Gustavo Maia Gomes
(Trecho do livro “Uma Noite em Anhumas”, em preparo)
(Trecho do livro “Uma Noite em Anhumas”, em preparo)
As mais antigas notícias de
que havia um automóvel circulando em Pernambuco são de 1901. Comprado pela
empresa Transportes de Goiana (PE), ele veio pela primeira vez ao Recife em
março de 1903. Era um veículo para doze pessoas. De uso individual (ou, no
máximo, do condutor e mais três pessoas), o primeiro carro a circular na
capital parece ter sido um Renault trazido em 1904 pelo médico Octavio de
Freitas.
Meios de transporte são uma
condição necessária à existência das cidades grandes. Mas, não são só isso.
Além da sua função utilitária, cada um tem as próprias conotações culturais e
subjetivas. Bondes eram democráticos, dizia Gilberto Freyre. Carregavam ricos e
pobres juntos e criavam espaços onde as pessoas de diferentes classes podiam
conversar.
Pois, digo eu, automóveis são
o oposto dos bondes: eles enaltecem a individualidade. Sinalizam o triunfo
egoísta do seu dono sobre a distância, o tempo, os horários inflexíveis, a
rígida separação entre o lar e a rua. Eu acho bom. O sociólogo de Apipucos que
me perdoe.
Meu pai sentiu tudo isso
agudamente. O automóvel era parte importante de seu mundo. Uma casa ambulante
que, em percursos urbanos, o conduzia de ida e volta ao trabalho com rapidez,
segurança e conforto. Ou à praia, nos fins de semana. Aos lugares de lazer, na
hora que lhe aprouvesse. E que, nos deslocamentos interurbanos, o podia levar,
como o fez, do Recife a Montevidéu, em poucos dias. Ou ao Chile. São Paulo. Rio
de Janeiro. Maceió. Branquinha. À Fazenda Monte Verde. Como ele amava isso
tudo!
O carro foi a glória, não
apenas de Mauro. Seu antecessor, o cavalo, se cansava facilmente, tinha humores
cambiantes, aplicava coices aleatórios, defecava na via pública, expunha os
condutores à chuva e ao sol excessivo, podia morrer do dia para a noite e, pior
de tudo, andava miseravelmente devagar. A máquina que carregava a si mesma era
outra coisa.
Para usar uma palavra que
detesto por conservadorismo, mas reconheço ser boa, o automóvel “empoderou” os
recifenses – primeiro, os homens, depois, também as mulheres. É verdade que o
idílio não duraria para sempre – não com a intensidade dos primeiros tempos –,
pois as ruas se entupiram dessas máquinas andantes. Isso emporcalhou o ar,
provocou congestionamentos e reduziu a velocidade média do automóvel para menos
que a de um cavalo bem nutrido.
Alguns anos depois, numa
espécie de pá de cal, as estradas ficariam repletas de armadilhas eletrônicas
capazes de gerar seiscentas multas numa viagem do Recife a São Paulo, para
felicidade dos governos e desgraça dos motoristas. Inclusive, dos cuidadosos e
conscientes.
(Eu, de minha parte, após ter
sido multado por não estar com os faróis ligados ao meio dia de um domingo
ensolarado no Nordeste brasileiro, desisti de dirigir. Sem o temor da multa, só
um imbecil acenderia lâmpadas em circunstâncias tais.)
Mas, enquanto durou, a era do
carro foi ótima. Produziu gente mais alegre, mais otimista, mais convencida de
que sua vida era melhor do que tinha sido a de seus pais. Claro que tudo isso
se aplica apenas aos que podiam possuir um automóvel. E esses eram poucos. E
daí?
Não devia me justificar, mas o
faço: estou falando de automóveis. Não dos direitos fundamentais do homem, ou
da extração de mais valia, ou da desigualdade de rendas, ou da inevitável derrocada
do capitalismo financeiro internacional e monopolista cada vez mais saudável,
apesar de tantos intelectuais acreditarem que bom mesmo era o socialismo.
Viva o carro!
(Publicado
no Facebook, 1/11/2019)
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