Gustavo Maia
Gomes
Os fatos e personagens na história do mundo ocorrem
duas vezes: a primeira, como tragédia; a segunda, como farsa.
(Karl
Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte)
Não serei o primeiro a
dizer, mas, assim mesmo, digo: o acordo selado ontem (18/06/2012) entre o
ex-presidente Lula e o notório Paulo Maluf, em favor do candidato do PT a
prefeito de São Paulo, tem tudo para entrar na história. Isso porque, num
sentido importante, ele fecha um círculo. De agora em diante, são aliadas do
Partido dos Trabalhadores todas as forças políticas conservadoras,
reacionárias, oligárquicas que possuem alguma expressão nacional ou regional
neste país.
Essas forças estão agregadas, principalmente, no PMDB, e representadas, em
se tratando de pessoas, por líderes como José Sarney, Renan Calheiros, Fernando
Collor e pelo próprio Maluf, que também compartilham, além do conservadorismo,
mais duas características: (a) têm as imagens manchadas por recorrentes
acusações de corrupção; e (b) em algum momento, cada uma delas foi, mais do que
adversária, feroz inimiga de Lula e do PT.
Acordos de conveniência
entre inimigos políticos não são novidade na história. O problema é que, com
raras exceções, eles começam bem, mas terminam mal. Apreciem os três exemplos a
seguir.
1. Napoleão e o papa Pio VII
Napoleão era primeiro cônsul
da República francesa quando decidiu pacificar as relações entre o estado e a
igreja Católica. Embora pessoalmente detestasse o clero, ele calculou que consolidaria
mais facilmente seu poder se evitasse o confronto. Por sua vez, o papa Pio VII
deve ter tido pensamentos simétricos: se se entendesse com os novos poderes
terrenos, seria deixado em paz e poderia até obter outras vantagens.
Em 1801, os dois inimigos
assinaram um tratado, a Concordata. Naquele momento, cada lado achou que havia
feito um bom negócio. A Igreja, porque o estado francês assumiu o custo
financeiro de pagar os salários dos padres; Napoleão, porque ganhou o poder de nomear
os bispos e ter reconhecidos como deveres sagrados – que deveriam ser
apregoados nas missas – o pagamento de impostos e a prestação do serviço
militar.
O acordo terminou oito anos depois de assinado,
com o papa excomungando Napoleão e este, em represália, mandando prender Sua
Santidade.
2. Ribbentrop e Molotov
Para dar uma ideia de quanto
Hitler odiava o regime soviético, basta dizer que ele considerava o comunismo
uma estratégia dos judeus para subjugarem a Alemanha e o mundo. Stalin, por seu
turno, nutria sentimentos equivalentes a respeito do nacional-socialismo.
Apesar desse ódio mortal e recíproco, os dois ditadores, representados pelos
ministros Ribbentrop e Molotov, firmaram, em 1939, um pacto de não agressão.
O pacto foi um ato de
traição de Stalin aos comunistas de todo o mundo, mas trouxe benefícios
imediatos aos dois países. Por um lado, a União Soviética habilitou-se a incorporar
vastas porções de território. (Uma das cláusulas secretas do acordo previa,
exatamente, a partição da Polônia entre as duas potências.) Por outro, Hitler
mantinha os russos quietos, enquanto tratava de consolidar suas posições na
Europa ocidental.
Deu tudo errado: em junho de
1941, Hitler invadiu a União Soviética e, seis meses depois, o inverno russo e
o Exército Vermelho começaram a derrotar a máquina de guerra alemã. Os russos e
seus aliados dos países satélites também pagaram um preço altíssimo: mais de
vinte milhões deles foram mortos até a rendição de Berlim.
3. Vargas e Prestes
“Jamais apoiarei sua
candidatura [a presidente da República]”, disse Luís Carlos Prestes a Getúlio
Vargas, quando os dois se encontraram, pela primeira vez, em setembro de 1929.
E deu as razões: “não acredito que o senhor, um político reacionário,
latifundiário, queira fazer um movimento em benefício do povo”. Vargas, por seu
turno, não tinha nenhuma admiração pelo seu interlocutor que vivia, então, em
exílio na Argentina: “a luta revolucionária está reduzida a simples correrias
de cangaceiros”, dissera ele, anos antes, ao se referir depreciativamente à
Coluna Prestes.
