Gustavo Maia Gomes
(Recife, 2-11-2018)
(Recife, 2-11-2018)
Meu amigo Heldio Villar escreveu, ontem, neste mesmo
espaço onde alguns trocam ideias, outros, ofensas, um belo texto sobre as
transformações da esquerda. Não pude compartilhá-lo, por razões técnicas, mas
recomendo a leitura e cito uma de suas passagens:
“Essa ‘esquerda’ [contemporânea] – que, pelo visto, nada tem a
ver com a clássica – foi ironicamente batizada de ‘esquerda 2.0’ e, também
ironicamente, se intitula democrática, defende apaixonadamente as ‘minorias’
(preferencialmente o grupo LGBTIJMOPRW...), prega mais e mais direitos para o
trabalhador, aplaude a rebelião dos alunos em sala de aula etc.” (Heldio
Villar).
A “esquerda clássica”, segundo Villar, tinha como objetivo
último a implantação do comunismo. No processo que conduziria inexoravelmente a
este ideal (felizmente, houve problemas sérios no caminho), as regras de
remuneração do esforço produtivo seriam alteradas, na linha antevista por Karl
Marx (1818-83): “de cada um, de acordo com sua capacidade; para cada um, de
acordo com sua necessidade”.
Em outras palavras, esclarece Heldio: quando, finalmente, o
paraíso da esquerda fosse implantado, “se um solteiro produzisse 100 peças por
dia, ganharia menos do que um pai de 6 filhos que produzisse 10 [peças]”. Ao
que eu (GMG) acrescentaria: o inferno foi, inquestionavelmente, inventado por
um economista burro.
**** De volta a 1992 ****
As reflexões de Heldio Villar me fizeram recordar que, na ICID I
(Conferência Internacional sobre Impactos de Variações Climáticas e
Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semiáridas. Fortaleza, 1992) –
realização memorável, sobretudo, de Antonio Rocha Magalhães –, eu havia
tratado de tema semelhante.
No meu ensaio “Desenvolvimento sustentável no Nordeste: Uma
interpretação impopular” (incluído no livro Gustavo Maia Gomes, Hermino Ramos
de Souza e Antonio Rocha Magalhães, orgs., “Desenvolvimento Sustentável no Nordeste”,
Brasília, Ipea, 1995, Cap. 1) escrito em 1992, está dito:
Constitui um dos paradoxos da vida que as bandeiras estritamente
conservacionistas (ou conservadoras, até reacionárias) do movimento
ambientalista tenham sido predominantemente apropriadas por grupos políticos
que se identificam a si próprios como “de esquerda”, “reformistas” ou mesmo
“revolucionários”. Por que se produziu esse fenômeno?
Uma interpretação poderia ser formulada em termos da teoria dos
jogos. Existem dois grupos adversários no debate intelectual (e na ação
política): o grupo n. 1 ocupa o lado direito da arena; o n. 2, o lado esquerdo.
A batalha se trava em torno de objetivos que têm a ver com o
reconhecimento público dos discursos de cada grupo, reconhecimento este
traduzido tanto na conquista de títulos acadêmicos quanto de cargos e favores
governamentais.
Os dois grupos se beneficiam da existência da luta, pois esta
lhes confere, a ambos, uma importância que não teriam se não houvesse a
disputa.
Num determinado momento, duas coisas aconteceram: por um lado
[anos 1970], a direita [Atenção: a DIREITA] começou a introduzir uma nova arma
em seu arsenal, o discurso conservacionista, ambientalista, contra o
“progresso”, contra o “desenvolvimento das forças produtivas”.
Por outro lado, pouco depois [últimos anos 1980], a esquerda
sofreu um cataclismo, com a desmoralização gradual, porém rápida, de algumas de
suas teses mais caras: a revolução, o socialismo, o planejamento econômico.
Tudo isso virou pó, tragado pela história.
Prenunciou-se, portanto, uma vitória arrasadora de um dos
oponentes, no debate intelectual e na disputa política. Seria, realmente, o
“fim da história”. E isso não interessava a ninguém. Nem aos intelectuais da
direita, que, ficando sem adversários, teriam seu valor de mercado
consideravelmente depreciado, nem, muito menos, aos intelectuais da esquerda,
ameaçados com o desemprego puro e simples.
Essa situação praticamente impôs aos jogadores um acordo
implícito, pelo qual a direita entregou [à esquerda] seu discurso
recém-adquirido (a temática conservador-ambientalista), ganhando, em troca, a
continuação da disputa.
Reproduziram-se, assim, muito oportunamente, as condições de
equilíbrio ideológico: o grupo n. 1 continua a ir à luta com suas armas mais
tradicionais; o grupo n. 2, que perdeu o socialismo, empunha, agora, a proteção
à natureza. Todos ficaram felizes. (Gustavo Maia Gomes, cit., págs. 10-11)
**** E hoje? ****
Como Heldio Villar nos lembrou, nos anos subsequentes a 1992, a
esquerda, no mundo e no Brasil, em sua tentativa de evitar a desmoralização
completa, continuou a incorporar outras bandeiras (além da ambientalista,
conservadora) que não faziam parte do discurso original.
Karl Marx morreria de desgosto, se pudesse ver o que fizeram de
suas ideias. Os pragmáticos pensadores esquerdistas, entretanto, veem as coisas
de outra forma. Não abrem mão, por exemplo, de posar como defensores dos
LGBTIJMOPRW – na nomenclatura de Heldio Villar.
Seu novo lema é: enquanto houver letras, haverá esperança.
(Publicado no Facebook)
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