As orientações anuais para aplicação dos recursos do FNE (Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste, hoje depositário de, mais ou menos, R$ 25 bilhões) são propostas pelo Banco do Nordeste (BNB) e discutidas, alteradas e, finalmente, aprovadas pelo Conselho Deliberativo da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), aquele mesmo que, até recentemente, tinha passado três anos sem se reunir.
Para
o corrente ano, esses princípios, assim como o detalhamento das condições de
juros e prazos dos empréstimos, constam do documento editado pelo BNB “FNE –
Programação Regional, 2017”, disponível na internet. Chama a atenção, entre
outras coisas — mas, sem causar surpresa — o caráter "politicamente
correto" (arrrgh!) das “Diretrizes e Prioridades” do FNE, tanto as
“espaciais” quanto as “setoriais”.
Espaciais
& Especialíssimas
As
“diretrizes espaciais” recomendam dar um “tratamento diferenciado e favorecido
aos projetos que se localizem nos espaços reconhecidos como prioritários pelo
Plano Nacional de Desenvolvimento Regional”, na suposição (altamente duvidosa)
de que tal plano exista em algum outro lugar que não seja a propaganda do
governo. Ou a programação do FNE.
Além
disso, também são merecedores de “apoio preferencial”: (1) “no meio rural, os
agricultores familiares, os mini e pequenos produtores rurais e os
empreendimentos localizados em municípios com registro recente de secas”; (2)
no meio urbano, “as micro e pequenas empresas, inclusive, empreendedores
individuais”.
Em
suma, em total acordo com o ambiente ideológico em que vivemos e afundamos, o
Estado assume o papel de distribuidor de bondades para os coitadinhos. Não que
isso, realmente, vá acontecer em escala relativa apreciável: os valores que
grandes empresas recebem de superfaturamentos, empréstimos subsidiados,
isenções fiscais e aportes amigos de capital somam uns quatro FNEs por ano.
Mas, é importante repetir as palavras de ordem, na esperança de que alguém
acredite nelas.
Se
o bom senso prevalecesse, todos perceberiam que a melhor receita para fazer
crescer a renda regional (ou a renda dos pobres) NÃO É emprestar o dinheiro
errado, no lugar errado, à pessoa errada. Se o negócio, por menor que seja, for
economicamente inviável, o crédito fornecido não retornará e nenhuma adição
líquida ao produto social resultará do empréstimo.
Eventualmente,
uma providencial Medida Provisória perdoará as dívidas pregressas e tudo
começará de novo. O que era crédito virou transferência. A intenção pode ser
essa mesma. Mas, então, quem precisa de um Conselho Deliberativo, de uma
Sudene, de um banco? Basta armar uma tenda no meio da rua e distribuir o
dinheiro. Garanto que não faltarão candidatos.
Não
está nas capacidades do BNB (nem, muito menos, nas da inexistente Sudene)
contestar seriamente essas premissas. Elas são fundamentais à prática política
que aquieta os coitadinhos. Sem tais confortos (e já que nenhuma outra coisa
melhor lhes é oferecida), eles poderiam deixar de votar nos seus protetores.
Como não sou candidato a nada, lanço o protesto. Faz escuro, mas, eu canto,
diria o poeta Thiago de Melo.
Setores
do bem
As
“prioridades setoriais” da aplicação do FNE também merecem registro. Elas têm
três componentes: (1) a “expansão, diversificação e modernização da base
econômica regional”, (2) o “apoio aos setores exportadores regionais” e (3) a
“instalação de uma base produtiva contemplando setores inovativos ou atividades
portadoras de futuro”. (Cacoetezinho pedante, esse tal de "portadores de
futuro". E o futuro precisa de portadores?)
Como
se percebe lendo o documento, nas “diretrizes" correspondentes a essas
"prioridades setoriais" cabem nove décimos das atividades econômicas
conhecidas no mundo. Nenhuma delas, entretanto, ou quase nenhuma, é exercida,
no Nordeste do Brasil, por pequenos empreendedores urbanos, nem por “ainda mais
pequenos” agricultores. Alguém aí conhece um pequeno produtor rural analfabeto
que fabrique automóveis, tratores e máquinas pesadas?
Fiquei
confuso. Afinal, vamos nos guiar pela “diretriz espacial” e emprestar o
dinheiro a “atividades produtivas de uso intensivo de matérias-primas e mão de
obra locais” (o que credencia o plantio de mandioca para autoconsumo a ser uma
aplicação prioritária), ou iremos seguir a “diretriz setorial” e financiar a
"indústria química" (excluindo os explosivos, para evitar a produção
de homens-bomba), a "cadeia petroquímica, inclusive extração, refino e
transformação de petróleo e seus derivados”?
Quantas
horas de trabalho, de quantos técnicos, foram necessárias para escrever essas
diretrizes tão ricas em lugares comuns e em complexidades raras? Quantos
burocratas de nove estados nordestinos (ou seja, dez, com Minas; ou melhor,
onze, com o Espírito Santo) vieram ao Recife para incluir seus setores
favoritos nas “prioridades setoriais” do FNE? Quantas autoridades gastaram
diárias e passagens para aprovar, na reunião do Conselho que não se reúne, a
“Programação Regional” dos 25 bilhões?
Precisávamos, mesmo, de tantas andanças? Não seria
mais simples baixar apenas uma “diretriz
espacial-setorial-ecumênica-e-definitiva" dizendo que serão concedidos
empréstimos aos projetos que demonstrem a maior capacidade de pagá-los? Ou,
então, relembrando a nossa inesquecível “presidenta”, dizer assim: “a gente não
fixa a meta. Quando a gente alcançar a meta, a gente dobra a meta”?
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