Mesmo perdendo as eleições,
Getúlio chegou à presidência, em 1930, liderando a revolução que depôs
Washington Luís. Cinco anos depois, eclodiu a chamada Intentona Comunista,
liderada por Prestes. A tentativa de golpe foi dominada em poucos dias e
Prestes, preso, juntamente com sua mulher Olga Benario, uma judia alemã. Mesmo Olga
estando grávida, Getúlio autorizou sua deportação para a Alemanha nazista, onde
qualquer um podia prever que ela morreria (como morreu) poucos meses depois, em
um campo de concentração.
Prestes permaneceria enjaulado
pelo regime getulista por mais oito anos. Mas, quando saiu da prisão, fez o seu
pacto Ribbentrop-Molotov, apoiando o governo Vargas, após este declarar guerra
à Alemanha. Até participou de comícios ao lado do arquiinimigo, como demonstra
uma das fotos apensas a este texto.
Como os outros, este namoro de
inimigos terminou mal. O apoio do antigo líder tenentista não evitou que
Getúlio perdesse a presidência. Prestes, por sua vez, em seguida à
redemocratização de 1946, tornou-se senador. No mesmo ano, entretanto, o Partido
Comunista foi, novamente, declarado ilegal e todos os parlamentares eleitos
pela sigla, aí incluído Prestes, tiveram seus mandatos cassados. Getúlio não
pôde ou, mais provavelmente, não quis, defender o antigo inimigo e
recém-aliado.
4. Lula e Maluf
Até aqui, tivemos história.
A partir deste ponto, entro na ficção. Ou, quem sabe, na história que já está
sendo escrita, mas ainda não terminou de sê-lo.
Uns poucos minutos a mais de
propaganda eleitoral na TV não foram suficientes para evitar que Fernando
Haddad perdesse a eleição em São Paulo ainda no primeiro turno. Isso não surpreendeu.
Surpreendente, sim, foi a baixíssima votação do PT – um percentual bem menor
que o tradicionalmente alcançado. Ficou claro que Maluf pode ter atraído uns
poucos eleitores, mas afugentou um número muito maior deles.
Contribuiu para a derrota de
Haddad a falta de empenho na campanha eleitoral de velhos líderes da esquerda, cujo
capital político havia sido construído dentro do PT nos anos em que este
partido, ainda na oposição, parecia se guiar por princípios de consciência social,
virtude e idealismo. É claro que o comportamento desses líderes – Marta e
Eduardo Suplicy, Hélio Bicudo, Aloísio Mercadante, a quase-candidata a
vice-prefeita Luísa Erundina (cuja carreira começou no PT, embora tivesse, anos
antes de 2012, trocado de partido) – refletiu, mas, ao mesmo tempo,
intensificou a desilusão dos eleitores com o pragmatismo exagerado de seu chefe
maior, o ex-presidente Lula.
Na década seguinte, o país
assistiu o Partido dos Trabalhadores definhar a cada ano, a ponto de seus dirigentes
proporem a fusão com o PNT, Partido dos Não-Trabalhadores, de Paulo Maluf. (Mesmo
estando preso nos Estados Unidos, Maluf tinha mais votos do que Lula.) Nisso, ele
repetiu a trajetória do PFL/DEM e do PSDB, que haviam sido fortes, enquanto a
conjuntura lhes fora favorável, mas que, desprovidos de qualquer matriz ideológica,
morreram de inanição, quando os ventos mudaram.
Felizmente, para o Brasil, a
morte do PT (e, antes dela, as do PFL e do PSDB) não significou o enterramento das
bandeiras de pureza ideológica, seriedade, honestidade, respeito à coisa
pública, transformação social responsável. Estas continuaram a ser proclamadas,
só que por outros atores, agrupados no que veio a se chamar de Aliança Liberal.
(Opa, fiz confusão: Aliança Liberal
é coisa da revolução de 1930!)
REFERÊNCIA
As frases atribuídas a Getúlio
Vargas e a Luís Carlos Prestes foram retiradas do excelente livro de Lira Neto,
Getúlio, 1882-1930: Dos anos de formação à
conquista do poder. (São Paulo, Companhia das Letras, 2012.) Trata-se do primeiro
volume de uma prometida trilogia que, certamente, comporá, quando finalizada, a
melhor biografia de Getúlio Vargas já escrita. Recomendo fortemente a leitura do
texto de Lira Neto, também autor de uma ótima biografia do Padre Cícero.
Este artigo está sendo publicado, simultaneamente,
em
(19/06/2012)