domingo, 12 de julho de 2015

150 anos à frente de seu tempo

Gustavo Maia Gomes

(José Vieira) Couto de Magalhães (1837-98) foi um político, militar, escritor e folclorista do Segundo Império. Nasceu em Diamantina (MG). Formou-se em Direito (São Paulo, 1859). É nome de município em Tocantins e de ruas no Recife e em Caruaru (PE). Certamente, em outras cidades, também.
Como político, foi presidente, em diferentes anos, das províncias de Goiás, Pará, Mato Grosso e São Paulo, num tempo em que o cargo era preenchido por nomeação imperial. Como militar, teve atuação destacada na Guerra do Paraguai (1864-70). Como folclorista, escreveu livros pioneiros, a exemplo de "Os Selvagens" (1876) e "Ensaios de Antropologia" (1894).
Já o tinha descoberto. Mas, em minhas pesquisas para um trabalho sobre a história dos sertões brasileiros, reencontrei-o, agora. Há 150 anos, Couto de Magalhães escreveu o seguinte, na parte do seu “Relatório dos Negócios da Província do Pará” (1864) que trata da instrução pública:
“Se eu tivesse de criar uma província nova, onde não existisse nada, faria com que se estudasse – em vez de literatura, inglês, francês [e] alemão –, tecnologia, agricultura, mecânica [e] os diversos ramos da grande ciência da engenharia”.
Vale lembrar que vivíamos no Brasil do século 19, ainda mais do que hoje, o império dos bacharéis em Direito, um país no qual citar Virgílio em latim era muito mais valorizado do que apertar um parafuso, ou projetar uma ponte.
“Os homens dessa província,” prossegue, “não analisariam o estilo dos escritores; não veríamos tão belas palavras escritas e faladas, mas veríamos mais e melhores obras e, quando se necessitasse de assentar uma máquina a vapor, não se havia de buscar na Inglaterra um homem especial para isso”.
“Nossa mocidade”, finaliza Couto de Magalhães, “em vez de andar solicitando empregos pelas repartições públicas, onde estraga seu tempo e saúde, sem deixar futuro nenhum para sua família, acharia na indústria mil ocupações para sua atividade. Falar-se-ia menos, mas far-se-ia mais”.
Em 1864, parece que ele estava falando para o Brasil de 2015.

(Publicado no Facebook, 17/6/2015)

sábado, 11 de julho de 2015

As indústrias e profissões de Belém no século XIX

Gustavo Maia Gomes

Em 1872, quando o governo imperial fez o primeiro censo demográfico do país, Belém (62 mil habitantes) tinha duas vezes o tamanho de São Paulo (31 mil). Era a quarta maior cidade do Brasil, atrás apenas do Rio de Janeiro (275 mil), Salvador (129 mil) e Recife (117 mil). A capital paraense se beneficiava, sobretudo, da crescente produção regional de borracha, que já respondia por 80% das exportações provinciais.
Desde 1864, a cidade tinha iluminação a gás, um progresso sobre o sistema anterior de lampiões queimando petróleo. A liberação para navios estrangeiros do rio Amazonas (1867) impulsionara o movimento no porto de Belém. A prosperidade era evidenciada, também, nas obras do Teatro da Paz (inaugurado em 1878) e nos recém-enunciados projetos de canalizar água potável e calçar as principais ruas.
Mas, em que trabalhavam os habitantes da cidade? Um Relatório de 1871 dá uma preciosa resposta a essa pergunta. Ao recensear os contribuintes do “Imposto sobre indústrias e profissões desta cidade”, o presidente da Província Abel Graça nos informa que havia na capital, entre muitas outras, as seguintes atividades e respectivos profissionais:
- 18 advogados
- 31 alfaiates com estabelecimentos
- 51 donos de açougues
- Onze mercadores de carroças e carros de boi com pipa d’água
- 40 donos de casas de pasto

E mais:
- 51 donos de carroças de aluguel
- 15 proprietários de carros e seges para alugar
- 55 mercadores por grosso de tecidos ou fazendas
- 128 mercadores por miúdo de tecidos ou fazendas
- Oito mercadores por grosso de ferragens
- 40 padarias

Ainda mais:
- 14 médicos
- Nove mercadores de madeira
- Nove sapateiros com estabelecimento
- Dez torrefações de café
- 15 mascates ou bufarinheiros (!)

