segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

As Ligações Perigosas

Gustavo Maia Gomes


Choderlos de Laclos publicou o seu romance Les liaisons dangereuses em 1782. Se o tivesse escrito no Brasil de hoje, as ligações perigosas de que fala bem poderiam ser aquelas que se estabeleceram entre juízes e deputados. Perigosas para o país, bem entendido; muito lucrativas para eles.
***
Duas notícias se destacaram na semana passada – uma nacional, outra, pernambucana, mas com repercussões que as ampliarão muito no tempo e no espaço:
Ministro beneficiou a si próprio ao paralisar inspeção. O ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski está entre os magistrados do Tribunal de Justiça de São Paulo que receberam pagamentos sob investigação do Conselho Nacional de Justiça. (Folha de São Paulo, 21/12/2011).
Assembleia está distribuindo milhões. A Assembleia Legislativa de Pernambuco decidiu pagar auxílio-moradia [retroativo a 1997] a diversos deputados e ex-deputados. O valor pode chegar a mais de R$ 1 milhão por deputado (ou ex-deputado). (Blog Acerto de Contas, 22/12/2011)
Aparentemente desconexas, as duas notícias abrem uma fresta sobre algumas das ligações que se estabeleceram entre os integrantes do Judiciário e a classe política, no Brasil contemporâneo. Senão, vejamos:
No caso dos juízes, os pagamentos foram feitos “com base em direito reconhecido em 2000, quando o STF decidiu que todos os magistrados do País deveriam ter recebido aquilo que, durante alguns anos da década de 90, foi pago apenas aos parlamentares”. (Portal Terra, 23/12/2011).
No caso dos deputados, o presidente da Assembleia “[Guilherme] Uchoa lembrou que o pagamento [do auxílio-moradia] também está sendo recebido pelos tribunais de Justiça e de Contas e pelo Ministério Público de Pernambuco” (Band.com.br, 25/12/2011)
Ou seja, para quem não entendeu bem: os juízes podem receber porque os deputados recebem; os deputados podem receber porque os juízes recebem.
***
É preciso dizer que nem sempre juízes e deputados tiveram as regalias atuais ou ganharam a exorbitância que ganham hoje. Sem recuar muito na história, durante o regime militar (ou seja, de 1964 a 1985), ambas as “categorias”, além de viverem atormentadas pelo espectro da demissão arbitrária ou cassação de mandatos, recebiam pouco dinheiro. Os donos da pátria eram os militares de alta patente, que abocanhavam os gordos salários nas empresas estatais respaldados na sua competência em dar tiros de canhão.
A partir de 1985, tudo isso mudou. No seu período de domínio, os militares se sustentavam escorados no crescimento econômico (que gerava ganhos pecuniários, mesmo se desigualmente distribuídos, para todos os brasileiros) e na repressão (que inibia os insatisfeitos, permanentemente ameaçados de prisão, morte ou tortura). Portanto, as forças que se organizaram para derrubá-los tinham de buscar outros pontos de apoio. Se houvesse crescimento, ótimo; mas a repressão estava fora de pauta. As palavras de ordem que, no novo regime, abririam as portas para conquistar e manter o poder seriam “eleições diretas”, “participação”, “estado de Direito”, “autonomia e equiparação dos poderes” e semelhantes.
***
Em tal ambiente, uma aliança logo se formou entre deputados (e senadores...) e juízes (e desembargadores, procuradores...). Os primeiros faziam as leis que criavam regalias para eles mesmos; os segundos garantiam a constitucionalidade dessa nova legislação e, apelando para a “equiparação dos poderes”, estendiam a si próprios os benefícios. Ou então, numa variante do mesmo processo, os deputados e senadores instituíam as leis encomendadas pelo Judiciário para beneficiar seus integrantes, as quais eram, posteriormente, interpretadas como se aplicando também aos parlamentos.
Enquanto isso, o Executivo (à exceção de setores muito específicos) era -- e ainda é -- mantido como refém: se esboçasse reagir, não teria uma só proposta acatada no Congresso, nem as contas aprovadas, nem a tranqüilidade de viver sem a ameaça de uma coerção judicial. Ou, quem sabe, os deputados e senadores criariam uma CPI (para os menos informados: Comissão Parlamentar de Inquérito), ou uma ameaça de impeachment.
Esse processo teve uma dimensão macroeconômica graças à qual os privilégios criados no papel puderam ser convertidos em dinheiro de verdade na conta dos beneficiários. Pois a “autonomia dos poderes” foi traduzida pelo Legislativo e Judiciário como significando que eles (embora tenham responsabilidade zero pela arrecadação de impostos) podem fixar livremente suas próprias despesas, obrigando o Executivo a pagá-los pelo preço que eles pensam valer. Ninguém precisa ser muito sábio para deduzir que receitas ilimitadas logo seriam transformadas nas remunerações astronômicas de deputados, senadores, juízes e similares. Ou que, extorquido pelos dois outros poderes, ao Executivo restaria apenas aumentar impostos, cortar investimentos, piorar a qualidade dos serviços públicos e comprimir os salários de seus próprios servidores. Com todas as consequências nefastas que cada uma dessas medidas, inevitavelmente, traria. E trouxe.
***
Uma frase muito repetida na década de 1950 era “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Em 2011, saúvas são as relações perigosas que se estabeleceram entre juízes e deputados, cujos “direitos” aumentam na mesma magnitude em que os nossos diminuem. E nem se falou, neste artigo, em corrupção, outro tema (com perdão do duplo sentido) "riquíssimo".
Infelizmente, foi mais fácil acabar com as formigas do século XX do que será extinguir as saúvas de hoje.


Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com (26 dez 2011)



segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Papai Noel, enforcado, está vivo



Gustavo Maia Gomes


Em 24 de dezembro de 1951, o personagem conhecido como Papai Noel morreu na forca e foi queimado, em seguida, sob a acusação de transformar o Natal num evento de consumo. Isso ocorreu na catedral de Dijon, França. Os padres locais aprovaram tudo, mas não conseguiram evitar que o morto reaparecesse, alguns dias depois, na mesma cidade. Lépido e fagueiro, curtindo sua fama, que não é pouca.
Nem pouca, nem surpreendente: uma vez por ano, o velho recebe mais propaganda gratuita do que Jesus Cristo, seu patrão e aniversariante do mês. De fato, Papai Noel é o Natal, evento que provoca euforia no comércio, sustenta tanto a indústria de enfeites quanto uma multidão de inventores esquisitos, e ainda motiva a produção de inúmeros artigos acadêmicos. Nos Estados Unidos, sobretudo, mas não exclusivamente.
A produção científica sobre a festividade, movida a dinheiro e povoada de estudos duvidosamente relevantes, é pouco conhecida. Vale ter uma breve notícia dela, assim como dos inventos natalinos: bugigangas patenteadas, que, em conjunto, refletem e ajudam a sustentar a prosperidade movida pelas compras.
NATAL CIENTÍFICO
Do que os estudiosos andam pesquisando sobre temas de Natal, vai aqui uma pequena amostra, encontrável na internet:
1. Ray Cradick testou a hipótese de que os desenhos de Papai Noel aumentariam de tamanho até o Natal, mas se tornariam menores depois. Parece que as figuras, realmente, crescem antes da festa, mas não diminuem, depois. Assim, terminarão maiores que o consultório psiquiátrico onde são desenhadas.
2. A contribuição de Eileen Fischer e Stephen J. Arnold para o conhecimento humano é a descoberta de que os homens que “sustentam atitudes igualitárias em relação ao papel dos gêneros se envolvem mais na compra de presentes natalinos”. Ou seja, se comportam como as mulheres. Embora pareça banal, chegar a tanto custou caro: eles entrevistaram 299 pessoas.
3. Joel Waldfogel afirma ser muito improvável que, ao dar um presente, o doador escolha exatamente aquilo que o beneficiado compraria com o mesmo dinheiro. Em todos os outros casos, isso não ocorreria. A discrepância pode ser interpretada como uma perda social de bem-estar. Que fazer? Nem eu sei nem, aparentemente, ele.
4. James Hillard e colaboradores reconhecem existir a crença de que a época do Natal está associada à maior incidência de crises psicóticas. Chegaram à conclusão contrária: há um decréscimo delas. Infelizmente, passado dezembro, o que tinha caído volta a subir. Os doentes ficam sem nenhum benefício líquido; só os médicos ganham, pois têm mais tempo para fazer as compras natalinas que o mundo todo lhes cobra.
Em resumo, a literatura técnica especializada trata dessas coisas. Assim como o Natal, propriamente dito, é movido a reais, dólares e décimo-terceiro salários, a produção acadêmica a ele associada também responde aos impulsos do mercado e aos financiamentos governamentais. Existem os financiadores e os que querem ser financiados. Portanto, aparecem as pesquisas. Mas talvez haja dinheiro demais. Considerando algumas das coisas que têm sido estudadas, esta é uma possibilidade.
NATAL INDUSTRIAL
Passemos agora para o lado prático da coisa: as invenções natalinas e suas respectivas patentes concedidas pelo governo. Um homem inventou o disco CD em forma de árvore de Natal. (Deve ser um problema, aquele negócio triangular girando a alta velocidade. Poderia cortar um dedo desavisado.) Outro, um clipe para luzes natalinas. O terceiro, um suporte de luzes para colocar no telhado. Há, também, uma varinha sustentando pequenas luminárias. (Meio afetada, a tal varinha.) Um besteirol completo.
Felizmente, bem pesadas as coisas, a sobrevivência da humanidade independe desses inventos. Mas a lição que fica é outra: os que patenteiam varinhas ornamentais ganharão dinheiro com elas. E a soma dos ganhos com varinhas, luzes, clipes, suportes e tudo o mais termina sendo parte da diferença entre os países onde a burguesia “faz maravilhas” (para usar a expressão de Marx e Engels no Manifesto Comunista) e aqueles onde ela está proibida de fazê-las. Quem quiser que prefira estes últimos. Não é meu caso. A mim, custa muito menos aturar Papai Noel uma vez por ano do que custaria ter de aguentar Fidel Castro o ano inteiro.

Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com (19 dez 2011)

Referências
Ray A. Cradick, “Size of Santa Claus drawings as a function of time before and after Christmas”. Journal of Psychological Studies, Vol 12(3), 1961, 121-125.
Eileen Fischer and Stephen J. Arnold, “More than a labor of love: gender roles and Christmas gift shopping”. Journal of Consumer Research, Dec 1990.
Joel Waldfogel, “The deadweight loss of Christmas”. American Economic Review, vol. 83, n. 45, n. 5, Dec. 1993.
James R. Hillard, Jacqueline M. Holland, and Dietolf Ramm, “Christmas and psychopathology: Data from a psychiatric emergency room population”, Archives of General Psychiatry, 1981; 38 (12).

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Reincidências alagoanas


Gustavo Maia Gomes
Sob muitos aspectos, Alagoas é uma decepção. Estado relativamente rico em recursos naturais, tem uma economia truncada, muito dependente da cana-de-açúcar e seus produtos, e uma situação social deplorável até para os padrões nordestinos. De onde vêm os problemas? A resposta envolve inúmeros fatores, mas, dentre eles, a política tem lugar de destaque. Confira, abaixo, uns poucos retratos impressionistas (e impressionantes).
***
1) "Investigação da Polícia Federal afirma que a família do senador e ex-presidente Fernando Collor pagou [R$ 2,2 milhões] em 1998 pelo dossiê Cayman, conjunto de papéis forjados para implicar tucanos com supostas movimentações financeiras no exterior. (...) O senador teria recebido pessoalmente a papelada”. (Folha de São Paulo, 12/12/2011)
2) "O Ministério Público Federal informou que pediu à Justiça a inclusão dos nomes dos ex-governadores de Alagoas Manoel Gomes de Barros e Ronaldo Lessa no rol de denunciados por má gestão de recursos de verbas destinados às obras de macrodrenagem do Tabuleiro dos Martins." (O Estado de São Paulo, 30/11/2010)
3) "O Supremo Tribunal Federal abriu investigação sobre supostas práticas de improbidade administrativa e de tráfico de influência exercidas pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL), [que] já é investigado pelo STF em outro caso." (UOL Notícias: Política, 02/08/2010)
***
Se fosse só isso, seria bastante. Mas tem mais, muito mais. Veja algumas jóias históricas a respeito de ex-governadores do Estado. 
a) Sobre Silvestre Péricles (1947/51): no último dia de mandato, besuntou as paredes do Palácio do Governo com suas próprias fezes, como forma de recepcionar o arquiinimigo Arnon de Mello, sucessor eleito. Não tinha feito muito mais do que isso, nos quatro anos anteriores.
b) Sobre Arnon de Mello (1951/56): em 1963, tentando balear Silvestre Péricles, matou em pleno Senado o acreano José Kairala, um suplente que não tinha nada a ver com aquela briga. Além da falta de pontaria, o atirador também se distinguiu por ter legado ao mundo um filho de nome Fernando (Collor de Mello).
c) Sobre Geraldo Bulhões (1991/95): uma nulidade política, entregou o poder à mulher, de quem apanhava regularmente com toalhas molhadas. Um dia, os humoristas do Casseta e Planeta (TV Globo) entrevistaram a espancadora: “dona Denilma, na sua casa, quem tem Bulhões?”. Nem precisaria perguntar. Enquanto isso, o Estado prosseguia parado, quando a situação era boa; ou afundando, quando era normal.
***
Quem quiser conhecer outras informações "edificantes" deve ler o livro Curral da Morte (Rio de Janeiro, Editora Record, 2010), de Jorge Oliveira. Trata-se de uma reportagem sobre os crimes de mando em Alagoas, focada em 1957, quando o pedido de impeachment do então governador Muniz Falcão levou a um tiroteio de metralhadoras dentro da Assembleia Legislativa. Apurados os “votos”, havia um deputado morto e cinco feridos.
Jorge Oliveira conta ter entrevistado um velho jornalista alagoano que, conduzindo-o pela principal rua de Maceió, ia apontando cada ponto onde alguém tinha sido assassinado por razões políticas. Conclusão do autor de Curral da Morte: se houvessem colocado uma cruz em cada um desses locais, aquilo ali seria um cemitério.
Para os alagoanos (ou “meio alagoanos”, como eu), conhecer ou relembrar tais histórias e confrontá-las com a situação lamentável a que essa gente levou o Estado dá um pouco de tristeza e muito de raiva. Meu pai concordaria; meu irmão, tenho certeza, concordará.


Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com (12 dez 2011)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Onde fica o Recife?


Gustavo Maia Gomes
Dentro de alguns anos, quando um turista perguntar “onde fica o Recife?”, ouvirá como resposta “ao lado do chópin”. Estou pensando no principal desses monstrengos urbanos, já quase tão grande quanto a cidade que o cerca. O maior do Nordeste, do Brasil, do mundo – incluindo a Guatemala. Tem uma doença: gigantismus pathologicum; e um sintoma: não para de crescer.
Nas proximidades, em terrenos que ainda não são chópins, outro deles está sendo erguido. Enormemente enorme. Na sua terceira expansão, que coincidirá com a décima-nona do rival mais antigo, os dois se encontrarão e a cidade terá desaparecido. No futuro, os paraenses visitarão o local para desfrutar de um grande território. “Como era bom”, dirão eles, saudosos.
***
O que há de errado com esta cidade? A simples inspeção visual sugere que, por metro quadrado, o Recife tem mais desses centros de compras do que qualquer outro lugar. A gente acha isso bom. Trafegar por ali tardes e noites chupando um sorvete de matéria plástica é o programa da moda – e não apenas dos adolescentes. Comprar nas suas lojas é a obrigação diária das dondocas classe média às assalariadas emergentes. E de seus maridos, filhos, netos, enteados, penteados, quase todos. E tome mais chópins sendo construídos e mais expansões sendo feitas nos que construídos estão.
De onde saem os estímulos econômicos para esta febre que destrói o comércio tradicional do centro e dos bairros, transformando o Recife numa cópia infeliz das cidades americanas mais desprovidas de poesia? Sim, porque estímulos econômicos, certamente, abundam: com uma exceção, motivada por circunstâncias particulares, que não vem ao caso citar, não existe aqui um chópin que dê prejuízo.
Eles são um bom negócio, em perpétua expansão, por duas razões. A primeira é nosso irrefreável desejo de copiar os Estados Unidos, consumindo os produtos da sua subcultura. Os norte-americanos ganham dez prêmios Nobel a cada ano, enquanto nós nunca tivemos nenhum. Nisso não os imitamos. Sua capacidade de criar fantásticas tecnologias que melhoram nossa vida é sem igual. Pouco nos interessa. Mas em formar multidões de viajantes para Miami-Orlando e ali apertar a mão do rato, ninguém nos vence. Em trazer para cá aquela comida horrorosa – Mac Donald’s, Burger Kings, Pizza Huts – somos imbatíveis. E em construir cinco mil chópins, todos iguais, nem se fala.
A segunda razão remete ao descaso do poder público com os locais onde não estão os chópins, como os centros das cidades e as zonas comerciais dos bairros. Basta a prefeitura não mandar recolher o lixo, o governo estadual relaxar com o policiamento, a companhia de águas deixar os esgotos entupidos, que as pessoas, se puderem (e quase todas podem), se afastarão desses locais, obrigando as lojas a fecharem suas portas ali. E que outra coisa governos e prefeituras (não apenas no Recife) têm feito?
Portanto, haja chópins ou, como os entendidos preferem escrever, shopping-centers. Onde iremos parar? Talvez no ponto em que começamos.
***
Dentro de alguns anos, quando um turista perguntar “onde fica o Recife?”, ouvirá como resposta “ao lado do chópin”. Estou pensando no principal desses monstrengos, já quase tão grande quanto a cidade que o cerca. O maior do Nordeste, do Brasil, do mundo – incluindo a Guatemala. Tem uma doença: gigantismus pathologicum; e um sintoma: não para de crescer.
Melhor seria que as pessoas fossem uma vez por ano ver o Mickey Mouse e o deixassem lá. Mas elas acham isso pouco; dão um jeito de trazer o rato para cá. Com suas comidas, sua estupidez cultural, seus intoleráveis shopping centers.


Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com (5 dez 2011)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O homem que virou navio


Gustavo Maia Gomes





Conhecida pela facilidade com que troca de nome, a atual capital paraibana começou a existir em 1585, como Povoação de Nossa Senhora das Neves. Logo depois, num sinal de progresso, ganharia o prestígio de cidade, sem conseguir melhorar de santa. Em 1600, viria a ser Filipeia; em 1817, Parahyba; em 1930, João Pessoa.

– Terminou?

Não. O atual nome homenageia um político de mérito e importância discutíveis. João Pessoa apoiara Getúlio Vargas nas eleições presidenciais de março, sendo assassinado em julho de 1930. Sua morte violenta causou grande comoção, detonando o movimento que pôs fim à República Velha. O infortúnio e suas conseqüências imediatas, contudo, não bastariam para fazer dele a capital do Estado.

Em função disso, desde, pelo menos, 2003, alguns paraibanos tentam mudar o nome de sua capital. Uma enquete via internet, em curso, já teve 501 respondentes, dois terços deles favoráveis à mudança. A pergunta e os percentuais das respostas são os seguintes:

Você aprova a mudança do nome da capital do Estado da Paraíba?
NÃO. A homenagem ao interventor morto é justa e devida
24,35%
SIM. Prefiro voltar o nome "Filipeia de Nossa Senhora das Neves"
5,59%
SIM. Prefiro o nome "Cabo Branco", pela referência marcante do ponto geográfico
31,74%
SIM. Prefiro o nome "Sanhauá", nome do rio que banha a cidade
2,20%
SIM. Prefiro o nome "Tambaú", principal balneário da região
1,00%
SIM. Mas prefiro Parahyba como era até 1930
35,13%

Generalizando...

Sem que fosse sua intenção, os paraibanos deram um bom exemplo a muitos outros brasileiros. Não deveriam os cariocas iniciar um movimento para tirar o nome Antonio Carlos Jobim do seu aeroporto internacional? Afinal, depois de passar uma vida criando músicas para nosso deleite, o grande compositor é diariamente enxovalhado pelos jornais: “Chileno acusado de furtar passageiros é preso no aeroporto Tom Jobim” (O Dia, 22/11/11); “Caixa realiza leilão de duas mil peças apreendidas no aeroporto Tom Jobim” (Monitor Mercantil Digital, 22/11/11). Etc., etc.

E os pernambucanos? No Recife, havia, a “estrada da Imbiribeira”, que alguém, no tempo dos militares, achou por bem renomear “avenida Marechal Mascarenhas de Morais”. A intenção de bajular produziu resultado desastroso: o homem tornou-se um grande congestionamento cheio de buracos. Se antes era desconhecido, passou a ser odiado. O “Beco da Facada”, de todos familiar, virou “rua Guimarães Peixoto”. Nem o Google nos leva lá. Mais recentemente, batizaram um túnel “Augusto Lucena”. Uma impropriedade. Muito melhor teria sido associar seu nome a um mictório público, que o velho prefeito tanto quis construir e jamais conseguiu.

Nesse clima, leio, hoje, a seguinte notícia: “A presidenta Dilma Rousseff destacou a retomada de produção da indústria naval, com a construção do navio Celso Furtado. Ela esteve no Estaleiro Mauá, para fazer a entrega da embarcação”. (Agência Brasil).

Por um momento, na imaginação, voltei à Paraíba, terra onde Celso Furtado nasceu. Foi um grande economista, mas, como navio, sei não...





(Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com, 28 nov 2011)

domingo, 20 de novembro de 2011

Sermão de Montaigne


Gustavo Maia Gomes


Há poucos dias, noticiou o site G1, da Globo.com:
A estimativa dos economistas dos bancos [sempre os bancos] para o crescimento do Produto Interno Bruto de 2011 caiu de 3,20% para 3,16%. Para 2012, a previsão do crescimento da economia brasileira permaneceu estável em 3,50%.
Se ficássemos apenas com o ano corrente, menos mal. Meros 45 dias nos separam de 31 de dezembro; portanto, este “futuro” já está, em larga medida, determinado. A probabilidade de um erro significativo é pequena. Apesar disso, a precisão da estimativa – não mais 3,20% e, sim, 3,16% – merece registro. Ainda que o número seja uma média de palpites, alguém fez os cálculos e divulgou o resultado. Supostamente, querendo ser levado a sério.
Mas, e quanto ao próximo ano?
Deveríamos responder que não sabemos em quantos por cento a economia brasileira, estrangeira, ou sobranceira irá crescer, decrescer ou ficar parada, em 2012, 2013 ou 2014. Mas isso não contentaria o mercado. Portanto, inventamos números, que o tempo irá desmentir. Lembro-me de uma reflexão de minha mãe: há os enganadores porque existem os que querem ser enganados – e estes são muito mais numerosos.
Em 1580, ou seja, 200 anos antes de Adam Smith, o francês Michel de Montaigne escreveu, num ensaio sobre os índios brasileiros:
O profeta prediz também o futuro e o que [os selvagens] devem esperar de seus empreendimentos, incitando à guerra ou a desaconselhando. Mas importa que diga certo, pois, do contrário, se o pegam, é condenado como falso profeta e esquartejado. Por isso não se revê jamais quem uma vez errou.
É o sermão de Montaigne.


REFERÊNCIA:
Michel de Montaigne, Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. Abril Cultural, São Paulo, 1972, pág. 107.

Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com (21 nov 2011)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Pernambuco precisa de uma nova cidade


Gustavo Maia Gomes
Assim como acontece no entorno dos portos de Pecém (CE) e Suape (PE), o Litoral Norte pernambucano vive a expectativa otimista de uma revolução econômica. A montadora de automóveis Fiat está prestes a ali se instalar; a construção de um porto e um aeroporto é uma possibilidade real; vários outros empreendimentos, alguns, grandes, outros, enormes, também foram anunciados. Com a Fiat, virão dezenas de fornecedoras; com o complexo logístico, será atraído um número ainda maior de empresas. Mais renda, empregos, oportunidades.
Por um lado, parabéns; por outro, uma nota de cautela. Há trinta anos, situação semelhante se produziu no mesmo lugar. A grande esperança, então, era o turismo. Mas a realidade jamais confirmou as promessas. Ao contrário, o Litoral Norte foi ficando para trás. Em tudo, não somente no turismo. Será possível que uma nova decepção esteja a caminho? Se assim for, como evitá-la?
ABORTO TURÍSTICO
Até o início dos anos 1980, o prometido Eldorado do turismo pernambucano era a ilha de Itamaracá e outras praias da região, como Janga, Pau Amarelo, Conceição e Maria Farinha, em Paulista; Pontas de Pedra, em Goiana; Casa Caiada, em Olinda. Cada um desses lugares parecia destinado a abrigar, em pouco tempo, segundas residências da classe média de maior poder aquisitivo, assim como pousadas e hotéis de luxo, além de restaurantes de alto padrão e casas de diversão variadas. Um hotel sofisticado, para a época, (o Quatro Rodas) chegou a se instalar em Casa Caiada.
Mas erros graves foram cometidos, a partir de então. As poucas verbas do primeiro Prodetur (Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste) que vieram para Pernambuco foram aplicadas, todas, no Litoral Sul. Além disso, houve a localização de duas cadeias em Itamaracá, um forte fator de desincentivo aos que procuravam aquela praia. Corria, inclusive, a lenda de que, à noite, os presídios liberavam os internos – ocasiões que eles aproveitavam para roubar os turistas. Mesmo durante o dia, os assaltos se sucediam, com as consequências negativas que se poderiam esperar.
Esse problema com os presídios, contudo, era só de Itamaracá e o aborto turístico ocorreu, na verdade, também em Goiana, Olinda e Paulista. A principal explicação para isso parece ter sido a irresponsabilidade das prefeituras, que permitiram a mais anárquica ocupação das áreas sob sua administração. Naquela época, era comum alguém comprar um terreno “à beira-mar” – em Rio Doce (Olinda), em Itamaracá e noutros lugares –, e ser surpreendido, alguns meses adiante, com a construção de uma casa em frente à sua. Às vezes, lhe impossibilitando até mesmo o acesso à praia.
CAOS URBANO
Em pouco tempo, as condições de habitabilidade e de simples acolhimento aos visitantes se deterioraram profundamente. A maioria dos turistas procurou outros locais; os que ficaram tinham baixo poder aquisitivo, como os beneficiários de invasões ou os comerciantes instalados em barracos irregulares. Pode até ter sido democrático, no curto prazo; com a passagem do tempo, mostrou-se desastroso. Pois a irresponsabilidade dos prefeitos contribuiu para o colapso econômico no Litoral Norte. E ninguém, seja pobre ou rico, se beneficia da decadência.
Como as atividades turísticas exercem óbvio efeito sobre a renda local, sua retração afetou todo o setor serviços e, por extensão, explica uma parte não desprezível da queda brusca na participação do Litoral Norte no PIB pernambucano. Um dado impactante, a esse respeito: em 1985, as “despesas com salários nas atividades do comércio total” (uma medida relacionada com a atividade turística) no Litoral Norte correspondiam a 51,2% da mesma variável no entorno de Suape (Jaboatão, Cabo e Ipojuca); em 1996, essa relação havia caído para 16,1%. (Fonte: IBGE). Não por coincidência, poucos anos depois de inaugurado, o hotel Quatro Rodas fechou.
São erros que podem voltar a ser cometidos agora. Pois, com os investimentos anunciados para o Litoral Norte, haverá um enorme afluxo de pessoas procurando residir na região. Se o poder público reagir com a mesma incompetência anterior, a atual revolução das expectativas se transformará em um pesadelo urbano irreversível que inviabilizará, até mesmo, a expansão econômica posterior.
DESAFIOS, OPORTUNIDADES
Mas desafios são, também, oportunidades. O atual governo de Pernambuco bem pode vir a ser considerado, no futuro, o melhor que o Estado teve em sua História. Em parte, isso dependerá de como ele tirar proveito dos ventos favoráveis que hoje sopram. No caso específico do Litoral Norte, o governo deveria erigir, do zero, nas vastas regiões inabitadas que ainda existem ali, uma nova cidade. Planejada. Bonita. Inteligente. Sustentável. Não será necessário gastar um centavo, agora. Basta criar o marco legal que torne possível a essa aglomeração de gente – que surgirá, com ou sem governo – crescer de uma forma ordenada. Tenho até um nome para a nova cidade: Duarte Coelho.
Se, com o primeiro capitão donatário, Pernambuco foi o centro da economia colonial, no século 16; com a cidade que receberá seu nome, o Estado poderá ter a mais exemplar aglomeração urbana do Brasil, no século 21. É pegar ou largar.


(Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com, 14 nov 2011)

domingo, 6 de novembro de 2011

Juntar três letras não é explicar o mundo


Gustavo Maia Gomes


“No princípio, era o verbo”, diz a Bíblia, descrevendo a criação do mundo; “no princípio, era a verba”, dizem os políticos, justificando a ocupação dos ministérios. Já os economistas, se quisessem produzir uma frase comparável, talvez dissessem: “no princípio, era o PIB”. No princípio, talvez; hoje, não mais. Pois temos o PIB, o IGP, o IPC, o IDH... Com três letras, explicamos o mundo.
– Ah, tem um com quatro: o IFDM...
– Como assim, IFDM?
É o Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal. Com um número para cada município, ficamos sabendo tudo sobre ele. Esta semana, foram divulgados os resultados de 2009. Deu na TV Globo e em todos os jornais. Um sucesso. Firjan, para quem não sabe, é a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro. Ela nos informa que o
IFDM acompanha três áreas de desenvolvimento: Emprego&Renda, Educação e Saúde e utiliza-se exclusivamente de estatísticas públicas oficiais. Sua leitura é simples, o índice varia de 0 a 1, sendo que, quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento da localidade.
– Entendi.
REFERÊNCIA
Segundo a Firjan, seu índice de quatro letras está “consolidado como referência para o acompanhamento do desenvolvimento socioeconômico brasileiro”. Deve ser verdade, embora um distraído perguntasse como é que o “desenvolvimento socioeconômico brasileiro” poderia ser “acompanhado” sem qualquer informação sobre insegurança pública, níveis de corrupção, intolerância com minorias, práticas antidemocráticas, restrições à informação, exposição à imbecilidade cultural, entre outras.
Na verdade, o índice Firjan “utiliza-se exclusivamente” das estatísticas que abrangem todos os municípios e são divulgadas anualmente. Não são muitas. Esta é a chave para entender a exclusão de tantos aspectos, obviamente, relevantes para “acompanhar o desenvolvimento socioeconômico dos municípios brasileiros”. Nada contra a Firjan calcular seu índice de quatro letras; mas ele deveria ser apresentado como mais uma informação, possivelmente interessante, sobre a situação dos municípios. Referência de nada.
DIVIDIDO EM DOIS
Olhando desde um prisma regional, qual foi a grande descoberta do IFDM? De acordo com seus próprios autores, esta:
Os níveis de desenvolvimento encontrados nos 5.564 municípios brasileiros em 2009 continuam dividindo o Brasil em dois. Por um lado, as regiões Sul e Sudeste — que juntas possuem 51% dos municípios brasileiros — mantiveram a maciça predominância entre os 500 maiores IFDMs com 91,2% de participação em 2009. Por outro lado, Norte e Nordeste — onde estão 40% dos municípios brasileiros — permaneceram dominantes entre os 500 menores, com participação de 94,4% nessa faixa do ranking.
Por um lado, ótimo; confirma o que já sabíamos. Por outro, é uma informação preocupante. Pois, se o Brasil tem cinco regiões e, quando ele é dividido em dois, uma delas desaparece, ficamos sem saber se o Centro-Oeste já declarou a independência ou se, apenas, a Firjan se esqueceu de contá-lo como parte do país.
Felizmente, não foi uma coisa, nem outra:
Nesse cenário, destaca-se a movimentação do Centro-Oeste que, além de ter conquistado alguns lugares entre os 500 maiores IFDMs, se consolidou como um novo Sudeste ao apresentar distribuição dos municípios por grau de desenvolvimento similar a essa região.
Ou seja, a Firjan sabe que o Centro-Oeste existe e até que se “movimentou” direito. Foi, talvez, por causa de tanta movimentação que o IFDM não o achou em canto nenhum, quando dividiu o Brasil em dois pedaços.
AGORA, FALANDO SÉRIO...
Qualquer instituição tem todo o direito de produzir seus índices e, se as pretensões forem mantidas em limites razoáveis, tais exercícios podem, sim, contribuir para nosso conhecimento do mundo. Mas, em última análise, o problema com esses indicadores – e o divulgadíssmo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, da ONU) merece a mesma crítica – é sua arbitrariedade.
Educação, saúde, renda são aspectos importantes do bem-estar ou mal-estar social, mas se eu inventar um índice que multiplica a renda pela raiz quadrada da saúde e pelo quadrado da educação terei, no fim, um número, mas não um significado. Porque não o quadrado da renda somado com o logaritmo da educação e multiplicado pelo cubo da saúde?
No fim das contas, o conhecimento que se dane. Três letras juntas, como IDH, ou quatro, como IFDM, são vendidas à opinião pública para promover seus criadores. Nisso, sim, são um sucesso.

