, em 17 de janeiro de 1988.





[i] Em Os Bahia de Almeida (Maceió, Venha Ver Editora de Comunicação, 2015), Sérgio de Almeida Nobre identifica o quinto filho de Francisco da Costa Bahia e Ernestina de Azevedo Cruz como Josefa de Azevedo Bahia. O site Family Search, entretanto (mais confiável, pois sua fonte é a respectiva certidão de nascimento) informa que o nome da minha futura avó paterna era Josefa Costa Bahia, filha do casal já mencionado acima, nascida em Nossa Senhora do Pilar, Alagoas, em 22/6/1890. Seus irmãos e irmãs (segundo Sérgio de Almeida Nobre) foram (no primeiro casamento de Francisco) Olavo, José, Francisco, Maria e Aládia, a "Tia Mocinha", que meu pai sempre visitava em sua casa próxima à Praça Sinimbu, em Maceió. No segundo casamento, Helena, Laura, Maria José, Olga, Luiz e Francisca.

[ii] As informações sobre as andanças dos pais de Graciliano Ramos estão em http://graciliano.com.br/site/vida/linha-do-tempo/ (acesso em 16/1/2017). A amizade entre as famílias Ramos e Bahia é mencionada na carta de Mauro Bahia de Maia Gomes ao escritor alagoano (sem data, mas, pelo contexto, deduzo que foi escrita em ano próximo a 1939), conservada no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Tenho uma cópia dessa carta, fotografada por Ivan Pedrosa de Maia Gomes no próprio Instituto da USP. O trágico fim de Francisco da Costa Bahia foi registrado nos jornais da época e está descrito em Sérgio de Almeida Nobre, Os Bahia de Almeida, citado.

[iii] Mauro Sélvio. Lembrando a Comendadora. In MS Repórter Social, http://msrepsocial.blogspot.com.br/2008/02/lembrando-comendadora.html (15/2/2008)


[iv] Mauro Sélvio, citado.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Macondo em Branquinha

Depois de 40 anos, volto a ler "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Marquez. Aprecio-o sem moderação, tanto quanto na primeira leitura. Lembrei-me dele porque o livro que estou escrevendo também tem como personagens os membros de uma família. No meu caso, para ser exato, de várias, que se entrelaçam num enredo de dois séculos.

"O Trem para Branquinha" não passa em Macondo e as histórias que conta, ao contrário das de "Cem Anos", são reais. Seus personagens, portanto, carecem da mesma liberdade de agir que os Josés Arcádios e Aurelianos Buendía inventados por Garcia Marquez tiveram. Mesmo assim, alguns deles viveram vidas bem se poderia dizer literárias, quase de realismo fantástico

Alguns casos, já contei. Como o de Henri Quanz, fabricante de cerveja, que brigou em francês com o sócio alemão num jornal brasileiro, o Diário de Pernambuco. E o do primeiro Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa, que parou de falar para sempre em seguida a ser chamado publicamente de ladrão. Aconteceu em Santa Rita, Paraíba. (Imagine se seu exemplo fosse seguido hoje. Brasília ia ser a capital mundial dos mudos.)

Outros casos, conto agora. A esposa de Manoel Sebastião, Maria Margarida Kuhn, fazia doces e usava crinolinas e anquinhas por baixo das roupas visíveis. Ela era do tempo em que as mulheres pegavam fogo, pois aqueles vestidos armados altamente inflamáveis só podiam ser retirados do corpo com muito trabalho de duas amas. Nem sempre dava tempo de evitar as mortes e queimaduras inerentes à alta costura.

José Gomes de Freitas brigou tão feio com a família que trocou de sobrenomes no cartório (e fez o mesmo com os filhos menores), passando a se assinar Damara. Isso, antes de morrer assassinado com 31 facadas, na frente da igreja de União dos Palmares, Alagoas. Tinha acabado de assistir à missa dominical. Mataram-no dois irmãos que Damara havia expulso de sua terra. (Deixo o "sua" com a dubiedade que lhe é inevitável e, no contexto, adequada.)

