quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

GOL DE PIPICO

Gustavo Maia Gomes
No café, comeu ovos com bacon
Depois, caminhou até o rio
Ali, empunhou a vara de pescar
A linha era curta, um passante advertiu:
– O anzol está fora d’água
Ele respondeu: – Tanto faz, não há peixes aqui
Quando teve fome, almoçou
Bacon com ovos
Concluiu que a ordem dos fatores não altera o sabor
Andou pela cidade
Viu black fridays na terça-feira
Deliveries que não fazem entregas
Longas filas paradas em restaurantes fast food
Passou por call centers, home centers, shopping centers
Coworks, networks, homeworks
Home pages, hardwares, softwares
Cream crackers, mussarelas, messalinas
Ouviu no rádio novelas mexicanas
Chororô, chororô, chororô...
Não, não há mais novelas mexicanas
Voltando para casa, caiu-lhe do bolso uma moeda
Fez tlim tlim antes de rolar calçada abaixo
Procurou-a na sala, onde havia claridade
Ao deitar, leu Foucault, Bourdieu, Althusser
Gramsci, Nietzche, Kant, Weber, Paulo Coelho
Não entendeu patavina
Nem sabe se a luz da cabeceira estava acesa
Sonhou com futebol
Sport, 8; Santa Cruz, 1
Para o Santa, marcou Pipico
Em impedimento
Às seis horas, despertaram-no bombeiros nervosos
Tinham durante a noite combatido incêndios. Debalde
Era manhã novamente
Os ovos com bacon estavam servidos
(Pipico existe e joga pelo Santa Cruz do Recife. As histórias da linha curta e da moeda perdida, antigas, não são minhas.)

(Publicado no Facebook em 5/2/2020)

“OS SANTOS MURMÚRIOS MISTERIOSOS DAS MADRUGADAS TRANSLÚCIDAS...”

Gustavo Maia Gomes
Carlos Gomes chegou a Belém para morrer. Sua agonia de quatro meses foi acompanhada pela imprensa local. “É compungidos pela mais profunda dor que noticiamos terem-se agravado muito, ontem, ao cair da noite, os sofrimentos do glorioso maestro” (Folha do Norte, 21/5/1896). Daquela, ainda bem, ele escapou.
Os jornalistas tinham êxtases: “Pobre Carlos Gomes! Ilustre e resignado mártir! Procura ouvir ainda nas amplitudes de teu ideal a incomparável ballata, onde deixaste toda a essência do teu carinhoso sentir e toda a seiva afetiva do teu gênio” (17/8).
No mesmo dia, o jornal informou: “Começaram a correr boatos de se terem subitamente agravado os sofrimentos deste grande inditoso, que é presa de uma agonia inexorável – o velho e glorioso maestro Carlos Gomes. Dentro em pouco, os boatos eram substituídos por outro tristíssimo: dizia que o maestro já havia exalado o último alento. Enfim, que para aquela organização física, soara o momento das dores últimas, dos sofrimentos derradeiros” (17/9).
Ou seja, a organização física tinha morrido. “Tranquila foi a hora final de Carlos Gomes. O grande espírito desprendeu-se, calma, placidamente, sem o cortejo de sofreres que geralmente era previsto. Expirou, com os grandes olhos abertos, como que fixos numa visão imponderável – quem sabe? – a [visão] das glórias pretéritas que ainda vinha, cheia de flores e luzes, atenuar-lhe, com todo o peregrino passado que evocava, a tremenda hora do aniquilamento fisiológico” (17/9).
Continuava a matéria: “Logo de manhã foi o cadáver fotografado pelo sr. Oliveira, com a roupa com que falecera, tirando o artista Domenico de Angelim um croquis. Hoje será novamente, depois de embalsamado e vestido, fotografado por aquele artista o nosso querido morto” (17/9).
Dois dias depois, “todas as classes movimentam-se para dar público testemunho dos seus pesares na grande procissão cívica em que, amanhã, será levado o corpo do excelso épico para a necrópole da Soledade, onde ainda, até a hora em que o embarquem para São Paulo, ouvirá ele, através da transparência de nossas tardes sugestivas e de nossas profundas noites inspiradoras, o canto suavíssimo das auras e esses santos murmúrios misteriosos das madrugadas translúcidas da terra hospitaleira e carinhosa onde a desdita assentou-lhe o Calvário tremendo” (19/9).
E, finalmente: “Ainda terão de brilhar por algum tempo sobre aquelas estremecidas relíquias os clarões benfazejos de nosso formosos luares a despejarem-se em catadupas da azulea imensidade em cujo seio vezes muitas perdeu-se o olhar de Carlos Gomes” (19/9).
O cortejo fúnebre arrastou multidões para as ruas de Belém. E deve ter feito a glória literária de muitos poetas e oradores daquelas terras.

