Gustavo Maia Gomes
Um dos paradoxos da minha vida foi ter
morado em Brasília em três oportunidades (1985-86, 1995-2003 e 2006) e jamais
ter encontrado Humberto Gomes de Barros (1938-2012), magistrado, ministro e
presidente do Superior Tribunal de Justiça e, sobretudo, escritor. Dos bons. Pior,
nem sequer saber, até muito recentemente, de sua existência e de nosso
parentesco, relativamente, próximo: meu avô (Nominando Maia Gomes) e sua avó (Amália
Gomes de Barros) eram irmãos.
Quando soube de Humberto, em 2013 ou
2014, já era tarde para conhecê-lo pessoalmente. Em parcial compensação, em 31
de janeiro de 2017, tive o prazer de encontrar, em Maceió, seu irmão, médico
oftalmologista Arnoldo Gomes de Barros. Ele, Murilo Lins Marinho e Naia Gomes
de Freitas (também primos), Ivan Pedrosa de Maia Gomes (meu irmão) e eu
conversamos, naquele dia, nos hotéis Jatiúca e Praia Bonita, umas cinco horas
seguidas. E foi de Arnoldo, via Murilo, que recebi um exemplar do livro Sexta-feira
13, 1957: Memórias do tiroteio (Maceió, Edufal, 2012).
Em
Alagoas, impeachment se resolve a bala
O livro de Humberto Gomes de Barros é
uma preciosidade, mas não pelo relato da inacreditável batalha de pistolas e
metralhadoras que ocorreu na Assembleia Legislativa de Alagoas. Isso, afinal, já
tinha sido bem contado. (O tiroteio foi notícia no mundo todo. Dele resultaram
um deputado morto, Humberto Mendes, e vários feridos, entre os quais Carlos
Gomes de Barros, pai de Humberto e de Arnoldo. A causa da batalha foi a votação
do pedido de impeachment do governador Muniz Falcão.)
O livro é uma preciosidade, principalmente,
pelo que rememora da Maceió dos anos cinquenta e pela narrativa de episódios da
vida do seu autor, então um jovem de 19 anos. As reminiscências de Maceió,
sobretudo, me levaram ao êxtase. Eu nasci em 1947 e ia à capital alagoana, em férias,
pelo menos, uma vez por ano, nos anos entre meu nascimento e, aproximadamente, 1967.
Do tiroteio, não poderia ter lembranças
pessoais, mas dele ouvi muito falar, nos anos posteriores a 1957. Um tio materno
meu, Hermano Cardoso Pedrosa, estava na praça em frente à Assembleia
Legislativa, no meio da multidão que se formara ali. Quando as balas perdidas
começaram a assoviar sobre suas cabeças, a multidão enlouqueceu, buscando
abrigo. Hermano contava que engatinhou uns 50 metros até um lugar onde os
tiros não o poderiam atingir. Humberto revela muitos outros aspectos importantes do
mesmo episódio.
As
palavras que o vento levou
Mas, não quero espichar demasiadamente esta
nota. Prefiro distribuir minhas impressões sobre o excelente livro que acabo de
ler em várias delas. Neste momento, apenas relaciono algumas das palavras que
encontrei no “13 de Setembro” de Humberto Gomes de Barros (todas elas definidas
pelo autor em notas de rodapé) e que já não são mais usadas hoje, ou apenas
raramente o são.
“Datilografar” era o mesmo que “bater à
máquina”; hoje, chamamos isso “digitar”. “Reclames” eram os anúncios comerciais
afixados no teto dos bondes. “Peniqueiras”, nome tão depreciativo, era como se
designavam à boca miúda as empregadas domésticas, cujas tarefas diárias incluíam
esvaziar os “urinóis” (vasos onde se depositavam fezes e urina) enchidos
durante a noite. “Carros de praça” eram o que, em outras cidades (a exemplo do
Recife), mas não em Maceió, já se conheciam como táxis.
“Brincos de viúva” eram o belíssimo
nome usado para designar aquela frutinha preta conhecida, alternativamente,
como azeitona ou jamelão. (Na casa de minha avó materna Olga Cardoso Pedrosa
havia um enorme pé de azeitonas ou de brincos-de-viúva, mas ela chamava os frutos
de “oliveiras”.) “Assistências” eram as ambulâncias que
socorriam os feridos ou os subitamente doentes. “Carlito” era a casquinha do
sorvete.
“Fazer sabão” era fazer carícias íntimas
na namorada –- mais recentemente, chamávamos isso de “amassar”, mas hoje creio
que até este segundo termo já caiu em desuso. A “zona”, uma abreviação para “zona
do baixo meretrício”, era a região onde se concentravam as prostitutas. (Por
sinal, o capítulo mais delicioso do livro de Humberto é o que trata das zonas
de Maceió nos anos cinquenta. Voltarei a isso em outra nota.)
“Puara” era um sinônimo de puta; “bilontra”,
alguém dado a conquistas amorosas. (Esta palavra pode ainda estar em uso, não
sei.) “Dar o xexo” (ou ser “xexeiro”) era se isentar de pagar a conta,
geralmente, em um bar. “Ficar na berlinda” significava ser objeto da atenção
geral, durante um tempo. A mãe de Humberto, Laurinha, detestava "estar na berlinda".
Tudo isso (e muito mais) está no livro
de Humberto Gomes de Barros. Por minha conta, acrescento mais umas poucas
palavras do dialeto maceioense dos anos cinquenta do século passado, tal como as ouvia, principalmente, de meus primos Marcus, Salete e Alfredo. “Chimbras”
eram as esferas de metal, geralmente, retiradas de rolimãs imprestáveis, com as
quais jogávamos “bola de gude”. (As bolas de gude, propriamente ditas, eram de
vidro.)
“Amêndoa” era o fruto, de gosto horrível,
para mim, mas apreciado pelos meus primos alagoanos, que os pernambucanos
chamam coração-de-nego, e os paraenses (e, creio, também os cariocas) designam
como castanholas. A árvore, que cresce muito e dá uma sombra portentosa, ainda
está presente nas calçadas de cidades brasileiras. Finalmente, lembro a particularíssima “oliveira”
que, hoje, penso ter sido empregada, apenas, por minha avó Olga e seus netos
que moravam com ela no casarão da Avenida Moreira e Silva, n. 322, no Farol, Maceió.
Num período de 60 anos, as modificações, não apenas do vocabulário, dos modos de vida, foram tão imensas que, em retrospecto, nos causam espanto. Mas as continuidades também deveriam ser realçadas. Humberto conta a história dos quem-me-quer na Praça Deodoro, de Maceió. (Os homens se postavam em pé ao lado do passeio, enquanto as moças desfilavam, trocando olhares.) Segundo ele, muitos casamentos nasceram ali e daquele modo. Hoje, o quem-me-quer é feito pela internet, mas a sua essência continua a mesma. Eu, pelo meu lado, continuo apreciando as oliveiras de Dona Olga. E, se os carros de praça de Maceió se tornaram táxis e hoje são uber, eles continuam nos levando de um canto para o outro, como sempre o farão.
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