Gustavo
Maia Gomes
Recife, 9 de janeiro de 2020
Caro
Luiz:
Talvez
isso lhe surpreenda, mas concordo em 100% com o autor do artigo (anexo) que me enviou, publicado pela Folha de S. Paulo. E com os comentários
específicos que, sobre o mesmo, você fez. Isso por acumuladas razões. Não sei se sabe, mas, há muitos anos,
em 1994, tive a extraordinária oportunidade de ter acesso em detalhes à folha de
salários públicos estaduais de Pernambuco. Com a cobertura dada por uma Comissão
Parlamentar Inquérito da Assembleia Legislativa, pude examinar nominal e
individualmente, para todos e cada um dos meses de 1993, os contracheques dos
funcionários dos três poderes. Fiquei escandalizado.
Quatro
classes tinham ganhos desproporcionalmente
altos (não eram apenas “salários”; os penduricalhos já haviam sido inventados):
o pessoal do Judiciário (inclusive, juízes), do Legislativo (inclusive,
deputados), os fazendários e os procuradores. Eu e dois outros colegas da Universidade
Federal de Pernambuco, Hermino Souza e Fernando Campelo, redigimos o relatório
final da CPI, publicado pelo Diário
Oficial do Estado e, algum tempo depois, como Texto para Discussão do Pimes-UFPE. (Pimes é o nome do programa de pós-graduação em economia.)
O
documento era, na verdade, um libelo, ao apontar as enormes distorções de
ganhos entre grupos comparáveis de funcionários. Por exemplo: escalonando em
ordem decrescente os cinquenta maiores salários (etc) anuais da Secretaria da
Fazenda, (sem revelar os nomes; a transparência de hoje – excessiva, na verdade
–, ainda não existia) resultava que o servidor mais “pobre” dessa lista (ou
seja, o quinquagésimo) ganhava mais do que o número um da Secretaria da
Educação (incluindo professores) ou da Saúde (incluindo médicos).
Imaginei
que a imprensa local descobriria o relatório e lhe daria ampla divulgação. Afinal,
a CPI despertara atenção. Ledo engano. Repercussão zero. Como fui para o
Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em Brasília) logo em seguida,
deixei o caso para trás. Mas continuei a pensar sobre o assunto. Descobri que o caso de Pernambuco não era exceção, mas a regra. Passei, então, a
buscar uma interpretação para a calamidade. E a encontrei. É um triste retrato
de nossa época.
Vale dizer que fazendários,
procuradores, juízes de Direito nem sempre ganharam essas fortunas mensais ou anuais.
Ao contrário. Para falar de um caso que conheço bem, meu avô (Nominando Maia
Gomes, 1886-1966) foi juiz toda a vida. Se não fosse o pequeno patrimônio que lhe vinha do pai, mal teria se sustentado. Mais pagou do que recebeu para ser juiz em Alagoas.
Morreu pobre, numa pequena casa alugada, no centro de Maceió. Consumira a
herança.
A
mudança gloriosa (para juízes, fazendários et alii) ocorreu com a
redemocratização de 1985. Subitamente, eles todos, enquanto classes, perceberam
as oportunidades abertas pelo novo mundo. Tinham autonomia e segurança para
condenar os “poderosos”, podiam fazer greves, eram capazes de usar a imprensa livre para colocar a opinião pública
contra os que se recusassem a reconhecer quem era, de fato, a nova classe
dominante. Não tinha sido assim durante os anos militares (1964-85); nem antes, tampouco.
Mas
agora era. E eles perceberam o poder que tinham. A Universidade (ou seja, nós)
pode ficar seis meses em greve. Ninguém irá notar. Mas se a Receita Federal
ameaçar cruzar os braços por três dias, o governo treme, se mela todo. Com os juízes, é a mesma coisa. Se não
tiverem suas demandas escalafobéticas imediatamente atendidas, bastará um deles
dizer que vai tirar da gaveta aquele velho processo contra o ministro, o
secretário, o governador, e a República estremecerá. Essa gente, meu caro
Luiz, fez do Estado brasileiro um refém. Tomou-o de assalto. São rentistas no
sentido canônico da palavra. Estamos lascados.
É
verdade que, nos anos de Lula e Dilma, os funcionários públicos em geral obtiveram
grandes ganhos. (Nada que se comparasse aos das quatro castas já referidas, contudo.) Inclusive nós, professores
universitários. As benesses salariais e em financiamentos fartos para pesquisas
nem sempre relevantes, a repetida criação de cursos economicamente
injustificáveis e de empregos desnecessários nas universidades
obedeceram, claro, a uma estratégia eleitoreira. Nesse sentido, tiveram grande
sucesso. Mas, graças à doação indiscriminada de dinheiro aos funcionários públicos promovida
pelos governos petistas, resultou que somos hoje acusados, com alguma razão, de sermos
todos privilegiados e responsáveis pelas dificuldades financeiras do país.
Não
há qualquer grau de comparação, entretanto, entre os “privilégios” do
funcionalismo público em geral e os privilégios (sem aspas) das quatro castas
dominantes: fazendários, juízes, procuradores, políticos. E tem mais, derrubado o PT, com sua estratégia de trocar benesses financeiras
por votos, a realidade que subsiste é a mesma que
existia antes de Lula e seus companheiros: quem tem poder real, meu amigo, não
é o professor universitário (cuja ameaça de greve não faz ninguém tremer). É a
casta dominante. Quando o ajustamento fiscal estiver completado, nossos
salários (falo como professor universitário que, entretanto, já não sou) terão
se reduzido do “mais ou menos” de agora para o “muito ruim” de sempre. Duvido
que o mesmo aconteça com o dos juízes.
Só
um ponto a mais. Como sabe, fui um breve Secretário estadual de Planejamento (PE).
Estávamos elaborando a proposta de Orçamento para 1992. A situação fiscal do
Estado era preocupante. Recebi a proposta do Judiciário. Eles queriam somente (desculpe o exagero retórico) a receita fiscal inteira e mais uns dez mil-réis. Fui
conversar com o presidente do Tribunal. Recebeu-me de forma cordial, mas
não cedeu nada. Argumentou que se não lhe fosse dado aquele dinheiro,
sobreviria o caos. Terminou levando dois terços do que havia pedido, ou seja, quatro
vezes mais do que merecia ou precisava.
O homem sabia que mundo era aquele em que passáramos todos a viver e estava se aproveitando dos novos tempos. A "Constituição Cidadã” de 1988 garantiu a autonomia dos poderes. Isso foi, mais do que depressa, convenientemente
interpretado como significando que um poder (na verdade, dois) que não arrecada um centavo tem o
direito de gastar o que bem entender, quem quiser que se ajuste. É uma tragédia, meu amigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário