quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Raul Dias Cardoso e a conspiração integralista em Alagoas

Gustavo Maia Gomes
Raul Dias Cardoso e Maria Augusta Pires Ferreira (Cinola),
provavelmente, em sua casa do Poço,
em Maceió, AL (12/3/1973). 
Durante uma fase de sua vida, Raul Dias Cardoso (1894-1979, irmão de minha avó materna, Olga) teve atividade política intensa. Integralista, foi preso, pelo menos, uma vez e, em outra ocasião, teve de prestar depoimento à polícia, ficando detido. Em julho de 1942, quando os navios brasileiros já haviam sido afundados pelos alemães, mas o nosso país ainda não tinha declarado guerra às potências do Eixo, Raul retratou-se, em depoimento à polícia, de suas preferências antigas, afirmando não ter mais convicções integralistas e avaliando que a eventual vitória da Alemanha-Itália-Japão no conflito mundial seria uma calamidade.

Surgido em 1932 e chefiado por Plínio Salgado (1895-1975), o Integralismo foi o primeiro movimento político de massas do Brasil. “Organizou excepcional rede de imprensa e, com sua militância atuante, conseguiu fundar núcleos por várias partes do país, configurando-se como o primeiro partido político brasileiro com implantação nacional e reunindo cerca de meio milhão de aderentes”. A difusão pelo país alcançou Alagoas, onde vários núcleos do movimento foram criados e mantidos, na capital e no interior. Raul Dias Cardoso comandava um deles (ou mais de um?), na região de Atalaia, Cajueiro e Capela.[1]
Em novembro de 1937, com o golpe do Estado Novo, o Integralismo foi proscrito. Até que isso acontecesse, entretanto, a situação parecia ser inteiramente outra, a ponto de Getúlio Vargas ter prometido ao chefe integralista que o seu movimento seria acolhido na nova ordem, já então sendo preparada, podendo Plínio Salgado, até mesmo, indicar o futuro ministro da Educação. Tratava-se, porém, de uma manobra diversionista: Getúlio, simplesmente, ganhava tempo, de modo a tomar a iniciativa contra os camisas-verdes apenas quando estivesse seguro de que conseguiria esmagá-los.
Talvez essa dubiedade existente no Rio de Janeiro, tenha-se espraiado pelas unidades da federação, pois, em 1936 -– antes, portanto, do Estado Novo -–, houve perseguições aos integralistas desencadeadas por governadores (ou interventores) como os do Paraná (julho) e de Alagoas (outubro). Foi depois do segundo desses episódios que os títulos e subtítulos abaixo apareceram no Diário de Pernambuco.
– Alagoas: Como se processou o fechamento das sedes integralistas
– Nota Oficial da Polícia
– Medidas tomadas pelo comandante do 20º B. C.[2]
Fascismo tropical
Estaria em marcha uma conspiração integralista para tomar o poder no Brasil? O governo de Alagoas acreditou que sim. Raul Dias Cardoso, que, então, morava em Capela (AL), foi preso, acusado de ser um dos líderes do movimento naquele município.
O integralismo foi a versão brasileira do fascismo italiano, com a importante diferença de que, entre nós, os camisas-verdes jamais chegaram ao poder. Mas, não se tratou, apenas, de uma organização composta por gente simplista ou por fanáticos da extrema direita. Longe disso. Quantidades apreciáveis de políticos, líderes religiosos e pensadores sociais que começaram a vida pública no movimento liderado por Plínio Salgado se tornaram, depois, figuras respeitadas pela esquerda, como San Thiago Dantas (1911-64), ministro das Relações Exteriores e da Fazenda de João Goulart; Dom Helder Câmara (1909-99), arcebispo católico opositor da ditadura militar (1964-85); e Roland Corbisier (1914-2005), filósofo, deputado, e fundador do célebre ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), foco do pensamento nacionalista antes de 1964. 