Mário Pedrosa nasceu em Timbaúba, Pernambuco, mas morou quase no mundo todo: Lausanne, Paris, Nova York, Rio de Janeiro... Comunista militante e internacional, brigou, primeiro, com Stálin e, depois, com Trotski. Ainda teve tempo de ser um dos fundadores do famigerado Partido dos Trabalhadores. Morreu logo depois, sem saber que tinha errado pela terceira vez.

Em Maceió, Álvaro Batinga era advogado nas horas de trabalho e amante de mulheres mil no restante do tempo. Ainda jovem, seduziu uma mulher casada. O corno soube e partiu para a desforra. Armado. Dirigiu-se ao cartório aonde o Dom Juan ia todos os dias. Entrou perguntando quem era o Dr. Batinga. — Aquele ali, de costas — foi informado. O homem avançou três passos e disparou seis vezes. Matou o irmão do desafeto, Claudio, estudante que tinha nada a ver com o caso.

Álvaro Batinga da Rocha Cavalcante viveu mais meio século. Cinquenta anos de solidão?

(Publicado no Facebook em 12/1/2017.)

Não li e não gostei

Estimulado pelo artigo de Carlos Góes, cujo link está abaixo (agradeço a Paulo Roberto de Almeida a indicação), exponho umas poucas considerações preconceituosas sobre um livro que fez muito sucesso dois anos atrás: O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty.

Desde seu lançamento, tomei a decisão de não o ler. Nunca me arrependi disso. (O mesmo posso dizer em relação aos livros de Paulo Coelho.) Ninguém pode ler tudo de 700 páginas. Alguma pre-seleção todos nós fazemos. A minha, acredito, teve sua lógica. Ela se baseou no fato de que Piketty é um economista francês.

Os economistas franceses estão, para o mundo moderno, como as sete pragas do Egito estiveram para o seu tempo e lugar. (Deve haver exceções, mas as desconheço.) São todos "de esquerda", revoltados contra o capitalismo que os fez ricos. São, também, críticos ferozes do sistema político que lhes garante o direito de passar a vida escrevendo bobagens sem perder o salário. E simpatizam com Cuba, onde não poderiam ser nem uma coisa, nem outra.

Por essas e outras, não li Piketty. Mas li sua matriz inspiradora: O Capital do século XIX. Foi o bastante.

(Publicado no Facebook em 10/1/2017.)

Bom Português

Estou impaciente com o uso repetido de expressões que, contrabandeadas do inglês, soam mal em nossa língua. Por exemplo: um jogador de futebol sempre diz "eu dei meu melhor" quando tenta explicar, ao término das partidas, por que ganha tão bem e joga tão mal.

Tudo começou, imagino, com um saracutinguense globalizado que, jogando no Kuwait, vivia repetindo, como desculpa por perder os jogos: "ai dide mái béste, ai dide mái béste", até convencer os dirigentes do seu time que o béste dele era aquela shit mesmo, e que, portanto, deviam mandá-lo de volta para a whore que lhe tinha parido.

Jornalistas, por seu turno, adoram falar em "núcleo duro". Para eles, até a maior moleza tem um "núcleo duro". Claro, a matriz da expressão é o "hard core", usado em países de língua inglesa. Só que, mesmo ali, ninguém mais aguenta tanto "hard core". Sem pensar direito, traduzimos a expressão e passamos a falar em núcleo duro, núcleo duro... "Núcleo duro" é caroço.

Também tem a tal "zona de conforto". Essa frequenta as conversas da intelectualidade esquerdista, quando ela tenta explicar por que, considerando a grave crise do capitalismo financeiro internacional ("mais uma cerveja, garçom"), o Lulinha roubou pra caramba. Sofisticação desnecessária: antigamente, em bom português, "zona" era o bairro das prostitutas. O conforto estava implícito.

