sábado, 6 de maio de 2017

Fogo na avenida

Gustavo Maia Gomes

Wandeck Santiago. Pernambuco em Chamas:
A intervenção dos EUA e o golpe de 1964.

Recife, Cepe Editora, 2016
Aos que se interessam pela história política brasileira, recomendo a leitura de Wandeck Santiago, Pernambuco em Chamas: A intervenção dos EUA e o golpe de 1964. Eu o li com grande proveito. Não concordo em cem por cento com o autor. Longe disso. O subtítulo, por exemplo, me desagrada um pouco. Nada contra o nome “golpe” aplicado àquele episódio; a palavra “intervenção”, porém, me parece exagerada. Eu restringiria este termo a atos de força promovidos por um agente externo que impõem ou tentam impor ao inimigo o resultado buscado pelo agressor. Não devo estar sozinho nessa interpretação. Precisamos usar termos diferentes para fenômenos desiguais – e existe a palavra “interferência”. Intervenção é uma coisa – implica o uso da força bruta; interferência, outra, mais branda.

Nesse sentido, não houve intervenção de qualquer país estrangeiro no Brasil, antes ou depois do golpe de 1964. Poderia ter ocorrido. Como sabemos (e Santiago também, pág. 182), “petroleiros da Marinha” dos Estados Unidos trazendo armas e munições chegaram a iniciar viagem às costas brasileiras, para apoiar o golpe militar, na hipótese de este enfrentar reação. Mas o plano foi cancelado, por desnecessário: o governo Goulart desmanchou em um dia, sem oferecer resistência, e a frota americana deu meia volta. Não se consumou a intervenção. Interferência, sim, houve, e muita, como seria de se esperar naquele mundo imerso na Guerra Fria, a confrontação ideológica e sempre perigosamente próxima de se tornar uma guerra de verdade, entre os Estados Unidos e a União Soviética. Só que a interferência veio dos dois lados, não apenas da potência americana.

A OUTRA FACE DA VERDADE

Essa querela em torno de um subtítulo talvez não seja irrelevante. Pois, os mesmos fatos que Wandeck Santiago tão bem descreve e documenta sobre as tentativas de os Estados Unidos influenciarem os acontecimentos políticos no Brasil poderiam ter sido interpretados de maneira diferente daquela sugerida pelo rótulo “intervenção”. Para tanto, seria preciso que o autor desse um peso maior ao fato de que, naquele clima de Guerra Fria, qualquer política nacional (ainda mais de países grandes, como o Brasil) fazia, inevitavelmente, parte do enredo maior da disputa entre EUA e URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

Ele está consciente disso. (Leia-se a primeira frase do Prefácio, assinado por Pablo Porfírio: “este livro é um thriller [narrativa de suspense] sobre a Guerra Fria”. Ou o que o próprio Wandeck escreve à pág. 39, falando sobre a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro como um “efeito” da confrontação pós-1945 entre os EUA e a URSS). Mas, por algum motivo, terminei de ler o livro com a sensação de que o autor tinha tentado me convencer de que houve uma “intervenção” – eu preferiria dizer interferência – dos Estados Unidos na política brasileira, mas não ocorreu nada parecido do lado oposto: a URSS e/ou, dava no mesmo, Cuba.

E daí? Daí que uma narrativa mais equilibrada teria de também mencionar a interferência soviética (leia-se, russa) sobre a política brasileira. Mesmo que este não fosse o objeto principal do livro, a ressalva precisaria aparecer (aqui e ali, é feita, mas sem a necessária ênfase, acho eu), para que o leitor de hoje, provavelmente, nascido depois de 1964, pudesse ver os acontecimentos narrados sob uma perspectiva mais verdadeira. O paradoxo é que a URSS influenciava a política brasileira tanto quanto – ou mais do que  os Estados Unidos. Mesmo que os detalhes dessa interferência nunca venham a ser completamente conhecidos, alguns aspectos dela eram facilmente observáveis, ou vieram a público nos anos posteriores ao golpe. Por exemplo:

(1) O Partido Comunista Brasileiro (obediente a Moscou), na clandestinidade, mas com enorme capacidade de doutrinar ideologicamente e de mobilizar as forças da esquerda, nunca deixou de atuar. Wandeck escreve (pág. 133), citando José Arlindo Soares: “Na Frente do Recife [aliança política de esquerda], que vencera as três últimas eleições locais, o PCB ocupava posição de destaque. (...) nenhuma dessas vitórias teria sido obtida ‘sem o Partidão comandando a famosa Frente’”.