No sentido oposto do espectro político, vários antigos integralistas permaneceram fieis à orientação conservadora e se destacaram durante o regime militar, como Miguel Reale (1910-2006) jurista, escritor; Alfredo Buzaid (1914-91), Ministro da Justiça (1969-74); e Raimundo Padilha (1899-1988), governador do Rio de Janeiro (1971-75).
Havia, enfim, aqueles que eram ou se tornaram intelectuais respeitados, independentemente de sua opção política posterior aos tempos integralistas. Estes incluem o próprio fundador do movimento, Plínio Salgado, político, escritor, jornalista e teólogo; Gustavo Barroso (1888-1959), advogado, professor, museólogo; Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), historiador e antropólogo; Augusto Frederico Schmidt (1906-65), poeta da segunda geração do modernismo, diplomata e editor; Vinícius de Morais (1906-65), diplomata, poeta e compositor musical; Álvaro Lins (1912-70), advogado, jornalista, professor, crítico literário e membro da Academia Brasileira de Letras.
Em Alagoas, três figuras importantes na história do Integralismo foram Mário Marroquim (1896-1975), filólogo, jornalista, advogado, músico e professor; Afrânio Lages (1911-90), político que chegou a governador do Estado (1971-75); e José Lins do Rego (1901-1957), um dos principais escritores do chamado romance regionalista dos anos 1940, que não era alagoano, mas morou naquele Estado durante alguns anos. Na sua esfera de atuação, mais local, Raul Dias Cardoso esteve envolvido nos acontecimentos de Atalaia e da Usina Uruba, em 1936.[3]
A conspiração alagoana
Retomo a história da alegada conspiração integralista em Alagoas, desarticulada no mês de outubro de 1936. Dizia o Diário de Pernambuco, difundindo informação vinda de Maceió: “Ontem à tarde, corria insistentemente [a notícia de] que o governo do Estado mandara fechar todos os núcleos integralistas do território alagoano”. Era verdade: a polícia havia apreendido “documentos comprometedores das intenções subversivas dos adeptos do Sigma [símbolo do integralismo]”. Fora dada a ordem, em seguida, de uma busca na sede do movimento, “a fim de deter o arquivo da Chefia Provincial”. A busca, entretanto, fracassou:
Preso o chefe do gabinete provincial [do movimento integralista em Alagoas], declarou este que o arquivo havia sido retirado na véspera pelos Srs. Mário Marroquim e Fernando Oiticica, ignorando o motivo que havia levado seus companheiros a isso.[4]
“Comparecendo, depois, à chefatura da Polícia, o Sr. Mário Marroquim negou a veracidade das declarações de seu companheiro”. Paradoxalmente, prossegue o relato, “esse fato veio positivar ainda mais as intenções dos camisas-verdes”. Como providência seguinte, imediata, “foi preso o tenente Oliviél Pedrosa [Antonio Oliviél de A. Pedrosa], chefe municipal integralista de Atalaia, tendo a polícia, em cerco efetuado na Usina Uruba, prendido o camisa-verde Raul [Dias] Cardoso”. Bem, a Usina Uruba pertencia ao meu avô Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa (falecido naquele mesmo ano), cunhado de Raul. Este havia sido atraído para Alagoas após a compra da Usina por Manoel Sebastião. Tal era a razão pela qual o chefe integralista municipal, nascido em Santa Rita, PB, agora residia em Capela, cidade vizinha a Atalaia. Na região, ele fazia política conspiratória, como era a regra naqueles tempos.[5]
Após o fechamento da sede provincial aqui [Atalaia], o que se deu de maneira rápida e enérgica, foram retiradas as tabuletas da fachada contendo os nomes da “Ação Integralista Brasileira” [AIB] e do vespertino A Província.[6]
A polícia forneceu à imprensa cópias dos documentos que, apreendidos, haviam motivado a ação repressiva. Um deles, remetido pela AIB [Aliança Integralista Brasileira] / Núcleo Municipal de Atalaia e dirigido ao “companheiro” Raul Dias Cardoso – Usina Uruba, dizia:
Com o início do plano do chefe Celestino, está demonstrada a nossa vitória. Em Sergipe, a força pública está conosco. [Na] Bahia, apesar das escaramuças do governo do Estado, tudo parece [nos mostrar que haverá] campo franco para a nossa almejada Revolução.