Isso dito, não espero que meus conselhos venham a ser acatados. Afinal, o governo está fazendo o seu melhor, mas o caroço da política econômica ainda vai trazer grandes problemas para quem não admite sair da zona.

(Publicado no Facebook em 7/1/2017.)

Uma questão de graus


Ninguém mais, fora dos Estados Unidos, parece lembrar de Mark Twain, o escritor morto em 1910. De Will Durant (1885-1981), ainda menos. Esse escrevia pelos cotovelos. Com sua mulher, Ariel, produziu uma "História da Civilização" em muitos volumes, pela qual jamais me interessei. Mas, Will Durant foi autor de dois livros que me marcaram. Dou-lhes os títulos em traduções: "Os Grandes Pensadores" e "Filosofia da Vida".

Li-os quando ainda era um garoto, ou quase. O primeiro, emprestado da Biblioteca Pública de Casa Amarela (o bairro do Recife onde voltei a morar, trinta anos depois). Foi em "Os Grandes Pensadores" que primeiro soube de Oswald Spengler, Hermann Keyserling, Gustave Flaubert, Anatole France e, sobre todos, Bertrand Russell. "Filosofia da Vida", por seu turno, me apresentou a muito mais gente que amava os livros. Inclusive, Mark Twain.

Cito Will Durant, de memória: 

"Há vinte anos, Mark Twain filosofava. — O corpo e a alma são entidades independentes? — Sim. — Então, me diga: como a alma se comporta quando o corpo está bêbado?"

Lembrei-me desse diálogo ao enfrentar, num fim de semana qualquer, em cidade onde tais coisas acontecem, os termômetros marcando 38 graus e a televisão dizendo que a "sensação térmica" era ainda pior. Experimente caminhar pela rua num dia assim. A mais extraordinária atração turística perderá para um boteco refrigerado; as janelas do metrô parecerão mais belas do que o encontro das montanhas com o mar; nada será melhor que um copo d'água bem gelada.

Aprendi, enfim, como a alma se comporta quando o corpo está submetido a uma "sensação térmica" de 46 graus.

(Publicado no Facebook, 6/1/2017)

Atualidade de Gilberto Freyre

Gustavo Maia Gomes

Confesso (não é a primeira vez que o faço) ser um admirador tardio do sociólogo e antropólogo pernambucano Gilberto Freyre. Se não o fui mais cedo foi porque, durante anos — até meados dos 1980 —, subscrevi sem a devida crítica o pensamento esquerdista então dominante, para o qual a única boa sociologia era aquela que tinha como dogma a inevitabilidade da revolução e como dever sagrado contribuir para apressá-la.

Os "social-revolucionários" (estou pensando nos anos 1960-80) eram, principalmente, paulistas: Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e outros. Eles trataram de diminuir o valor da obra de Freyre que, evidentemente, não compactuava com a ideologia de raízes marxistas cultivada pelos sociólogos da Universidade de São Paulo. O tempo se encarregou de recolocar as coisas em seus devidos lugares. E foi Gilberto Freyre, não os paulistas, quem passou melhor no teste.
Não que a obra gilbertiana tenha sobrevivido intacta a quase um século de escrutínio (Casa Grande e Senzala, como sabemos, é de 1933). Mas, muita coisa dela ainda se lê, hoje, com prazer e proveito.

Em contraste, quem aguenta ler Florestan Fernandes, cujos livros, hoje com pouco mais de cinquenta anos, já eram intoleravelmente chatos nas primeiras edições? Quem leria, hoje, o Fernando Henrique Cardoso dos anos setenta, não tivesse ele sido presidente da República décadas depois?
Ninguém mais lê essa gente porque os pilares de sua sociologia eram feitos de pau oco. A "Revolução" tão ansiada pelos sociólogos paulistas revelou ser um mito enquanto previsão histórica para o Brasil e um erro fatal como objetivo da ação política. (Pois a "Revolução" aconteceu, sim, ou já tinha acontecido, em países como a Rússia, a China, a Coreia do Norte, Cuba... Todos eles, enquanto permaneceram socialistas, foram fracassos econômicos e infernos políticos.)

