GUSTAVO MAIA GOMES
Antes de escrever a primeira letra, recorro a
Lúcia Gaspar, da Fundação Joaquim Nabuco, que tem me amparado com frequência
nessas incursões pelo Nordeste canavieiro de tempos idos. Banda de pífanos, diz
ela, “é um conjunto instrumental de
percussão e sopro, dos mais antigos, característicos e importantes da música
folclórica brasileira”.
Adianto que “banda de pífanos”, é o jeito
pernambucano de chamar o que os alagoanos conhecem como Zabumba (conjunto
musical) ou Esquenta-Mulher. (Este último, um nome precioso, por sinal.) Historicamente,
continua Lúcia Gaspar, o pífano remonta à época dos primeiros cristãos. Na versão
nordestina, entretanto, “a banda de pífanos é uma criação do mestiço
brasileiro, que (...) adaptou o instrumental, dando-lhe a forma típica pela
qual é conhecida no folclore brasileiro”.
Por
toda a região Nordeste do Brasil e nos estados de Minas Gerais e Goiás são
usados várias termos para denominar o conjunto: Banda de
Pífanos, Banda de Pife, Música de Pife, Zabumba, Cabaçal, Esquenta-Mulher,
Banda de Negro, Terno, Banda de Couro (Goiás), Musga
do Mato, Pipiruí (Minas Gerais).[i]
Assim como os nomes variam, também o faz a
composição das bandas, “mas seus instrumentos básicos são dois pífanos, um
surdo, um tarol e um bombo ou zabumba. Em Pernambuco, a banda é composta por
dois pífanos, uma caixa, um bombo, um surdo e um tambor. Em Alagoas, além dos
instrumentos básicos acrescenta-se um par de pratos e em certos grupos um
triângulo e até um maracá para maior sonoridade”.[ii]
Zabumba em Alagoas, 1947
Assim devidamente instruído por Lúcia Gaspar,
visito, em seguida, a Alagoas canavieira de 70 anos atrás, tendo Luís Alípio de
Barros (1920-91) como guia. Embora já o tenha apresentado antes, repito o essencial.
Filho de Laurentino Gomes de Barros (1881-1958) e de Amália Maia Gomes (?-?), ele
migrou, ainda jovem, para o Rio de Janeiro, onde fez carreira jornalística, dos
primeiros anos 1940 até bem perto de morrer, em 1991, começando na revista O Cruzeiro (1928-75) e terminando no
jornal Última Hora (1951-c.1987).
Em 1947, a revista O Cruzeiro já era o equivalente ao nosso contemporâneo Jornal Nacional da TV Globo. Foi por
meio daquela revista e de suas reportagens que os brasileiros das diversas
regiões começaram a se conhecer e aos seus costumes, tradições, belezas
naturais, particularidades várias. (Na casa de minha avó materna Olga Dias
Cardoso, no Farol, Maceió, havia pilhas de números antigos de O Cruzeiro – e da indefectível Seleções do Reader’s Digest – que eu
devorava regularmente, nos períodos de férias que passava por lá, entre os anos
1947-67.)
“Zabumba” foi o nome da reportagem especial
escrita por Luís Alípio de Barros, com fotografias de José Medeiros, com a qual
a revista iniciou (em 8/2/1947) uma série de trabalhos sobre Alagoas. Passo a
copiá-la, desavergonhadamente:
A
“marcha” é a mais elementar música da Zabumba. [Nela], primeiro vêm os
“pífaros” [o mesmo que pífanos, ou pifes] e, depois, as três “batidas”
violentas dos “pratos” e do bombo. Música monótona, evidentemente, mas,
pitoresca, para o forasteiro, indispensável como o pão de cada dia para o
residente. [E, para aquele, como Luís Alípio] que visita a terra natal depois de
longa ausência, ela é linda, porque traz recordações de um tempo perdido.
Como explicava Luís Alípio na reportagem de O Cruzeiro, a zabumba não tinha muita
penetração nas cidades maiores.
Ela
é a banda de música das pequenas povoações, das vilas, dos engenhos, das
fazendas. As próprias sedes dos municípios, com foros de cidade, desprezam a
zabumba. Têm a sua filarmônica, seu maestro, às vezes seu “jazz”.
Das cidades, prossegue a matéria, “as zabumbas
cheiram apenas as vizinhanças, as ruas mais afastadas”. Somente em casos
especiais elas eram convidadas para visitar o centro da cidade. “Para puxar uma
cavalhada [“torneio equestre com raízes ibéricas trazidas para o Brasil durante
a colonização portuguesa, com a participação de cavaleiros e fidalgos”, Vanessa
Omena], por exemplo, , “ou quando um santo milagreiro não pode prescindir de
uma zabumba na sua festa”. A capital não queria saber delas, até que um dia o
major Bonifácio Silveira, “homem famoso, o maior carnavalesco que existiu em
todos os tempos em Alagoas, resolveu que faltava a zabumba [em Maceió] e
organizou uma”. Mas, deu-lhe um nome diferente.[iii]
Não
se sabe por que a pobre banda de música perdeu em Maceió o nome com que toda
Alagoas a conhecia. Passou de zabumba ao picante Esquenta-Mulher. Até hoje,
depois da morte do major e de sua banda de música, o povo não esqueceu o
apelido. Para o habitante de Maceió, zabumba não é zabumba; é, sim,
Esquenta-Mulher.
Mas, a despeito do major Bonifácio, a zabumba
não vingou em Maceió. Seu território continuou a ser as pequenas cidades do
interior, inclusive, as da região canavieira de Alagoas. Ali, a banda de
pífanos continuava a ter, como havia tido desde tempos imemoriais, fortes
raízes religiosas. Católicas, claro.