Não demonstre muito interesse aos companheiros. Aguarde notícias. Ontem, recebi uma carta de um companheiro de Sergipe, (...) na qual me expõe com clareza o modo pelo qual deve ser iniciado o levante nos “Núcleos Municipais”. Como já sabes, não desanimo e estou disposto ao sacrifício, a fim de não perdermos a oportunidade.
Brevemente, lhe tratarei assunto de máxima importância e que só com a vista, pois trata-se (sic) de alto interesse na causa.
Anauê. Pelo bem do Brasil!
Antonio Oliviél de A. Pedrosa[7]
Acrescento um esclarecimento e uma pergunta: (i) “Anauê” era a versão tropical do Heil Hitler, a saudação nazista (embora a identificação de Plínio Salgado fosse muito mais com Mussolini do que com o ditador alemão); (ii) O signatário da carta secreta era “Antonio Oliviél de A. Pedrosa”. “A. Pedrosa” significaria “Araújo Pedrosa”? Não consegui elucidar este ponto, mas aquele “A. Pedrosa”, em Atalaia, em 1936, amigo de Raul Dias Cardoso, bem que podia ser parente de Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa, meu avô, proprietário da Usina Uruba.
O segundo documento apreendido pela Polícia alagoana dizia, entre outras coisas:
Ao companheiro Salustiano Eusébio. Chefe do Gabinete Provincial.
De acordo com as novas instruções, acabo de informar ao companheiro Raul Dias Cardoso, em Uruba, que deve reunir o maior número possível de companheiros, a fim de seguirem a orientação do capitão Aguinaldo Celestino, chefe provincial de Sergipe, ora em missão da Chefia Nacional em Alagoas, a fim de entrar nessa cidade para de qualquer forma levar a efeito o plano.[8]
Provas do crime
A Polícia apresentou essas cartas como provas de que uma insurreição estava em vias de ser deflagrada. (Lembremos que, apenas um ano antes, em 1935, os comunistas de Luís Carlos Prestes haviam tentado tomar o poder no Brasil, por meio de uma rebelião militar que, dominada, suscitou violenta reação do governo Vargas.) O governador Mendonça Braga foi drástico na repressão: além de fechar todas as sedes da AIB, proibiu “em todo o território alagoano o uso da camisa verde ou de qualquer outro distintivo integralista”. Aquele que tentasse desobedecer seria “punido severamente”. Não sei se disso tudo resultou, além da prisão, alguma consequência negativa mais permanente para Raul Dias Cardoso.
A Associação Integralista Brasileira, assim como todos os outros partidos políticos, foi extinta pelo presidente Getúlio Vargas, imediatamente após a instauração do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937. Mas, os seguidores de Plínio Salgado não seriam facilmente esquecidos. Quando, em fevereiro de 1942, navios brasileiros foram torpedeados pela Alemanha, um clima de caça às bruxas se instalou no país. Havia o risco de que estrangeiros aqui residindo, ou mesmo brasileiros, servissem como espiões das potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Seria o “quinta-colunismo”, a sabotagem perpetrada por gente colocada em posições estratégicas para passar informações ao inimigo. (Embora, ainda não, oficial: o Brasil só declararia guerra à Alemanha e Itália em agosto daquele mesmo ano.) Raul Dias Cardoso, na sua condição de simpatizante do regime italiano, estaria, fatalmente, entre os suspeitos.
Eis o que publicou, em 4 de julho de 1942, o jornal do Rio de Janeiro A Noite:
Campanha contra o quinta-colunismo em Alagoas: (Maceió). Prosseguindo na repressão ao “quinta-colunismo”, o secretário do Interior ouviu na Penitenciária o bacharel Mário Marroquim e os senhores Raul Dias Cardoso e Artur Góes, antigos chefes integralistas. (...)