E quanto a Freyre? Em 1948, ele escreveu assim (já o tinha feito década e meia antes):

"Meu ponto de vista na interpretação da história do homem brasileiro continua [a ser] o de quem enxerga nessa formação e nesse homem, ao lado de um processo biológico — o da miscigenação —, mas quase independente dele, a ação, a expansão, o desenvolvimento de um processo social: o da interpenetração de culturas. Processo que tem agido menos no sentido de desintegração ou degradação de qualquer das culturas presentes na nossa formação que no da integração de todas numa sociedade e numa cultura nova e híbrida, múltipla e rica, ainda que confusa, em suas heranças, em suas técnicas de desenvolvimento, em seus valores e estilos de vida moral e intelectual, estética e material." (Gilberto Freyre, Ingleses no Brasil, Introdução, Rio de Janeiro , José Olympio, 1948, pág. 26.)

Se alguém duvida da atualidade disso que copiei acima, pense um instante no prejuízo que podem trazer ao nosso país políticas como as cotas raciais e as várias manifestações do pensamento "politicamente correto" que condena, por exemplo, o chamar alguém de preto, como se pretos, pardos, cinzentos, morenos, mulatos não fôssemos todos nós, brasileiros. Essas práticas, sob o pretexto de proteger os discriminados, supostamente, por razões de "raça", podem destruir a "integração de culturas" apontada por Gilberto Freyre como um elemento essencial de nossa formação. Elas podem, com o tempo, renegando nosso passado, criar as divisões raciais de que os Estados Unidos, para citar um exemplo óbvio, nunca conseguiram se libertar.

Se, realmente, continuarmos a seguir essa trilha (dominante, hoje, como dominante foi, no passado, o mito da revolução) vamos ter, no futuro próximo, sérios conflitos raciais. Será uma desgraça. Mas ninguém poderá dizer que Gilberto Freyre não nos avisou.

(Publicado no Facebook em 3/1/2017.)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Fragmentos de um livro com velhas histórias familiares



Gustavo Maia Gomes


Arrecifes e o porto do Recife em 1875. (Foto de Marc Ferrez, acervo do Instituto Moreira Salles.)


"O Recife é uma dádiva do porto". A frase de Heródoto, que se referia ao Egito e ao Rio Nilo, eu a ouvi, pela primeira vez, quando a última pirâmide ainda estava em obras. Acredito que da boca de Dona Inês, a professora inesquecível que me ensinou a ler. Aplico-a, com adaptações, ao Recife. É certo que a cidade não vivia apenas da exportação de açúcar e algodão, do que tudo o mais se derivasse. Existiam outros fatores autônomos, como o comércio interprovincial por vias terrestres e o emprego público. Mas isso não deixa de ser um argumento de segunda ordem. A economia recifense, não apenas no século XIX, mas, desde o início da colonização até, talvez, os anos 1950, foi, fundamentalmente, uma dádiva de seu porto. 


Não era pequeno o movimento de navios no porto do Recife, na segunda metade do século XIX. No dia 1 de janeiro de 1872, entraram os navios Mandaú, vapor brasileiro de 222 t, com carga de algodão vinda de Mamanguape (Paraíba); Alice, vapor inglês de 899 t, vindo de Liverpool e Lisboa, com vários gêneros; o Erie, vapor americano de 2.900 t, vindo do Rio de Janeiro, com café e outros gêneros; a barca inglesa (sic) George Washington, de 414 t, trazendo carvão de Liverpool; a barca sueca Sygnus, de 357 t, com carvão de Hull; o brigue inglês Joshua & Mary, de 218 t, trazendo 2.330 barricas de farinha de trigo vindas de Trieste; a barca portuguesa Felix, de 318 t, trazendo café e outros gêneros do Rio de Janeiro; o brigue sueco Helena, de 224 t, com lastro vindo do Rio de Janeiro.[i] 