Também havia quem desempenhasse atividades menos comuns, algumas das quais, hoje, ou continuam a ser muito raras ou já nem existem.
- Um dono de cocheiras de cavalos a trato e de aluguel
- Um dono de casa de banhos
- Um mercador de fumo em rolo
- Um trapicheiro
- Três tanoeiros com estabelecimento

A indústria mais bem representada na Belém de 1871 era a de tavernas: havia 224 delas. Atendiam bem à demanda, presumo. Na verdade, quem viveu na cidade, àquela época, só não foi mais feliz porque ainda não existia o Papão da Curuzu, menos conhecido como Paysandu Sport Club, criado em 1913.
(Fonte dos dados sobre as indústrias e profissões: Relatório à Assembleia Legislativa Provincial apresentado em 1871 pelo Presidente da Província do Pará, Abel Graça, págs. 32 e ss).

Publicado no Facebook, 21/6/15

quarta-feira, 8 de julho de 2015

As comidas, bebidas, etc et al que os paraenses traziam da Europa (1897-1900)

O Rio Amazonas foi um dos navios da Ligure Brasiliana que fizeram viagens entre a Europa e Belém nos anos 1897 a 1903. (Imagem colhida no site Historia y Arqueología Marítima)

Gustavo Maia Gomes

No final do século 19, os governos estadual do Pará e municipal de Manaus decidiram subvencionar a vinda de navios a vapor da Europa para Belém e para a capital amazonense. A empresa que topou o negócio foi a Ligure Brasiliana, italiana de Gênova. Seus navios de passageiros também traziam e levavam cargas. O que compravam de Portugal, França e Espanha – até mesmo de Marrocos, na África – os paraenses? Comidas, bebidas, material de construção, máquinas... Alhos e bugalhos.

Em 1901, apareceu o “Resumo dos gêneros vindos pelos vapores da Ligure Brasiliana desde junho de 1897 a dezembro de 1900, contando-se trinta e quatro viagens durante este período de tempo”. Apenso à Mensagem do Presidente do Pará Augusto Montenegro ao Congresso do Estado (10/9/1901), é mais uma preciosa fonte de informações sobre os hábitos de consumo dos habitantes de Belém naqueles anos. Uma época, ainda, de prosperidade devida à borracha.

A empresa Ligure Brasiliana foi fundada em 1897 com o objetivo explícito de operar linhas de navios para a Amazônia e outras regiões brasileiras. Também navegava no Rio da Prata. Seus navios (um deles denominado Rio Amazonas) gastavam 17 dias no percurso de Gênova a Belém e mais oito para alcançar Manaus. No Norte (mas não no restante do Brasil), ela teve a história encerrada em 1903. O Rio Amazonas, porém, continuou a navegar até 1917, quando foi afundado pelos alemães. Era tempo de guerra.

No “Resumo dos gêneros...” estão os nomes e quantidades desembarcadas dos gêneros trazidos, especialmente, de Gênova, Lisboa, Porto, São Miguel (Açores, Portugal), Ilha da Madeira (Portugal), Marselha (França), Barcelona (Espanha) e Tanger (Marrocos). Não eram, apenas, alimentos e bebidas, embora estes predominem. Também aparecem artigos de vestuário, objetos de uso pessoal (jornais, livros, cachimbos), utensílios domésticos (fogões, móveis, rolhas, palitos), entre outros.

Alimentos

Os belenenses importavam alho, amêndoas, arroz, azeite, azeitonas, banha, batatas, biscoitos, carne, castanhas, cebolas, chocolate, chouriços, conservas, doces, farinha de trigo, farinha láctea, feijão, frutas, grão de bico, legumes, leite, maçãs, manteiga, massa de tomate, mortadela, nozes, óleo, peixe de moura, peixe salgado, peras, pimenta, presunto, queijos, repolhos, sal, salame, sardinhas, tâmaras, uvas e vinagre. Isso, na categoria de alimentos, claro.

Pelo ângulo da diversificação de origens, destacam-se no “Resumo” a cebola e as batatas, embarcadas em sete diferentes portos europeus; o azeite e o feijão, em seis; as conservas, em quatro. Em quantidades, o mais popular é o feijão, com 26.098 caixas, mas também aparecem muito bem as batatas (5.132 caixas), a cebola (2.622), as conservas (5.054), o azeite (1.394) e a manteiga (1.319). O alho era trazido em canastras, espécie de cestas de couro. Foram 1.691 delas, nos anos 1897-1900.

Bebidas

No “Resumo”, aparecem as bebidas alcóolicas aguardente, bitter, champagne, chartreuse, cidra, conhaque, fernet, licores, rum, uísque, vermute e vinho. Conhaques e licores vinham de Gênova, Lisboa, Marselha, Barcelona e Tanger. Os vinhos procediam do Porto, Gênova, Lisboa, Marselha, São Miguel, Ilha da Madeira, Barcelona e Tanger. A aguardente tinha origem em Barcelona e em Tanger; o vermute consumido em Belém era embarcado em Gênova, Marselha e Barcelona.

