Julieta Maia Fernandes (1904-93) e seu marido João Fernandes Lins (1903-97) |
Gustavo Maia
Gomes
Julieta Maia Fernandes
(1904-93), nome de casada, foi a primeira filha de Júlio de Oliveira Maia e de Maria
de Gois, que moravam em Atalaia, mas se mudaram para Branquinha (ambas cidades
alagoanas) quando a menina era ainda bebê. Ela se casou com João Fernandes
Lins, (1903-97), cujo pai, Antônio, fora amigo de Floriano Peixoto, o consolidador
da República.
Vieram os
filhos: Geralda, Jairon, José, Geruza, Jadir. João era afetuoso com eles; Julieta,
um pouco seca, mas provedora e solidária. “Vovó era meio puritana”, escreveu
Ricardo Maia, filho de Geruza. E autoritária, “uma espécie de madre-superiora
no comando da casa e da família. O autoritarismo decorria de sua identificação
com a tia-avó Tetê [Tereza de Jesus Maia, a matriarca dos Maia Gomes], figura muitas
vezes lembrada com admiração e respeito”. Por Julieta, sim, mas não pelo
marido. Pois Tetê fora contra aquele casamento. Considerava que a sobrinha, uma
moça muito educada e prendada, podia conseguir pretendente melhor do que o “estouvado”
João.
UM PERIGO
Não obstante o
voto contra da tia-avó, em 1922, os dois se casaram. Para as circunstâncias da época,
o enlace deve ter sido considerado feliz, pois Julieta e João viveram,
oficialmente, juntos até o falecimento dela, em 1993. (O marido lhe
sobreviveria por quatro anos.) Mas, não foi um casamento desprovido de tumultos
e acidentes. Ela tinha fama de ciumenta; ele, de mulherengo. Devia ser, mesmo,
pois nas suas memórias admitiu isso:
Se, por ter muitas companheiras, errei, não
tenho remorso. Não sou um dos primeiros. Quando errei, tinha certeza: antes de
mim, (...) Fulano havia errado. Mas, (...) não se olha o erro do rico, somente
o do pobre. Se eu fosse rico, não pareceria um ousado. (...) Dizem ainda que
errei, [mas] desconhecem os fatores de uma vida isolada. Arre, não me julgo
errado não e não quero perdão se errei. Imagine se eu não o tivesse feito, o
que eu seria? (João Fernandes Lins, O homem
e o rio).
Por seu
turno, as histórias de Julieta e de seu ciúme são muitas. Como esta, bem
conhecida na família. Em 1973, Cacá Diégues dirigia Jeanne Moreau durante as
filmagens de Joana, a francesa, na
Fazenda Anhumas, em União dos Palmares. João Fernandes Lins era prefeito de
Branquinha, município vizinho. Inventou de promover um jantar em homenagem ao
elenco (que também incluía, dentre os estrelados, Pierre Cardim). Julieta, a
primeira dama branquinhense, desconfiou daquilo e se recusou a comparecer ao evento.
Achou, certamente, que o marido iria se “enxerir” para a famosa (e bonita)
atriz.
Em outras
ocasiões, Julieta deve ter protestado também de formas mais diretas, como João relembraria,
mais tarde:
Minha esposa quando jovem era [um] perigo,
levava a vida toda a me olhar – um cuidado tamanho que fazia dó. Começavam
então as discussões – com brigas ou sem: vamos chorar! E eu blasfemava contra
Deus por consentir aquele [seu modo de ser]. Os anos passavam na mesma agonia e
eu apelando para, no final da vida, descansar. [De fato], aos quarenta anos foi
amenizando; aos cinquenta não existia mais tanto calor e, com setenta anos,
vivemos como crianças (João Fernandes Lins, O
homem e o rio).
Nas palavras
do neto Ricardo,
Vovó Julieta era a filha primogênita. Deve ter
tido uma educação sentimental muito severa, a típica educação rígida demais que
era reservada às meninas e mocinhas da sua classe social eivada de puritanismo.