No mesmo dia, saíram a galera espanhola Joaquim Serra, levando uma carga de algodão para Barcelona; o brigue brasileiro Raio, com carga de açúcar, aguardente e outros gêneros para o Pará; o vapor brasileiro Ipojuca, levando carga de vários gêneros para Granja e portos intermédios. Em novembro, diria o presidente da Província de Pernambuco, Faria Lemos, em seu relatório à Assembleia: “é calculada [para o ano todo de 1872] a entrada de navios de longo curso em 700 e tantos e os brasileiros de grande cabotagem em 300 e tantos”. Mais navios estrangeiros que brasileiros.[ii] 

Pelo resumo da última semana comercial de 1871, ficamos sabendo que “em consequência de notícias vindas da Europa, de preços mais altos nos mercados ingleses para o algodão, este gênero subiu aqui cerca de 300 a 500 reis em arrobas”. Prosseguia: “o mercado de açúcar esteve um pouco paralisado, poucas transações se fizeram”. Quanto ao café, de que Pernambuco era importador,

O mercado por agora está suprido, alguns lotes vendidos têm sido a preços mais baixos. Não houve chegada de carne do Rio Grande [do Sul], os preços não se alteraram e a saída para o consumo foi pequena. Não constam vendas de couros, também não há muitos para vender. Continua abundante o mercado de farinha de mandioca; não há notável alteração nos preços dos outros artigos do país, dos quais está mais ou menos suprido o mercado.

A importação do estrangeiro, continuava o jornal,

Foi de porção de arroz da Índia, de cinco navios com bacalhau, dos quais dois seguiram para o Sul; dois ditos com carne do Rio da Prata, onze ditos com carvão de pedra, do qual o mercado está muito abundante, quatro ditos com farinha de trigo, um dito com genebra [aguardente de cereais] de Hamburgo, além de outros com diversos gêneros.[iii]

Uma resenha produto a produto dos “gêneros nacionais” entrados no porto ou por ele saídos relacionava a aguardente, o algodão, o “algodão de Maceió”, o da Paraíba, o do Rio Grande do Norte, o açúcar, o “açúcar de outras províncias”, o café, a carne seca do Rio Grande, couros salgados, couros salgados verdes, farinha de mandioca, feijão, fumo, gorduras, goma de mandioca, mel, milho, sal do Assu, solas, velas de carnaúba...

Dentre os “gêneros estrangeiros”, o Jornal do Recife relacionava o alpiste, o arroz da Índia, o azeite de oliveira, a banha de porco, “batatas das inglesas e das portuguesas”, bacalhau, “a bolachinha americana”, breu, canela, carne seca do Rio da Prata, carvão de pedra, cebolas, cervejas da inglesa e alemã, chá, chouriças, chumbo de munição... E mais: cominho, cravo da Índia, cimento, erva doce, farelos, farinha de trigo, genebra, querosene, louça inglesa, massas, manteiga, óleo de linhaça, passas, papel de embrulho, pimenta da Índia, presuntos, pólvora, queijos, sardinhas de Nantes, tabuado [porção de tábuas] de pinho, toucinho de Lisboa, velas de cera, velas estearinas, vinagre de Lisboa, vinhos...[iv]

Os produtos “exportáveis”

Em valor, a quase totalidade da exportação feita pelo Recife (não necessariamente de bens produzidos em Pernambuco) se resumia a açúcar e algodão. Esporadicamente, apareciam vendas de outros produtos – por exemplo, no dia 29 de dezembro de 1871, aguardente, espírito de vinho e tábuas de amarelo e de louro – seja para o estrangeiro ou para as demais províncias. Nem por isso deixava a repartição arrecadadora de impostos de publicar uma extensa lista de “gêneros sujeitos a direitos de exportação”, com os respectivos preços de referência.

