Gustavo Maia Gomes
A
fotografia anexa tem quase cem anos. Mostra meus avós Nominando Maia Gomes (1886-1966)
e Josefa de Azevedo Bahia (1890-1954) e meu pai Mauro Bahia de Maia Gomes (1916-97)
quando criança. Eu sempre a achei belíssima. Agora, examinando-a com cuidado,
percebo que tem alto valor, além de estético, histórico e sociológico. Passo às
considerações que a fotografia me sugere, depois de fornecer algumas informações
de contexto.
(1)
Não há indicação de local, mas, pelas andanças de Nominando, que consegui
retraçar no livro O trem para Branquinha (ainda
inédito), a foto deve ter sido tirada em Santa Luzia do Norte, um município próximo
de Maceió e da região dos primeiros Maia Gomes. (2) O ano, deduzo da idade
aparente de Mauro, é 1919, ou 1920. (3) Nessa época, Nominando, filho de senhor
de engenho e dono de (poucas) terras, era promotor público na mencionada Santa
Luzia.
Roupas,
sapatos, cabelos
Todos
os personagens da foto estão impecavelmente bem vestidos, mas a cena não parece
ser a de uma festa ou solenidade. Ao contrário, a atitude de relaxamento dos três,
em particular, dos adultos, sugere, com maior probabilidade, que se tratasse de
um momento logo após o almoço, quando a família aproveitava para descansar – e conversar?
– um pouco no terraço da casa. (O ambiente é quase rural; note-se, entretanto,
que há uma tela de arame ao fundo e, depois dela, quase invisível, outra
construção, que poderia ser uma pequena igreja.)
Se
a hipótese de que o momento capturado pela fotografia não era de festa, mas de um
dia comum, a elegância das pessoas retratadas se torna ainda mais notável. A
começar pela de Nominando, de paletó e gravata, todo de branco, dos pés ao
pescoço: sapatos, meias, calça, camisa, paletó. (A gravata, naturalmente,
contrasta com a brancura toda em volta.) Devia estar de colete branco e de
ceroulas da mesma cor, também, mas isso a foto não mostra. Cabelos bem
penteados. Em seguida, Josefa: sapatos de salto alto, meias, vestido longo com
ornamentos, colar, cabelos bem tratados e penteados. E, finalmente, o menino Mauro:
sapatos brilhando, meias, uma espécie de macacão, camisa de mangas longas,
cabelos fartos, soltos e bem penteados.
Era
normal os proprietários de terras e/ou doutores trajarem-se dessa forma
elegante, à época e local? Creio que sim, porém, em grau menor que o de
Nominando. A indumentária de Josefa, entretanto, merece menção especial, pois
as mulheres (como o constato em outras fotos comparáveis) se vestiam de forma quase
relaxada, até mesmo, em ocasiões solenes ou comemorativas.
De
onde vinha essa elegância? Minha avó viveu a maior parte da infância e juventude
em Viçosa, Alagoas, que fica numa zona ainda “da Mata” (e canavieiro-algodoeira,
na passagem do século XIX para o XX), porém, já de transição para o Agreste. Uma
cidade próspera, mas interiorana. Seu pai era um comerciante rico. Nenhuma
dessas duas pistas nos leva à elegância de Josefa na foto. Acho mais provável
que ela tenha passado a se vestir bem por influência de Nominado.
Isso
porque seu marido, a despeito das raízes rurais canavieiro-açucareiras, morou dois
anos em Salvador e três no Recife, como estudante de Direito. Teve, portanto, convivência
com hábitos urbanos que primavam pela sofisticação. Era escrevendo sonetos, ou
artigos em jornais, fazendo citações em latim, assumindo cargos públicos
importantes e se vestindo a rigor que os bacharéis residentes nas cidades iam
marcando a diferença entre eles e seus pais e irmãos agricultores, senhores de
engenho ou, mesmo, usineiros.