Onde
tocar uma zabumba, a Igreja Católica estará presente. Jamais a zabumba se
divorciou da Igreja. Vive para a Igreja, a Igreja é a razão de sua existência.
Por isso, a zabumba, como o foguete, nunca está ausente nas cerimônias, nem nos
festejos dos santos padroeiros e milagrosos. Tocando nas missas e nos
batizados, angariando espórtulas para as festas mais pobres, puxando as
cavalhadas que são também folguedo de festa religiosa.
E, além disso, os leilões. Neles, a presença
da zabumba era imprescindível. Não nos leilões em cidades que tinham sua
própria filarmônica, como o de Santa Maria Madalena, em União dos Palmares. Nem
nos grandes leilões de São Sebastião de Urucu e de São Sebastião de Colônia
Leopoldina, cidades que, apesar de não terem filarmônicas, as pediam
emprestadas de outras cidades. Mas,
Nos
leilões de outras festas menores, aí sim, aí a zabumba mostra o que vale. A
imagem do santo içada no mastro do meio da praça, a mesa do leitão cheia de
coisas, melancia, queijos, compoteiras, vasos, bolos, latas de goiabada, copos
e xícaras com flores desenhadas, tudo.
Tenho vagas lembranças visuais, reforçadas
por testemunhos de familiares, dessas festas alagoanas. Luís Alípio de Barros,
que nasceu em Murici, cidade vizinha a União dos Palmares, prossegue:
Mais
atrás, bacorinhos, marrás de ovelhas,
uma penosa, ou melhor, com licença da
palavra, uma perua; criações, garrotes, e
outros animais em currais, amarrados pelos postes ou em balaios. De lado, fica
a zabumba e, um pouco afastados, os foguetes.
Um coronel (continuo a citar Luís Alípio)
pergunta a um caboclo se ele não havia se esquecido de trazer os presentes da
fazenda.
–
Não sinhô, seu Coroné. Veio tudo direitinho. Um garrote, duas marrás de ovelha
e, com licença da palavra, dez galinhas.
O
caboclo não diz galinha, perua, ou égua. Para ele, são nomes feios. Diz, sim, criação, penosa ou animá. Para se pronunciar a palavra galinha, por exemplo, é
necessária a anteposição de um “Com licença da palavra”.
“Marruá de ovelha”, confesso, eu não
conhecia. Mas “penosa” e “criação”, sim. Devo somá-las, as três palavras,
àquele glossário que compilei do livro de Humberto Gomes de Barros, sobrinho de
Luís Alípio, Sexta-feira 13, 1957:
Memória do tiroteio (Maceió, Edufal, 2012) e relacionei neste mesmo blog,
dias atrás.[iv]
O
leilão começa. O leiloeiro sai com um queijo do Reino e manda uma pessoa “botar
preço”. E atravessa a multidão, aos gritos:
–
Vinte mil réis me dão / Por um queijo do Reino /Que ofereceram à imagem / De
São Sebastião.
Adiante
dá um lance e rápido o leiloeiro responde:
–
Morr-e-este, vinte mil réis / Trinta mil réis me dão / Por um queijo do Reino
/Que ofereceram à imagem / De São Sebastião.
Assim, os lances vão se sucedendo, até que
ninguém mais se pronuncia e o leiloeiro, “depois de três ou quatro voltas,
resolve entregar o queijo ao dono do último lance”. Faz suspense, antes de
chegar ao clímax:
–
Cinquenta mil réis, dou-lhe uma... (O homem do bombo dá uma marretada forte:
BUM).
–
Cinquenta mil réis, dou-lhe duas... (Outra marretada).
–
Cinquenta mil réis, dou-lhe três... (Nova marretada).
E
o leiloeiro termina:
–
Toca a música, solta foguete, que eu vou entregar, estou entregando,
entreguei...
A zabumba ensaia uma música, prossegue Luís
Alípio, “os foguetes sobem e o homem que arrematou o queijo manda entrega-lo à
Comadre Sinhá, como presente”. Mas a grande cena do zabumba é a da coleta das
espórtulas para as festas dos santos.
Esta é, de
fato, a cena mais pitoresca, onde o zabumba enche-se de poesia, de garbo
marcial, de orgulho pela beleza da música, a sua música. A mulher na frente, de
manto bem alvo, tendo nas mãos a imagem do santo envolta em flores. A zabumba
vai atrás, majestosa e satisfeita da vida.
Em todas as portas, a mulher para e pede uma
esmola para a festa do santo. “Às vezes, não há dinheiro. Mas sempre existe
alguma coisa, uma melancia, galinhas, patos, bacorinhos, para o leilão. E em
cada porta que dá alguma coisa, a zabumba toca sua música”. Não como um
agradecimento pela espórtula oferecida,
Mas, como uma
homenagem a quem, apesar de pobre, não se nega a dividir o pouco que tem para
que a festa possa se realizar com sucesso, a festa que alegrará tantos corações
humildes.
Viva a zabumba!
[i] Lúcia
Gaspar. Bandas de Pífano. Pesquisa
Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>. Acesso em 28/3/2017.
[ii] Lúcia
Gaspar. Bandas de Pífano. Pesquisa
Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>. Acesso em 28/3/2017.
[iii] Vanessa Omena, em http://www.viajaracavalo.com.br/guias-e-tutoriais/cavalhadas-no-nordeste-alagoas/, 2016.
[iv] Gustavo
Maia Gomes, “Humberto Gomes de Barros e a Sexta-feira 13 de setembro
de 1957”, em http://gustavomaiagomes.blogspot.com.br/
2017/03/humberto-gomes-de-barros-e-sexta-feira_20.html
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