Na semana de 2 a 5 de janeiro de 1872, a relação dos produtos tributáveis na saída incluía abanos, algodão em caroço, algodão em rama ou em lã, animais vivos (carneiros e porcos), arroz com casca e descascado ou pilado, açúcar branco, mascavado ou refinado, aves vivas (galinhas e papagaios), azeites de amendoim, de coco e de mamona, batatas alimentícias, aguardentes (cachaça, de cana, genebra, ou restilada), álcool, cerveja, vinagre, vinho de caju, bolacha, café (escolha ou restolho; torrado ou moído)...

...cal branca, cal preta, carvão vegetal, cera (amarela ou de carnaúba), chá, cocos secos, cola, couros de boi (secos salgados, espichados, verdes), couros de cabra curtidos, couros de onça, doces (em calda, em geleia ou massa, secos), espanadores de penas (grandes ou pequenas), espanadores de palha, esteiras de carnaúba, esteiras próprias para forro ou para estiva de navios, estopa nacional, farinha de araruta, farinha de mandioca, feijão de qualquer qualidade, charutos, cigarros, fumo em folhas, fumo em latas, goma de mandioca...

...ipecacuanha (planta medicinal) em raiz, toros de angico, caibros, enxalmeis, frechais, couçoeiras (sic) de jacarandá, lenha em achas, lenha em toros, linhas e esteios, pranchões de louro, pau brasil, pau de jangada, melaço, mel de abelhas, milho, ossos, palha de carnaúba, pechuri (sic), pedras de amolar, pedras de filtrar, rebolos, penas de ema, piaçava, pontas ou chifres de novilhas ou vacas, sabão, sal, salsaparrilha, sapatos de couro branco, sebo em graxa, sola e vaqueta, tapioca, unhas de boi, vassouras (de carnaúba, de piaçava, de timbó).[v]

Muitos desses produtos que, de “exportáveis” pouco tinham (apesar da cobiça do governo em taxar sua saída), ainda estão por aí, mormente, nas feiras do Interior. Alguns fizeram parte de meu dia-a-dia de criança e jovem no Recife, em Maceió, em Branquinha, AL, na praia da Maria Farinha (Paulista, PE), nos anos 1950 e 1960.

Os abanos (o fogão da fazenda Monte Verde, em Branquinha, era de lenha; abanos de palha não podiam ser dispensados); a cera de carnaúba, que usávamos, meu irmão Ivan e eu, para lustrar os “jogadores” do futebol de botões, feitos com chifres de boi; os couros dos chinelos de feira e das selas de cavalo; os doces (os que Lupicínia, mãe de Jairo, mulher de Abílio, fazia com os araçás em Monte Verde são inesquecíveis; os de goiaba, ainda hoje, não dispenso)...

...os espanadores de palha, as esteiras – de piripiri, não de carnaúba – em que cheguei a dormir, muitas vezes, estendendo-as pelo chão, em mal explicados interiores nordestinos; a farinha, a goma de mandioca, a tapioca, que dispensam comentários, dada a sua incontestável atualidade; o pau de jangada, que ainda se podia encontrar (com dificuldade, embora) nas matas próximas à praia de Maria Farinha, nos anos 1960; o sebo, para passar nas bolas de couro em decomposição das peladas futebolísticas; o melaço (sempre preferi chamá-lo mel de engenho), que eu comprava em pequenas porções no portão de minha casa; as pedras de amolar, as vassouras de piaçava...


[i] Diário de Pernambuco, 2/1/1872, pág. 5.
[ii] Diário de Pernambuco, 2/1/1872, pág. 5; Relatório do Presidente da Província Faria Lemos à Assembleia, 27/11/1872, pág 15.
[iii] Jornal do Recife, 2/1/1872, pág. 3.
[iv] Jornal do Recife, 2/1/1872, pág. 3.
[v] Jornal do Recife, 2/1/1872, pág. 3.