Foi
graças a essas múltiplas armas que eles, os “doutores”, terminaram arrebatando
o poder político da classe agrário-industrial. Ocuparam o Estado falando
difícil e, como o Nominando da foto, trajando branco da cabeça aos pés. Ou
outras cores, também formais. Nesse contexto, ainda mais se reforça a impressão
de que a elegância de minha avó foi aprendida depois do casamento com o
bacharel que prezava o bem vestir. (Uma característica que meu pai, também
bacharel, assimilou direitinho.)
O
bem-vestir de Mauro criança – este, sim, obra da mãe Josefa –, também o devia
colocar acima da média dos meninos filhos da classe proprietária em seu tempo. Os
cabelos longos e arrumados, particularmente, refletiam uma história específica
que eu conheci por minha mãe, Maria Stella de Araújo Pedrosa (1917-2001). É que
a sogra Josefa tinha os preconceitos de raça comuns à época e lugar e ficou
muito contrariada com o fato de seu filho ter nascido escurinho e com os cabelos
encaracolados, parecendo muito mais árabe que ariano. Aprendeu e aplicou mil
receitas para clarear a pele e alisar os cabelos de Mauro. A cor não mudou
nada, mas os cabelos de meu pai, pelo menos no momento da foto, efetivamente,
ficaram parecendo lisos. Não durou muito a ilusão, contudo.
Cadeiras,
rede, jornais
Meu
avô está sentado em uma cadeira de balanço muito elaborada, como a foto mostra.
É um modelo que, em versão simplificada, ainda hoje pode ser visto nas lojas de
móveis antigos. Possuí ou usei mais de uma delas, enquanto solteiro ou casado,
ao longo da vida. Mas, não com os ornamentos elaborados dessa. (Note-se, por
exemplo, no encosto, logo acima da cabeça de Nominando.) Deve ser sintomático
das relações entre os sexos daquela época e lugar minha avó estar sentada numa
cadeira muito mais simples que a do seu marido. Não era de balanço e nem tinha
ornamentos de qualquer espécie. O modelo, pelo pouco que a foto revela, também
me parece ter sido bastante comum, até recentemente.
Há
uma rede de dormir estendida embaixo da árvore (mangueira?), ao fundo da foto.
Não sei se alguém já escreveu uma sociologia da rede no Brasil. (Luís da Câmara
Cascudo tem, sim, livro com o título A
rede de dormir: Uma pesquisa etnográfica.) A rede, uma das poucas coisas que os europeus chegados ao futuro
Brasil e seus descendentes imediatos aprenderam com os índios (outras duas
foram os caminhos para o Sertão e as formas de sobrevivência na selva amazônica),
tem sido, desde as origens, intensamente utilizada. Até hoje, no Nordeste, não
há casa de praia sem um par de ganchos esperando que alguém lhes estenda uma
rede; no Norte, seu uso é ainda mais comum, sobretudo, nas áreas rurais.
Em
Monte Verde, a fazenda de Nominando, tinha redes. Em Santa Luzia do Norte,
idem. Em todos os lugares daquele tempo nordestino, havia redes esperando quem delas
aproveitasse. Poucas coisas são mais prazerosas na vida que deitar na rede, depois
do almoço, sob a sombra acolhedora de uma mangueira. E lá está ela, na fotografia
centenária, para não me deixar mentir. Mas, nem Nominando, nem Josefa – ou,
mesmo, Mauro –, deitariam numa rede vestindo aquela elegância toda. É por isso
que a coitada ficou lá, esquecida. Não por mim, embora com cem anos de atraso.
Na
foto, tanto Nominando quanto Maninha (ah, esqueci-me de dizer: Josefa detestava
seu nome. Só admitia ser chamada Maninha) leem jornais. Como assim? Há cem
anos, no interior de Alagoas, as pessoas liam jornais? Não me parece que fosse
um hábito generalizado, mas era bastante difundido. Aos lugares próximos à
capital, (caso de Santa Luzia do Norte), ou nas imediações das ferrovias (como em
Murici, Branquinha, União dos Palmares, terras de origem dos Maia Gomes), os
jornais chegavam no mesmo dia em que eram impressos. Nominando, bacharel em
Direito, não passava sem ler jornais. Transmitiu este hábito ao filho Mauro e aos
netos, Ivan e Gustavo.