(Publicado no Facebook, 3/2/2020)

DILMA DOIS

Gustavo Maia Gomes
Notícia de última hora: “Coronavírus: Governo vai resgatar brasileiros na China”.
Agora, esperemos:
(1) que o resgate prometido seja mesmo feito;
(2) que — após isso acontecer — quem já havia notado o “descaso do governo com os cidadãos expatriados” venha a público se desculpar pela precipitação.
Dentre os que deveriam pedir desculpas incluo o próprio presidente, cujas declarações iniciais sobre o assunto foram mais descabidas e idiotas do que as emitidas pelos seus piores críticos.
Acho que ninguém vai pedir desculpas por coisa nenhuma.

(Publicado no Facebook em 2/2/2020)

MORTE NO NORTE

Gustavo Maia Gomes
O compositor Antônio Carlos Gomes (1836-96) fez a maior parte da carreira na Itália. Sua obra mais conhecida, “O Guarani”, estreou em 1870 no Teatro Scala de Milão. Foi um sucesso de público e de crítica.
Mas, se as composições de Carlos Gomes ainda hoje são lembradas, o dinheiro que ele ganhou desapareceu rapidamente. No final da vida estava pobre. Com o prestígio artístico em declínio na Europa, decidiu vir para Belém.
Por que Belém? É que suas óperas, encenadas no Teatro da Paz, tinham despertado entusiasmo. Então, em 1895, o governador Lauro Sodré o convidou a vir morar na cidade.
Em pleno auge da borracha, o Pará era um dos estados mais ricos do Brasil. Seu governo podia pagar bem ao maestro. Mas, Carlos Gomes tinha os dias contados e ninguém desconfiava disso. Ele aceitou o convite.
A viagem, num primeiro momento, pareceu que jamais se realizaria: “Não vem mais ao Pará o glorioso autor da Fosca. Uma afecção da língua impediu-o de embarcar em Lisboa, onde deve operar-se” (Folha do Norte, 21/4/1896).
Descobriu-se o pior. “Dizem de Lisboa que os médicos diagnosticaram a existência de uma epitelioma na língua do insigne maestro. Esperam, no entanto, que ele partirá para o Pará logo que faça a operação e sinta melhoras” (23/4).
Que melhoras? O exame seguinte revelou que ele contraíra "um câncer dos fumantes” (28/4). “Os médicos acham inconveniente a partida do maestro, antes de efetuada a cura” (26/4). Ele, entretanto, insistia em vir.
Por desespero e carência de recursos, talvez. Pois as circunstâncias continuavam ruins. “De Lisboa noticiam que Carlos Gomes [foi] sujeito a novo exame. O diagnóstico de um cancro na língua prevê agravação de sofrimentos. Não obstante, o maestro persiste na deliberação que tomou de partir amanhã para o Pará. Se o fizer, fá-lo-á sem a responsabilidade dos médicos assistentes” (4/5).
E ele veio: “O governador do Estado recebeu telegrama do cônsul brasileiro em Lisboa comunicando ter ali embarcado no [navio] Obidense o maestro Carlos Gomes" (5/5). Não que estivesse bem: “Passou por Funchal anteontem, ainda gravemente enfermo...” (FN, 8/5/1896).
Mais uma semana, estava em Belém: “Veio ontem no Obidense o eminente compositor brasileiro maestro Carlos Gomes. (...) Instalado na sua nova residência, o glorioso artista recebeu a visita do sr. Lauro Sodré [governador do Estado]” (15/5).
Quatro meses depois, estava morto.
(Publicado no Facebook, 1/2/2020)