Raul declarou que considerava o Estado Novo [a ditadura aberta instaurada por Getúlio Vargas em 1937] uma conquista idêntica à da Independência do Brasil em 1822 e que considerava absurda a possibilidade de vitória por parte dos países do Eixo que, a seu ver, seria uma verdadeira calamidade um triunfo teuto-ítalo-nipônico. Acrescentou não ter mais ilusões nem ideias integralistas, nem tampouco manter relações com seus antigos companheiros.[9]
Assim terminou, tanto quanto eu sei, a carreira política de Raul Dias Cardoso.





[1] O trecho entre aspas é de Rogério Lustosa Victor. “Getúlio Vargas e o Integralismo: histórias de pescador”, Revista Angelus Novus – nº3 – maio de 2012,  disponível em http://www.usp.br/ran/ojs/index.php/angelusnovus/article/view/129/pdf_29 (acesso em 22/7/2016). Lustosa Victor, por sua vez, , cita Hélgio Trindade. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. São Paulo: Difel, 1974, p.10.
[2] Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 5.
[3] Afrânio Salgado Lages era filho do coronel José Lages (que aparece noutro capítulo do livro em preparo, quando trato das vicissitudes da Usina Campo Verde, dos Maia Gomes) e tio de Abenair Maia Gomes Lages, marido de Vânia Bahia Maia Gomes e pai de André Maia Gomes Lages, todos eles, não apenas primos, mas grandes amigos do autor.
[4] Todas as citações desta seção foram retiradas de “Alagoas”, Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 6.
[5] Apesar de ter sido preso em Atalaia, município-sede da Usina Uruba, Raul Dias Cardoso, provavelmente, residia em Capela. Ali exercia atividades de cultivador e exportador de fumo, conforme registrado pelo Almanak Lemmert de 1935 (e de 1936.)
[6] Todas as citações desta seção foram retiradas de “Alagoas”, Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 6.
[7] Todas as citações desta seção foram retiradas de “Alagoas”, Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 6.
[8] Todas as citações desta seção foram retiradas de “Alagoas”, Diário de Pernambuco, 6/10/1936, pág. 6.
[9] A Noite (RJ), 4/7/1942, pág. 4.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Assim caminha a humanidade

Gustavo Maia Gomes

Um importante economista francês, Gael Giraud, esteve no Recife, há poucos dias (17/9), e aqui fez palestra. Foi uma boa palestra. Assim são os economistas franceses: mesmo quando erram tudo, fazem boas palestras.
O menu servido teve uma entrada de teses macroeconômicas agradáveis ao pensamento esquerdista ("crescimento não cria empregos", "ajuste fiscal leva ao inferno"... Altamente discutíveis, para ser bondoso) e um prato principal recheado de apocalipses now ecológicos.
Como se deveria esperar ouvir de um intelectual francês (riquíssimo, em comparações históricas e geográficas; altamente instruído; habitante de uma sociedade que lhe permite expressar suas ideias), o mundo vai mal. Estamos na iminência de morrer afogados pela subida dos oceanos e — atenção! — a culpa de toda essa desgraça é da propriedade privada. (Ele não disse, mas, com certeza, pensou: e do capitalismo, da busca do lucro...)
O que fazer? A sugestão do palestrante foi que imitássemos a África dos primitivos habitantes e outras regiões (como o Brasil, antes dos portugueses, ou a Amazônia ainda selvagem?) onde não existe a propriedade privada. Quem sabe, seria o caso de nos mudarmos para lá?
Imagino que o Sr. Giraud tenha chegado a essa convicção estudando em seu gabinete parisiense com ar condicionado (no verão) e aquecimento central (no inverno), vista para a belíssima Avenida Champs Elisées, ouvindo música clássica, cem metros distante dos melhores restaurantes (que ele pode pagar)...
... ou a duas quadras do museu Louvre. E com seu alto salário garantido, os ingressos para o teatro comprados, com a sensação de que pode escrever qualquer coisa sem ser perseguido por isso, com a tranquilidade que a assistência médica lhe dá.