Mas,
voltando à foto, a sua mulher também lia jornais. Não sei com que frequência. Vem-me
à lembrança, nesse contexto, que minha outra avó, Olga Dias Cardoso (1895-1978)
também lia jornais (mais especificamente, um deles, O Semeador, órgão oficial da Diocese de Maceió), e trouxe do
interior alagoano, onde o marido era dono de usina, para a sua casa na capital
uma coleção enorme de revistas antigas – O
Cruzeiro e Seleções do Reader’s
Digest, sobretudo – que eu li, parcialmente, claro, com grande prazer 30 ou
40 anos depois da respectiva publicação. Sim, os proprietários de terras no
Nordeste oriental canavieiro liam jornais, desde os últimos anos 1800, quando o
trem chegou a Alagoas; ou os 1860, quando a primeira ferrovia começou a operar
fora das cercanias do Recife, em Pernambuco.
Dos
brinquedos de ontem às festas de aniversário de hoje
E
os brinquedos de Mauro? Ele segura uma espécie de pandeiro, com seu batucador
respectivo, e, em cima da cadeira, no canto inferior esquerdo da foto, há uma
corneta. Talvez também possuísse soldadinhos de chumbo, comuns à época. (Segundo
Gilberto Freyre, em Ordem e Progresso,
popularizados depois da Guerra do Paraguai.) Devia estar satisfeitíssimo com
seus três brinquedos. Que contraste com o mundo atual, onde as mães entulham os
filhos de artefatos eletrônicos que, no mais das vezes, não tocam músicas como
os tambores e cornetas de Mauro, nem enfrentam inimigos paraguaios em guerras
leias, como seus soldadinhos de chumbo.
Dos
parabéns anuais, nem falar. Embora, sobre eles, nada nos diga a foto, eram
simples, com certeza. Se, nas suas festinhas de aniversário, houvesse um bolo, dois
confeitos e bastante espaço para correr, não só ele, Mauro, mas todos os
meninos e meninas convidados viveriam momentos felizes. Hoje em dia, em
contraste, sempre que vou a um aniversário de criança, fico estupefato com as
transformações dos tempos. Para se contentarem com suas festas, os meninos e
meninas precisam ter, nelas, recreadores, palhaços, bandas de músicas, parques
de diversões especialmente montados, bolos, chocolates, doces e distribuição de
prêmios. Além dos cinco mil balões que custaram uma nota para encher e que
serão, devidamente, estourados ao fim da festa. Já os adultos, não podem passar,
nessas mesmas festas, sem farta distribuição de cerveja, uísque, comedorias
várias – muitas vezes, jantares completos. Quando os pais do aniversariante
ainda se acham obrigados a botar alguma música para berrar nos ouvidos dos
convidados, aí a desgraça fica completa.
Com
dois aniversários desses, Nominando teria gasto três anos de seus modestos
vencimentos como promotor, depois juiz de Direito. Desconfio, por isso, que
estamos vivendo uma era onde a bobagem assumiu o comando. E a ditadura dos
meninos e meninas (da qual a festa exorbitante não passa de evidência menor) é
somente o primeiro tempo da dominação sem dó nem piedade dos pais pelos filhos,
que apenas terminará com a morte de um dos dois.
Poste
escrito (como diria Millor Fernandes)
A
foto que comentei ficou guardada nos baús de meus avós, de meus pais, e de meu
irmão Ivan (e sua mulher, Elisa) durante quase cem anos. Que bom que ela tenha
sobrevivido, para nos permitir espiar o mundo de um século atrás, nem que fosse
por um buraco de fechadura.
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