De 1897 a 1900, os belenenses compraram 18.672 caixas de vermute. De conhaque, 567 caixas; de licores, 384. Os vinhos eram acondicionados em caixas (8.488) e em barris (12.765). Os chartreuses, vindos de Marselha, eram raros: dez caixas. Nem tão raros, as 510 caixas de fernets vinham de Gênova; as cinco de champagne embarcaram em Barcelona. Dentre as bebidas não-alcóolicas, há registro de 56 caixas de água mineral. Devia faltar água de beber em Belém, à época.

Bugalhos (nem tanto)

35 pianos e um órgão vieram de Gênova para Belém, trazidos pela Ligure Brasiliana naqueles anos finais do século 19. Mais um piano foi trazido de Lisboa. O Porto mandou quatro caixas de violões. Houve, também, oito caixas de instrumentos musicais diversos, que o “Resumo” não discrimina. 460 peças classificadas como “Materiais para a Estrada de Ferro de Bragança” embarcaram em Lisboa e chegaram a Belém. De Marselha, vieram 67 “máquinas hidráulicas”.

Material de construção era outro item das cargas: Lisboa enviava cantarias, cal, cimento, ladrilhos, mármore, obras de ferro, pedras, pregos e vidraças. Gênova, arames, cal, cimento, ferragens, ferro, gesso, mármores, telhas de zinco, tinta e zinco (em folhas, suponho). Marselha fornecia cimento, mármore, chumbo, telhas de zinco e tijolos. 60 mil tijolos e 150 mil telhas cruzaram o Atlântico; 2.200 “volumes” de mármore vieram para a capital paraense, embarcados em Gênova e Lisboa.

De Lisboa, chegaram 17 caixas de livros; de Marselha, 10. Os jornais portugueses, ou vindos de Lisboa, ocuparam 20 fardos. Há grande variedade de utensílios domésticos: louças, móveis, candeeiros, quadros, obras de madeira, rolhas, fotografias, retratos, obras impressas, fonógrafos, palitos, fogões e camas. E artigos de vestuário, como botões, calçados, camisas, chapéus, couros, espartilhos, fazendas, tecidos, palha para chapéus e um genérico “roupas” vindas de Lisboa, Gênova e Marselha.

Como “roupas”? As “prêt-à-porter”, roupas que a gente compra já prontas para usar, são bem posteriores a essa época. Será que as caixas de roupas estariam, na verdade, trazendo de volta os vestidos e ternos que os belenenses de maiores posses mandavam lavar na Europa – em Paris, sobretudo. Onde mais? –, como ainda hoje eles dizem que faziam?

Fontes

Mensagem do Presidente Augusto Montenegro ao Congresso do Estado do Pará, 10/9/1901 (Disponível em Center for Research Libraries, Brazilian Government Documents) http://www-apps.crl.edu/brazil


Site Historia y Arqueología Marítima

Ex-Libris

Gustavo Maia Gomes

Ex-libris são desenhos personalizados que se colocam nos livros para informar a quem eles pertencem ou pertenceram. A prática remonta ao século 16 e subsiste até hoje, embora com menor intensidade. Blogs tratam do assunto. Livros, idem. Exposições, igualmente. Há quem colecione ex-libris, assim como existem os que juntam selos postais. Pintores famosos produziram-nos, para si mesmos ou por encomenda.
Claro, só aprecia ex-libris quem ama os livros – e com eles convive. Nem todo mundo tem a felicidade de frequentar bibliotecas. Eu tenho. De certa forma, vivo em uma, ridiculamente pequena, mas funcional para meus propósitos e projetos. (Claro que a expansão da internet está tornando as bibliotecas pessoais obsoletas. Não lamento isso.) Nunca tive ex-libris. Talvez invente um. Antes tarde do que nunca.
Quando criança e até os vinte e poucos anos, desfrutei da biblioteca de meu tio Hermano Cardoso Pedrosa, na sua casa da rua Dr. Albino Magalhães, 61, Farol, Maceió. Não era na minha cidade, mas eu ia lá com frequência e, numa relação quase indecente com os livros, despendia horas infindas lendo filosofia, economia, matemática, sociologia, história – ou tratados sobre o jogo de xadrez, paixão antiga que também nasceu em Alagoas.
Mais tarde, na Universidade de São Paulo e, sobretudo, na de Illinois, bibliotecas se tornaram meus locais de trabalho. Nos Estados Unidos, escrevi a tese doutoral enfurnado na University Library, onde ganhei o direito de usar até um pequeno escritório só para mim. Com muitos livros deparei, então, inclusive, alguns que haviam pertencido a conhecidos intelectuais ou políticos brasileiros. Vários destes tinham ex-libris colados.
Os ex-libris que publico agora foram coletados na internet. Alguns são lindos; outros, diferentes; todos, significativos.