Daqui há sessenta anos, ele, quarentão, hoje, ainda estará vivo. Reclamando. E sendo pago em dia. Tudo isso, caro economista francês, foi construído pela propriedade privada, pelo lucro, pelo capitalismo. Deveríamos trocá-lo pela África nativa, ou pelo Brasil selvagem?
São lugares onde não há propriedade privada, claro, mas as pessoas vivem trinta anos; um furúnculo pode matá-las, pois nunca chegarão ao antibiótico; a alimentação é péssima, quando existe; o calor é infernal e o frio, insuportável; não existe internet; ninguém sabe ler; a música está mais para Wesley Safadão do que para Bethoven; e viagens internacionais para dar palestras a brasileiros, nem pensar.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Os vinhos paulistas e o engenheiro Francisco Dias Cardoso (1889)









Neste anúncio, aparecem juntos os nomes Emílio Augusto Goeldi (figura destacada na história do Pará) e Francisco Dias Cardoso Filho, meu bisavô. Se o projeto de uma obra semelhante a O Trem para Branquinha, (que ora escrevo), mas tendo como eixo os ancestrais de Maria de Lourdes de Azevedo Barbosa e como palcos principais as províncias/ estados de São Paulo e do Pará, vier a ser realizado, como pretendo, Emílio Goeldi aparecerá mais de uma vez no texto. Será um dos muitos elos entre as histórias "contadas familiarmente" de Pernambuco / Alagoas / Paraíba / Rio de Janeiro, de um lado, e do Pará / São Paulo, de outro, a merecer destaque nos dois livros. (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 6/8/1890, pág. 5)
Gustavo Maia Gomes

Logo após se formar em engenharia pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, meu bisavô, Francisco Dias Cardoso Filho (1865-1917) aceitou um emprego em São Paulo. Seria ajudante do enólogo austríaco Josef Watzl, contratado pelo Ministério de Agricultura para desenvolver a produção de vinhos naquela província. Talvez Francisco tenha sido lembrado por saber alguma coisa de alemão, como posso deduzir de sua passagem com “distinção” nessa matéria pelo Colégio Pedro II. E, mais ainda, do fato de que ele logo passaria a traduzir para o português os trabalhos escritos pelo “especialista austríaco”.
Vinhos em São Paulo? Sim, eles existiam e a ideia do governo imperial era estimular a produção. (Mais estranho foi o suíço Leonardo Kuhn, na mesma época, fazer vinhos no Recife e com eles ganhar prêmios em Paris. “É mentira, Terta?”) Outro fator a influenciar o convite foi que a missão de Watzl consistia em montar – inclusive, no sentido físico, ou seja, erigindo as respectivas instalações – uma Escola Científica de Vinicultura. E, se nada entendia de vinhos, o jovem engenheiro Francisco Dias Cardoso Filho tinha, com certeza, aprendido a construir prédios.
Matéria publicada no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro (7/1/1889, pág. 1) explica como se pretendia incentivar a produção de vinhos em São Paulo: “Contratou o Ministério da Agricultura, por cinco anos, os serviços do Sr. Josef Watzl, especialista que teve a seus cuidados e sob sua direção valiosas propriedades vitícolas da Áustria e da Hungria”. O jornal apoiava “os esforços com que [o governo] procura coadjuvar a expansão da indústria que desponta com grande energia, havendo alcançado, em pouco tempo, sobretudo, na província de São Paulo, resultados apreciáveis”. Para o necessário aperfeiçoamento dos métodos de vinificação, “muito [contribuiria] a idoneidade do Sr. Joseph Watzl”.
O austríaco foi incumbido de criar, na província de São Paulo, “uma escola científica de viticultura”. Para tanto, deveria “organizar o projeto com todas as individuações convenientes, escolhendo terrenos apropriados, levantando plantas do edifício principal e suas dependências, e orçando todas as obras e aquisições necessárias de instrumentos e aparelhos, de maneira que até o fim de julho se ache o governo na posse de todos os dados e informações referentes a este objeto, para que possam ser autorizadas as construções e encomendas que forem precisas”. (Jornal do Commercio, RJ, edição citada.)
