Gustavo Maia Gomes
Irritado com o que Proudhon havia
dito em Filosofia da Pobreza, Marx respondeu com um outro livro, Pobreza da Filosofia, em 1847. Por um tempo, a pobreza sumiu dos
discursos. Mas hoje ela voltou com toda força. Já existe até uma nova
"filosofia da pobreza" propugnada por respeitáveis instituições
internacionais, por todos os governos, e por pensadores de idéias curtas e
remorsos longos. Pena que seja uma pobreza de filosofia.
Seu ponto
de partida é a desconfiança com o crescimento econômico. Cristovam Buarque, por
exemplo, escreveu que o "crescimento não reduz [a] pobreza"
("Diálogo dos 500 Anos, Brasil Portugal", pág. 248); no próprio IPEA,
felizmente, uma instituição não monolítica, Ricardo Paes de Barros e
colaboradores, apesar de reconhecerem que "as quedas observadas na
magnitude da pobreza, em todos os anos posteriores a 1977, [resultaram],
primordialmente, do crescimento econômico" ("Desigualdade e Pobreza
no Brasil", pág. 45) consideram esse processo lento e defendem uma
estratégia direta de combate à pobreza.
Na versão
mais crua, a "estratégia direta" consiste em definir a renda mínima
para uma pessoa não ser pobre; identificar quem está abaixo dessa linha;
estimar quanto falta para essas pessoas alcançarem a fronteira da felicidade; e
implementar uma política que retire aquela renda faltante dos ricos e a doe aos
pobres. Ou seja, a solução do problema da pobreza (pelo menos em um país como o
Brasil, que não seria "pobre", mas, apenas, "injusto") vira
uma questão de aritmética.
Paes de Barros e sua equipe já calcularam,
inclusive, quanto seria necessário: R$ 34 bilhões por ano. É mais do que o
Fundo de Pobreza, porém nada que, apertando aqui, afrouxando ali, não caiba em
nossos orçamentos. Cristovam ("o sonho do desenvolvimento acabou") Buarque
deu uma tintura religiosa à tese: abandonar o crescimento e "suprir
diretamente" as necessidades dos pobres constitui um "imperativo
ético".
Mas o que
mostram os fatos? Que, ao contrário das versões mais radicais do novo credo, o
crescimento econômico, sim, reduz a pobreza. Há uma profusão de evidências
empíricas a esse respeito que não cabe aqui repetir. Vale a pena relatar,
entretanto, as conclusões de um estudo ainda inédito do IPEA sobre as variações
de renda média e da pobreza em todos os municípios brasileiros, no período
1970/1991 (o ano de 2000 será incorporado, quando os dados do último censo
estiverem disponíveis).
O trabalho
mostra que, entre 1970 e 1980, houve associações negativas entre crescimento e
variação da pobreza (ou seja, a renda cresceu, a pobreza caiu, ou vice-versa)
em 98,9% dos municípios e que essa relação inversa se manteve, de 1980 a 1991,
em 80,5% dos municípios.
Já sabíamos
que isso acontecia no Brasil como um todo e nas comparações entre países ou
entre Estados brasileiros. Mas o Brasil é um só, as amostras de países são
sempre pequenas, e os Estados brasileiros não passam de 26. No trabalho
referido, foram estudados 3.991 municípios, o que dá uma enorme robustez às
suas conclusões. Ou seja, definitivamente, o crescimento reduz a pobreza; a
falta de crescimento a aumenta.
Não é só. O
estudo também argumenta que, excetuado um pequeno número de casos, a renda per
capita de um município fielmente reflete a sua história de crescimento. Em
outras palavras: a renda de São Paulo é alta porque, durante a sua história, o
município de São Paulo registrou um elevado crescimento econômico. Na outra
mão, rendas per capita baixas são resultados de estagnação secular, ou de
crescimento insuficiente.
A partir
dessa constatação, tornou-se possível testar as relações entre crescimento e
pobreza, estimando-se, em cada ano, algumas estatísticas simples. Em
particular, para todos os anos pesquisados, o coeficiente de correlação entre
renda per capita e percentagem de pobres na população municipal foi sempre
negativo e superior, em valor absoluto, a 90%. Ou seja, mais uma vez: há poucos
pobres onde houve crescimento; e muitos, onde a economia ficou parada. Talvez
não precisemos, afinal de contas, enterrar o "sonho do
desenvolvimento".
Tudo bem.
Mas, e a ética? A espécie em extinção dos que confiam no crescimento acredita
que os pobres podem se tornar produtivos e, assim, deixar de ser pobres.
Olhando a questão regionalmente, é como se se dissesse: vamos corrigir algumas
desvantagens históricas ou geográficas do Nordeste. Feito isso, os nordestinos
se habilitarão a produzir mais, superando sua miséria, pelo seu próprio
esforço, como resultado de seu trabalho. Existe um fundo ético aí, ou não?
Na
estratégia direta, não há nada disso. Como "o crescimento não reduz a
pobreza", os pobres jamais poderão construir a própria prosperidade. Sua
única esperança é desfrutar da riqueza dos outros, uma parte da qual, em nome
da ética, lhe será dada como esmola. Dito de outra forma, os pobres são
irremediavelmente incapazes.
Portanto, é
nosso dever sustentá-los com rendas mínimas, frentes de trabalho, programas do
leite, caldinho das titias e mais que tais. Não temos de nos preocupar com
políticas de desenvolvimento, regional ou nacional. Tudo o que precisamos
fazer, por exemplo, no caso do Nordeste, é calcular quantas cestas básicas são
necessárias para cobrir o que falta para cada cearense, pernambucano etc.,
deixar de ser pobre e, em seguida, mandar o caminhão. Assim, e de nenhuma outra
forma, o problema da pobreza estará resolvido e a nossa consciência de culpa,
acalmada.
Eis aí o
evangelho dos novos tempos. Como economia, é um erro; como ética, uma
aberração; como filosofia, uma pobreza. Talvez, por isso mesmo, esteja virando
unanimidade.
NOTA (3/4/2015)
Artigo originalmente publicado em Valor Econômico, 28/5/2001. À época, o autor era Diretor do Ipea -- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, então vinculado ao Ministério do Planejamento. Resolvi colocá-lo no blog, 14 anos depois, porque o tema da "redução da pobreza" via transferências de renda está, cada dia, mais em evidência. E, finalmente, mais gente está percebendo, hoje, a falácia essencial da tese de que se pode acabar permanentemente com a pobreza por meio de programas como o Bolsa Família.