(Publicado no Facebook, em 5/7/15)

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Paraenses, nordestinos e os peixes de Belém (1888)




Gustavo Maia Gomes

Na segunda metade do século 19, a “carestia” de alimentos se abateu sobre Belém do Pará, infelicitando, sobretudo, os mais pobres. Um sinal de alerta soou entre os governantes. Depois da terrível Cabanagem (1835-40), quando a turba revoltada derrubou o presidente da província, tomou o poder por um ano e matou milhares de pessoas, muitas delas ricas, ninguém queria cultivar insatisfações semelhantes.

O que fazer? Os relatórios presidenciais à Assembleia Provincial monotonamente expõem o problema, tentam entender suas origens e elaboram repetidas, porém sempre malogradas, tentativas de solucioná-lo. No mercado do Ver-o-Peso, em Belém, carne e peixes, os alimentos básicos, eram sempre caros e escassos. Em 1888, o ano sobre que me interessa falar, o problema já vinha se arrastando há décadas.

De carne verde, Belém era abastecida pelo Marajó. (Também vinha alguma charque do Sul brasileiro.) Transportar as reses da ilha até o continente custava tempo e dinheiro e, uma vez em terra, o gado tinha de ser abatido imediatamente, magro como chegava. Faltavam à cidade as condições mínimas de receber os rebanhos e permitir que eles descansassem por uns dias, recuperando o desgaste da viagem. Por isso, a carne vendida era pouca, cara e ruim.

O peixe também tinha oferta escassa. Surpreende um tanto, mas desconfio que isso se devesse à mania de tabelar preços sem levar em conta que a demanda do produto crescia com o afluxo de gente à cidade. Sujeitando os pescadores a condições insatisfatórias de remuneração, o governo inibia a oferta do pescado o que, por sua vez, gerava irresistíveis pressões altistas de preços, a despeito das tentativas policiais de contê-los.

Em 1888, Francisco José Cardoso Júnior, primeiro vice-presidente da província, fez publicar a tabela de preços que deveria prevalecer na feira livre do Ver-o-Peso, em Belém. A medida nada resolveu, claro, (a culpa é sempre de algum Cardoso), mas, por meio dela, ficamos sabendo os peixes que os paraenses comiam no final do século 19, assim como sua classificação por “qualidade" e respectivos preços oficiais.

Na tabela abaixo, reproduzo as informações. Para mim, a maior surpresa foi saber que, em fins do século 19, o maravilhoso Filhote era considerado de “segunda qualidade”. Os preços são, provavelmente, em "réis por quilo", embora a Fala de Cardoso não o esclareça. (O sistema métrico já havia sido introduzido no Brasil desde 1872, mas isso não quer dizer que fosse sempre adotado. No Nordeste, ele foi, inicialmente, recebido com um grande buruçu: a Revolta do Quebra-Quilos.) 

Fonte: Relatório do Vice-Presidente da Província do Pará, 1888
Mas, afinal, quão caros eram os peixes em Belém? É difícil avaliar preços tão antigos, mas posso fazer uma tentativa. Em 1888, o Pará recebeu grande quantidade de cearenses fugidos da “Seca dos Três Oitos”. (Isso já tinha acontecido em 1877 -– a “Seca dos Dois Setes”.) Aos retirantes, era oferecido trabalho, aproximadamente, a 40 mil réis por mês, no prolongamento da Estrada de Ferro de Bragança. Um professor de ensino médio ganhava em torno de 200 mil réis, cinco vezes mais que o flagelado nordestino.

Ou seja: em 1888, com 1% do que recebia na frente de trabalho, o retirante da seca podia comprar um quilo do melhor peixe. A Pescada, por exemplo, custava 400 réis o quilo. Era caro? Talvez sim, talvez não. Considerando que um quilo de Pescada Amarela custa, hoje, R$ 37 na Casa do Marisco (Belém) e que o salário mínimo atual é de R$ 788, deduz-se que o trabalhador de baixa qualificação terá de gastar quase 5% de sua remuneração mensal para comprar um quilo de peixe de primeira qualidade na capital paraense, em 2015.

Felizmente, para seus apreciadores, nesses 127 anos transcorridos desde 1888, o Filhote ganhou status -- e preço. (R$ 42/kg, na mesma loja já referida acima; talvez, um pouco menos, no popular mercado do Ver-o-Peso. Mesmo assim, uma fortuna.) Um trabalhador de salário mínimo que resolvesse consumir diariamente um quilograma de Filhote -- mesmo se não gastasse em mais nada -- veria o seu salário terminar quando ainda faltassem dez dias para o próximo pagamento.