Simultaneamente à implantação da escola, Watzl recebeu ordens de “estudar mui atentamente o estado da indústria vitícola na província, quer na parte relativa à cultura da videira, quer quanto à fabricação e tratamento do vinho”. Em comunicações que faria ao governo, ele deveria expor “o resultado das suas observações e exames, indicando os melhoramentos que, a seu juízo, [devessem] ser adotados pelos viticultores, e tudo o que julgar conveniente ao progresso daquela nascente indústria”. Deveria, também, “ministrar aos particulares que lhes solicitarem indicações práticas acerca das questões da viticultura e vinificação, procurando conciliar, quanto possível, este encargo com o pronto andamento de outros trabalhos a seu cargo que deverão ser executados com toda a atividade”. Para coadjuvá-lo no desempenho da comissão, foi indicado “como auxiliar o engenheiro Francisco Dias Cardoso, o qual se empregará nos trabalhos que lhe houver de cometer e em tudo observará as suas prescrições”.[1]
SE NÃO A ESCOLA, PELO MENOS, O ESTUDO
A montagem da escola de vinhos, contudo, parece ter enfrentado dificuldades. Embora ela tivesse um “diretor” (o próprio Watzl) e um “ajudante” (Francisco) citados aqui e ali, não encontrei nenhuma prova real de sua existência. De concreto, pude detectar, apenas, a criação de uma “seção de Viticultura Experimental no Instituto Agronômico de Campinas, para o qual foram contratados o ajudante (...), o assistente químico (...) e o assistente de viticultura Josef Watzl”. Parece, exatamente, o que se tinha tentado evitar: a absorção da escola de vinhos pelo mais antigo Instituto Agronômico. (Declaração do ministro da Agricultura, o paulista Antônio Prado, em 7/1/1889: “Na forma estatuída pela lei n. 3.397 de 24 de novembro de 1888, terá o governo que fundar e custear na província de São Paulo uma escola científica de viticultura, a qual, pela sua especificidade, constituirá estabelecimento inteiramente distinto da Estação Agronômica de Campinas.”)[2]
De qualquer modo, se não a escola, pelo menos, o estudo foi feito: “Escrito em língua alemã e vertido à portuguesa pelo engenheiro Francisco Dias Cardoso Filho, ajudante do Sr. Josef Watzl, está sendo publicado o interessante guia pela Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, devendo ulteriormente ser tirado em folheto”. (Jornal do Commercio, RJ, edição citada.) O trabalho “Direções e Conselhos para o Viticultor na província de São Paulo”, escrito por Josef Watzl, “Diretor da Estação Enológica de São Paulo”, e traduzido do alemão por Francisco Dias Cardoso Filho, “ajudante da mesma Estação”, apareceu em 1890.
Infelizmente, parece haver alguma coisa errada com São Paulo, quando se fala em vinhos. Nem no século XIX, nem até hoje, se conseguiram grandes progressos, ali, no que tange a essa atividade econômica. A produção oscila, sem tendência de crescimento. Da qualidade, então (Ah, os vinhos de São Roque!), nem se fala: “Para o período 1880-1930, são permanentes as críticas ao vinho nacional e, principalmente, ao vinho produzido no estado de São Paulo. (...) Os vinhos paulistas tinham um grande descrédito, pois apresentavam alto grau de acidez, conservavam sua qualidade por pouco tempo, e tinham sabor, perfume e cor pouco atraentes e até desagradáveis”.[3]
Os paulistas, entretanto, nunca desistem. Tão recentemente como em 2007, perguntavam, pela imprensa: “São Paulo dá vinho?”. E iam em frente, com eterno otimismo: “A resposta é sim – e mais, vinhos de qualidade”. Quase 110 anos depois de Josef Watzl e seu ajudante Francisco Dias Cardoso Filho, terem dado com os burros n’água, esse era o plano da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e do governo estadual “para colocar o maior consumidor de vinhos também como o maior produtor do País”. Não se tratava, apenas, de alcançar os padrões nacionais já estabelecidos: “Não queremos fazer vinhos como os do Rio Grande do Sul ou do Vale do Rio São Francisco. E isso é ótimo”.[4]
Sem ter tido tempo de conhecer esse plano formidável da Fiesp, lá no final do século XIX, Francisco Dias Cardoso deve ter perdido a paciência. Pediu para sair do emprego de construtor de uma escola de vinhos em São Paulo. Em 12 de abril de 1890, um jornal do Rio de Janeiro noticiava que seu pedido de exoneração “do lugar de ajudante da estação enológica de São Paulo” havia sido aceito.[5]
Sua próxima ocupação seria construir uma usina de açúcar em Santa Rita, Paraíba. Ali, Francisco encontraria sua mulher Josefina Cristina Amélia Quanz (1872-1922). Filha de alemães, Josefina deve ter compreendido facilmente a declaração de amor feita naquela língua esquisita pelo engenheiro do Rio de Janeiro que tinha ajudado um austríaco a fazer vinhos em São Paulo.




