Gustavo Maia Gomes
Em 1935, um grande sucesso da música popular brasileira foi “Chão de
estrelas”, de Orestes Barbosa. Tinha versos como: A porta do barraco era sem trinco / Mas a lua furando nosso zinco / Salpicava
de estrelas nosso chão / E tu pisavas nos astros, distraída... Doze anos
depois, o Brasil cantou “Asa Branca” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira): Que braseiro, que fornaia / Nem um pé de
prantação / Por farta d'água perdi meu gado / Morreu de sede meu alazão... Em
1974, apareceu nas paradas “As rosas não falam”, de Cartola: Queixo-me às rosas / Mas que bobagem / As
rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti...
Tudo isso é passado. Em 2010, o grande sucesso nacional chama-se
“Rebolation”. Com quase nada a mais, a letra é a seguinte: Mão na cabeça que vai começar / O rebolation, o rebolation, o
rebolation, tion, rebolation / O rebolation, tion, o rebolation, o rebolation,
tion, rebolation / Rebolation é bom, bom, rebolation é bom, bom, bom / Rebolation
é bom, bom. Se você fizer fica melhor. Contrariamente ao caso das canções
antes citadas, esta tem um texto que qualquer débil mental pode entender. Mas
ela também incorpora ritmo vibrante e é executada com coreografia de forte
apelo sensual (para alguns).
LETRA E MELODIA
Das três canções antecessoras do “Rebolation”, enfatizei as letras, que
tentam transmitir suas mensagens pelo recurso ao sentimento, à emoção, à vivência
da beleza. As melodias respectivas são agradáveis ao ouvido, claro, mas, no
máximo, têm a mesma importância das letras. Nunca, mais. Já o aspecto visual
era quase inexistente; o ritmo, tampouco, merecia destaque.
Isso se explica.
Por um lado, não havia televisão ou, quando passou a haver, o acesso a
aparelhos de TV era limitado a uma pequena camada da população. Além disso,
muito pouca gente podia ver, em ocasiões esparsas, uma apresentação ao vivo de
Sílvio Caldas (que gravou “Chão de estrelas”), Luiz Gonzaga, ou Cartola. Por
outro lado, a qualidade do som radiofônico ou gravado (especialmente, para tons
mais graves) era ruim, o que tirava o impacto da percussão e, em última
análise, do ritmo.
De fato, até as décadas de 1960 e 1970, o grande veículo de difusão
era o rádio -– que, mesmo assim, estava longe de ser acessível à maioria; o
disco (e, mais ainda, os fonógrafos) era, igualmente, caro e podia ser
adquirido apenas por poucos. Em poucas palavras: na época do
rádio, a música teve de se limitar a uma mistura de letra e melodia, sem visual
e sem grande apelo rítmico. Os consumidores eram poucos e, dada sua raridade, relativamente,
ricos. Em termos comparativos, eram, também, educados -– instruídos, quero
dizer. A música que então se produzia e comercializava era coerente com essa
realidade.
IMAGEM E RITMO
Hoje em dia, muita coisa mudou. Praticamente, cem por cento da
população brasileira têm acesso à televisão; um DVD pode ser adquirido em
versões piratas por quase nada. A qualidade da reprodução do som também
aumentou muito, enquanto os respectivos preços baixaram enormemente. Assim, duas
novas dimensões foram acrescentadas à música popular: a visual e a (fortemente)
rítmica. Ao mesmo tempo, contudo, o estofo emocional, intelectual e estético da
maioria das pessoas (seu nível de educação, sua sensibilidade, seu interesse em
temas socialmente relevantes) não parece ter mudado quase nada. Só que, antes,
essa gente não comprava música; quem o fazia era capaz de entender Orestes
Barbosa, Luiz Gonzaga ou Cartola. Hoje, ela -– a grande maioria do povo -– compra,
em larga escala.
Portanto, a música comercial, agora mais barata, tornou-se acessível
à massa. E o quê uma população funcionalmente analfabeta mostrou querer
consumir? Muito menos poesia do que imagens; muito menos melodia do que ritmos
alucinógenos; muito menos amores românticos do que sensualidade aberta. E, assim,
atingimos o “Rebolation”. Sua lição mais profunda talvez seja essa: para tirar
proveito da redução dos custos de gravar, reproduzir e difundir som e imagem, a
oferta de música amoldou-se ao tipo de preferências que (respeitadas pequenas
variações) sempre existiram, mas que só agora puderam tornar-se demanda efetiva,
ou seja, respaldada em poder de compra.
Em síntese: consumir música tornou-se barato, mas a qualidade dos
consumidores jamais melhorou significativamente. De modo que, quando a música chegou
ao povo, ela também atingiu seu estágio mais avançado de degradação. Por
critérios estéticos, pelo menos. Economicamente, ao contrário, a produção de
porcarias vai muito bem.
(Publicado na revista Nordeste Econômico, Ano 4, n. 19, abril de 2010)