Isso, certamente, a deixara insegura na relação afetiva-e-sexual com seu voluptuoso
marido. O resultado foram convulsivas crises de 'conversão histérica' (no
sentido freudiano), que despontaram com a aproximação da terceira idade. Crises
essas que sempre provocavam rigidez muscular acompanhada de terríveis dores
ciáticas e problemas de coluna. Trocando em miúdos: vovó vivia, na própria
carne trêmula, um típico processo psicossomático de “encouraçamento muscular”
(na acepção reicheana). Tanto, que algumas vezes foi preciso tratá-la com
massoterapia e injeções. (Ricardo Maia, via Messenger, 12/1/2020)
Apesar disso,
nas lembranças da filha Geralda, as desavenças do casal não provocavam brigas
abertas. Tipicamente, quando acontecia um desentendimento, Julieta desaparecia
da casa – ela e a família moravam na fazenda Riachão da Serra –, para se refugiar
no seu abrigo preferido. Ficava lá horas a fio, até João sentir a sua falta e encontrá-la
sentada à sombra de um cajueiro, como se a árvore lhe desse um ombro amigo e
confidente. Então, o marido bonitão e galanteador vinha com a fala mansa e com carinhos
fazer as pazes com a mulher. E fazia, conseguindo trazê-la de volta para casa,
de mãos dadas, os dois caminhando abraçados, ou ele a carregando nos braços.
MULHER DE FIBRA
Mas, nem só
de ciúmes vivia Julieta. Ela era, também, muito trabalhadora. Enquanto solteira,
ajudou muito seu pai na administração do engenho Flor do Mundaú. Na avaliação do
neto Ricardo Maia, o patrimônio da família Maia Fernandes – formada pelo seu casamento
com João – só foi acumulado por causa dela. Isso, na certa, ajudou-a a construir
a imagem de uma mulher de fibra, imagem que carregou, orgulhosa, até o fim da
vida. A obsessão pelo trabalho se devia também, provavelmente, ao trauma vivido
com a venda – um tanto desesperada e desastrosa! – das terras de seu pai, Júlio
Maia, ao primo e usineiro José Maia Gomes.
Logo depois dessa
venda, prossegue Ricardo, “alguém da Branquinha, amigo da família de Júlio
Maia, testemunhou a esposa do comprador confessar que o dinheiro pago por José
Maia Gomes pelo engenho Flor do Mundaú era o que valia somente a casa-sede da
fazenda”. Se foi mesmo assim, esse terá sido apenas mais um exemplo das usinas “engolirem”
as terras dos antigos engenhos de açúcar.
Nos últimos
anos de suas vidas, apesar de continuarem oficialmente casados, Julieta e João viveram
a maior parte do tempo longe um do outro: ele em Branquinha, ela em Maceió. Viam-se,
apenas, nos fins de semana. Escreveu o marido:
Tenho esposa e não tenho; vivo sozinho na
fazenda. Conformado já me sinto em viver na solidão: faço versos e poesias,
servem a mim de distração. No décimo-quarto dia de setembro do ano em curso (1982)
completaremos, se Deus consentir, 60 anos de casados. Será que eu tenho direito
a um total perdão?” (João Fernandes Lins, O
homem e o rio)
Ainda o tema
do ciúme?
REUNIÃO NO FIM DA VIDA
A separação
de fato se prolongou por vários anos. Quando, finalmente, por razões médicas, João
não teve mais condições físicas de viver sozinho na fazenda, deixou a
administração das terras nas mãos dos filhos Jairon e José e mudou-se para
Maceió. Foi um processo de adaptação complicado à vida na cidade, onde Julieta já
residia há um bom tempo. Essa mudança, feita a contragosto, parece ter
acelerado a decadência física do antigo fazendeiro da Riachão da Serra, segundo
lembranças recolhidas pelo neto Ricardo Maia.
A casa para
onde foi João Fernandes ficava no Centro de Maceió. Ele se alojou na parte de
cima. Julieta continuou no quarto que deveria ser o do casal, no andar de baixo.
Muito determinada e geniosa, decidiu que aquela dependência seria ocupada somente
por ela, pois era “muito feio marido e mulher, depois de idosos, dormirem juntos”.
Só essa ideia parecia constrangê-la profundamente. Tanto que, diz Ricardo Maia,
certa vez, flagrou o avô forçando a porta do quarto, ameaçando nele penetrar,
enquanto a mulher empurrava energicamente a porta tentando fechá-la, sem
conseguir. João fazia aquilo com um sorriso no rosto, divertindo-se com os
escrúpulos puritanos de Julieta.
Jeanne
Moreau, àquela altura, era só uma recordação distante. Talvez, ainda viva nos
sonhos, nada mais.
*****
NOTA: As
informações sobre Julieta (Maia Fernandes, após o casamento) e João Fernandes
Lins me foram passadas via Messenger-Facebook por seu neto Ricardo Maia e têm
como fonte as lembranças dele próprio e de Geralda Fernandes Maia, filha de
Julieta. Em várias ocasiões, copiei livremente o texto de Ricardo. Também
utilizei passagens do livro de João Fernandes Maia O homem e o rio (Maceió, 1982), o marido fazendeiro, poeta e mulherengo
de Julieta.
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