[1] Jornal do Commercio (RJ), 7/1/1889, pág. 1.
[2] Sobre a pretendida escola de vinhos ter-se transformado em uma “seção” do Instituto Agronômico de Campinas, ver Imperial Estação Agronômica de Campinas (Histórico), em http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/estagrcamp.htm (Acesso em 14/9/2016.) A declaração do ministro da Agricultura, citação entre parênteses, está em Jornal do Commercio (RJ), 7/1/1889, pág. 1.
[3] Lia Alejandra Borcosque Romer, A vitivinicultura no estado de São Paulo (1880-1950). Dissertação de Mestrado. Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (SP). Em file:///C:/Users/dhtufpe/Downloads/BorcosqueRomeroLiaAlejandra.pdf (Acesso em 11/9/2016)
[4] Larissa Morais. “São Paulo dá vinho?”, Dinheiro Rural, edição 35, setembro de 2007. Disponível em http://dinheirorural.com.br/secao/agroeconomia/sao-paulo-da-vinho, acesso em 15/9/2016.
[5] Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro), 12/4/1890, pág. 1

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Francisco ou Francisco?

Gustavo Maia Gomes
Josefina Cristina Amélia Quanz (c.1871-1922) e 
Francisco Dias Cardoso Filho (c.1865-1917) no dia 
de seu casamento, em Santa Rita, PB, 
provavelmente, em 1893.
Francisco Dias Cardoso Filho (1865-1917) nasceu
em Guaratiba, subúrbio do no Rio de Janeiro , formou-se
engenheiro civil pela Politécnica do Rio (1888),
morou em Santa Rita (PB) e faleceu no Recife
Um dos perigos enfrentados por quem garimpa velhos jornais, tentando recuperar histórias de pessoas há muito tempo falecidas, é ser confundido por homônimos. Conto um caso real, em que as coincidências de nomes, locais e época se multiplicaram notavelmente, quase me fazendo acreditar em aparências plausíveis, mas falsas. 
Quando comecei a resgatar as notícias antigas sobre um dos meus bisavôs, dele eu sabia, quase unicamente, que: 
(1) seu nome era Francisco Dias Cardoso; 
(2) havia nascido em meados do século XIX, provavelmente, em Guaratiba, Rio de Janeiro; 
(3) estudara no Colégio Pedro II, do Rio; 
(4) era de família muito pobre; 
(5) formara-se em engenharia; e 
(6) já adulto, viera morar em Santa Rita, Paraíba. 
De posse dessas informações iniciais, acionei os mecanismos de busca da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Surpreendeu-me encontrar muitas aparições do nome Francisco Dias Cardoso, a mais antiga datando de 1825. Pela cronologia, não seria meu bisavô, mas poderia ser o pai dele. Mas esse homem tinha uma frota de barcos que operava, sobretudo, no porto de Mangaratiba (RJ). Foi, portanto, um homem rico! Na rápida exposição que ora faço, esse primeiro Francisco Dias Cardoso será identificado como M1 (M de Mangaratiba; 1 de pai). Logo ficará claro o porquê desta codificação.
