terça-feira, 1 de novembro de 2016

O defloramento à luz da Léxico-Semântica


Gustavo Maia Gomes


Santo Amaro (BA), cidade onde viveu Alípio Maia Gomes




Alípio Maia Gomes (1878-1916) mudou-se para Santo Amaro (BA), provavelmente, em 1904, logo após se formar pela Faculdade de Medicina da Bahia. Se tivesse chegado à cidade apenas uns poucos meses antes, teria tido (quem sabe?) conhecimento e participação como médico no processo judicial que a mãe de uma moça de 14 anos, Maria Juliana, moveu contra Bento da Rocha Dória, acusando-o de defloramento.

O delito teria ocorrido entre as 19 e 20 horas de um dia não especificado, quando a vítima retornava da igreja para sua casa. “Inopinadamente”, disse a mãe ao juiz, “surgiu o denunciado, que conduziu Maria Juliana para uns matos próximos, onde a deflorou, abandonando-a, em seguida”. Ou, em outra versão, revelando detalhes: “Encontrara-se [a filha] em um lugar deserto, na Estrada dos Carros, com Bento da Rocha Dória, que a levara para o mato e, empregando força, a deflorara”.

Não foi um incidente por inteiro imprevisível. Ao contrário. O acusado, pessoa conhecida, “já vinha fazendo todo tipo de promessa” para seduzir a moça. Ao depor, Maria Juliana chegou a dizer “que, por diversas vezes, Bento lhe fizera pedidos no sentido de dar-lhe ela respondente a sua honra”. Terminou acontecendo – e o caso foi parar na Justiça. O processo, sob a guarda do Arquivo Público de Santo Amaro, foi resgatado por Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz, da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA). Mas a professora Rita não tinha interesse no defloramento, em si. Ela queria fazer “Um estudo léxico-semântico de documentos cíveis do início do século XX”. E fez.

Bento da Rocha Dória nunca poderia prever que seus impulsos animalescos, finalmente satisfeitos, entre as 19 e 20 horas de um dia não especificado, iriam suscitar tantas reflexões profundas, mais de cem anos depois de os eventos terem acontecido. (Maria Juliana, então, nem se fala.)

O hímen e a complexa composição da sociedade 

Segundo Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz, "pode-se reconhecer nos autos de defloramento esse arcabouço vocabular repleto das crenças e valores da sociedade santo-amarense (...) do início do século XX, as quais podem ser remetidas para a complexa composição da sociedade brasileira de então, recém saída do período monarquista e escravocrata, vivenciando as reformas propostas  pelo regime republicano".[1] 

Tem mais: "Isso fazia com que as pessoas tomassem conhecimento dos novos termos da Medicina Legal e do Direito, por exemplo, e que interessa, sobremaneira, para a análise das lexias que integram os autos de defloramento e que fazem parte dos corpora (sic) deste trabalho". (Deixa pra lá.) Apenas poucas partes do processo, que se arrastou até 1915, são analisadas pelo ângulo léxico-semântico, de modo que só pude fazer uma recuperação parcial dos fatos. 

No “Auto de Exames e Corpo de Delito”, por exemplo, está escrito: "Presentes os peritos nomeados doutor João Ladislau de Cerqueira Bião e Joaquim Leal Ferreira, profissionais, e as testemunhas abaixo assinadas, todos residentes nesta cidade, depois de terem os ditos peritos declarado que, sob palavra de honra, se comprometiam a cumprir bem e fielmente os seus deveres, o comissário de Polícia os encarregou de procederem a exame na pessoa da ofendida Maria Juliana". 

Os examinadores deviam responder às seguintes questões: "(1) Houve, com efeito, o defloramento? (2) Qual o meio empregado? (3) Houve cópula carnal? (4) Houve violência para fins libidinosos? (5) Quais foram essas violências? (6) Em virtude do meio empregado, ficou a ofendida impossibilitada de resistir e defender-se?" 

Completa dilaceração 

Em seguida ao recebimento dessa lista de perguntas, “passaram os peritos a fazer os exames e as investigações ordenadas e os que julgaram necessários", concluídos os quais declararam o seguinte: "Maria Juliana é uma rapariga de cor preta, de quinze anos, mais ou menos, de fisionomia agradável, corpo regular... [Os peritos] notaram pelo exame dos órgãos genitais dilaceração do hímen, que estava dividido em três retalhos, os quais se acharam uns ao lado dos outros. Verificaram ser completa a dilaceração, dando passagem franca ao dedo indicador que penetrou facilmente em toda a vagina".

Diante desses importantes achados (ou perdidos?), aos questionamentos cruciais – (1) “Houve, com efeito, o defloramento?” e (2) “Qual o meio empregado?” –, os examinadores deram respostas inequívocas: “Ao primeiro [questionamento], afirmativamente; ao segundo, naturalmente, o pênis”. Concluídos os depoimentos e os exames, com os resultados que resumi, ainda consoante os autos do processo, “espera(va) a suplicante que a Justiça se manifestar(ia), para punir o crime e desagravar a honra”. 
Pelo que já vimos, ela ainda iria esperar mais doze anos. E nem sei o final daquilo tudo, criminalmente falando. Nos seus aspectos léxico-semânticos, entretanto, aprendi que "a língua está semanticamente estruturada por microestruturas ou campos lexicais. Nesse caso, os vocábulos refletem a materialização dos diversos campos léxicos de uma determinada língua, sendo aqueles subconjuntos de palavras pertencentes a um mesmo campo de interesse ou de conhecimento".

Quem sabe, se ainda estivessem vivos, enternecidos por essas transcendentais reflexões, esquecidas as mágoas deixadas pelos ardores no mato, Bento da Rocha Dória e Maria Juliana não chegariam à conclusão de que, afinal, tudo tinha valido a pena?






[1] Todas as citações foram colhidas em Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz, “Autos de Defloramento: Um Estudo Léxico-Semântico de Documentos Cíveis do Início do Século XX”, em http://www1.uefs.br/colplet/revista/ed01_102009/artigos/artigo_02.pdf (acesso em 1/11/2016)

Nenhum comentário:

Postar um comentário