(2) O governo de Cuba também apoiou as forças que visavam dar o golpe da esquerda, oposto ao que, efetivamente, ocorreu. Cito Wandeck Santiago: “Em 1963, um grupo que atuava dentro das Ligas [Camponesas] fez a opção pela luta armada. Enviou militantes para treinamento em Cuba e montou campos de preparação da guerrilha no Brasil” (pág. 70). Isso, convenhamos, era bem mais grave do que distribuir leite em pó para crianças pobres, uma das formas mencionadas no livro da “intervenção” dos EUA na política brasileira.

FATORES “CULTURAIS”

Além do que foi mencionado acima, embora aqui não se possa falar de “interferência” deliberada de uma potência estrangeira, havia na cultura política brasileira fatores que favoreciam a penetração das ideias com as quais a URSS simpatizava. A influência desses fatores na formação de uma opinião pública simpática às teses de esquerda era muito maior do que a que poderia ser conseguida com as ações de “intervenção” (segundo Wandeck) dos EUA na política nacional.

Por um lado, para a imensa maioria da intelectualidade brasileira, ontem, como hoje, ser antiamericano era (ainda é) uma obrigação moral. Pode-se imaginar o que isso significa em termos de predisposição para votar ou apoiar ações violentas em favor da esquerda. Por outro lado, também produzia esse mesmo efeito a facilidade de atrair adeptos que o discurso populista, assumido integralmente por João Goulart nos seus últimos meses como presidente, possuía. Em 1964, como hoje, qualquer político que prometesse aumentar salários, confiscar propriedades, fazer “reformas de base”, limitar remessa de lucros para o Exterior, e outras coisas semelhantes, tinha popularidade garantida. E essas eram teses caras à União Soviética, pois sua difusão alimentava a crise econômica que o país enfrentava nos anos sessenta, com enorme potencial de desestabilização política e, portanto, de redução ou perda de influência dos EUA no Brasil.

Eu gostaria de ter encontrado uma ponderação maior de tudo isso no Pernambuco em chamas de Wandeck Santiago. Se ele o tivesse feito, os fatos que trouxe a tona ou nos fez relembrar se tornariam ainda mais significativos. Mas o livro é bom, mesmo com esse viés. Devo dizer, em defesa do autor, que eu também gostava de acreditar na “intervenção” dos Estados Unidos como explicação universal para o golpe militar. Repetir aquela visão simplista do complexo processo político que, meio século depois, nos traria o flagelo dos governos petistas, dava a todos nós o conforto das certezas absolutas, mesmo quando falsas.

Precisei me estender sobre esses aspectos para deixar claros meus argumentos. Ficou faltando espaço, infelizmente, para uma apreciação mais demorada dos pontos altos do livro – e são muitos. A pesquisa está bem documentada; o estilo é fluente; muitos fatos descritos não eram de conhecimento geral; é preciosa a recordação de que, há setenta anos, estávamos discutindo e tentando implementar ações para estimular o desenvolvimento econômico (vide a Sudene, Celso Furtado, o Relatório Merwin Bohan). Que contraste com o discurso dos tempos atuais, em que o problema de superar a pobreza dos brasileiros e nordestinos foi reduzido à distribuição das esmolas do Bolsa Família.

Considero que Wandeck Santiago, a quem eu já conhecia como grande jornalista, elevou ainda mais sua reputação com este livro, que não trata de incêndios nem apela para o Corpo de Bombeiros, mas inclui as chamas de uma estranha passeata noturna feita no Recife, em 1963 (possivelmente, na Avenida Conde da Boa Vista), por camponeses nem sempre tão camponeses assim (na foto, muitos parecem estudantes de classe média), conduzindo pedaços de pau pegando fogo.

Uma nota final. Li o que Wandeck Santiago escreveu à pag. 95 de seu livro: “No auge da Guerra Fria, é de se supor que o governo soviético também estivesse mantendo contatos e encontros com autoridades e políticos brasileiros. A URSS, porém, nunca teve política de liberação de documentos sigilosos, diferentemente dos EUA”. Pode ser um reconhecimento parcial (e uma tentativa de justificação) de que seu livro sofre mesmo de certo desbalanceamento. Que, entretanto, é amplamente compensado pelos pontos positivos a que fiz referência. E por muitos outros.

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