Anos à frente, nos 1870, aparecem informações sobre outro, ou outros (descobri, depois, que eram dois) Francisco Dias Cardoso, a cujos nomes, em alguns casos, se acrescentava o sufixo “Filho”, ou “Junior”. Vou chamar o primeiro desses dois homens M2 (Mangaratiba Dois, ou seja, o filho do M1). O segundo será G2. Guaratiba Dois, sim, porque também descobri existir um G1 (Guaratiba Um). Este foi meu trisavô, mas só tive certeza disso bem depois. 
Portanto, o Francisco Dias Cardoso que eu, inicialmente, procurava, era o que, agora, identifico como G2. Vejam, então, o tamanho do problema: ao invés de um, havia quatro Francisco Dias Cardoso, todos vivendo na mesma época e no mesmo Rio de Janeiro (Província, depois Estado; e cidade) e em lugares com nomes muito parecidos: “Mangaratiba” (município do hoje Estado do Rio de Janeiro) e “Guaratiba”, subúrbio afastado da cidade do Rio de Janeiro, mais distante do que o Recreio dos Bandeirantes. Como separar os Francisco que, para minha investigação presente, eram “falsos”, dos que eram “verdadeiros”? Especialmente, como eu poderia distinguir os Dias Cardoso que não eram meus ancestrais daqueles que eram?
A resposta veio por etapas. M1 era rico, mas isso poderia significar que minha noção inicial (alimentada pela tradição familiar) de que os pais de G2 eram pobres estava errada. (Quem sabe não se tratava de uma versão difundida, à época, para garantir que o menino estudasse de graça no Colégio Pedro II? Ele, de fato, teve este privilégio.) Além do mais, eu sabia que G2 era de “Guaratiba”, mas esta palavra é tão parecida com “Mangaratiba” que bem poderiam os dois nomes se terem confundido nas lembranças antigas e não escritas dos meus parentes.
Dois fatores pesaram decisivamente para que eu conseguisse identificar quem era quem, dentre os quatro Francisco Dias Cardoso: 
(i) um dos dois Francisco mais novos (juventude que pude deduzir pela natureza de suas atividades respectivas, em anos próximos) foi apresentado, uma vez, como “bacharel”. Este era um termo, normalmente, reservado aos formados em Direito. Não podia ser G2 (que viria a ser engenheiro); mas, podia ser M2. 
(ii) O segundo fator é que, enquanto um dos dois Francisco mais novos (ambos habitando, então, a cidade do Rio de Janeiro) estudava engenharia na Escola Politécnica, tendo as notas publicadas nos jornais (devia ser G2, portanto), o outro, o bacharel, somente aparecia no noticiário quando se relacionavam as pessoas presentes às sessões periódicas de beija-mão do Imperador. Este segundo Francisco, por exclusão, devia ser M2. Ou seja, enquanto o Francisco (G2) filho do Francisco pobre (G1) estudava engenharia e tirava notas altas; o Francisco (M2) filho do Francisco rico (M1) aparecia nos jornais como um dos mais assíduos puxassacos da Corte.
Finalmente, em umas poucas ocasiões, o pai do “verdadeiro” Francisco Dias Cardoso (ou seja, G1) teve seu nome estampado nos jornais. Por exemplo, em convites para missas fúnebres ou quando ele fez publicar um anúncio dirigido ao Ministro do Império, agradecendo por este se dispor a custear os estudos de seu filho G2 no Colégio Pedro II. Foi só depois de ler essas notícias (e as que se referiam ao Francisco pai rico, M1) que me veio a convicção completa de que quatro Francisco Dias Cardoso viveram no mesmo Rio de Janeiro, cidade e Província-Estado, quase no mesmo tempo. 
Só não consegui ter certeza de que M2, o Francisco Cardoso Filho que beijava a mão do imperador com regularidade exasperante, era, mesmo, filho de M1, o Francisco Dias Cardoso dono de barcos em Mangaratiba – este, uma figura muito querida e popular na sua cidade. Mas como o ponto era irrelevante para meus objetivos de pesquisa, deixei-o de lado.