Referências:
Firjan, “IFDM: Índice de Desenvolvimento Municipal, 2009”, Rio de Janeiro, 2011. Disponível em http://www.firjan.org.br/IFDM/download/IFDM_2009.pdf (As citações são das páginas 1 e 2)

(Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com, 6 nov 2011)

domingo, 30 de outubro de 2011

Não surpreende, preocupa


Gustavo Maia Gomes
Uma notícia ruim, para os que gostariam de habitar um país menos desigual: o Comitê Gestor da Internet informa que, no Brasil, 35% dos domicílios possuem computador; no Nordeste, somente 14%. Menos da metade. Em termos de domicílios com acesso à Internet, os números são 27% e 11%, respectivamente. A situação relativa é um pouco menos grave na proporção da população usuária da Internet: 41% no Brasil, 28% no Nordeste.
– Não surpreende.
Para compensar, uma notícia boa, de outra fonte: o complexo tecnológico do Recife, conhecido como Porto Digital, conquistou, na semana passada, pela segunda vez, o título de melhor parque tecnológico do país, concedido pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores.
– Não surpreende.
Mas, então, voltamos ao Comitê Gestor da Internet: o desafio da inclusão digital é ainda maior no Nordeste do que no conjunto do país, pois esta região apresenta as menores taxas de crescimento da posse e uso das tecnologias de informação e comunicação. Ou seja, neste item, pelo menos (cuja importância não pode ser subestimada), a desigualdade regional brasileira está aumentando.
– Não surpreende, mas preocupa.
Referências:
Comitê Gestor da Internet no Brasil. “TIC Domicílios e Empresas: Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação no Brasil, 2010”. São Paulo, 2011 (pág. 137).
Diário de Pernambuco online. “Porto Digital eleito melhor parque tecnológico do país”, 28/10/2011.
(Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com, 31 out 2011)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Haja lixo hospitalar


Gustavo Maia Gomes
Aconteceu no porto de Suape: uma carga comprada por empresa de Santa Cruz do Capibaribe (PE), oficialmente descrita como “tecidos defeituosos”, continha, na verdade, descartes hospitalares. Começava um escândalo com devastadoras implicações para a imagem do polo de confecções do Agreste pernambucano.
Mas era só a ponta do iceberg. Nos dias seguintes, alertada pelo noticiário, gente de todo o país relatou ter comprado roupas com inscrições hospitalares – até a Santa Casa de Belo Horizonte revendia seus trapos. Lençóis da St Luke Health Care eram regularmente usados em hotéis do interior. Uma nova grife, talvez.
Descobrimos que a reutilização do lixo hospitalar não era um problema só de Pernambuco, ou de seu polo de confecções. Não que isso constitua consolo, mas o registro precisa ser feito. Para torná-lo mais enfático, transcrevo umas poucas notícias recentes sobre o mesmo tema.

OS FATOS
Até hoje ele acha que são novas, diz polícia sobre dono de lixo hospitalar. Comerciante de Ilhéus (BA) prestou depoimento na noite de domingo. Peças apreendidas tinham nomes de médicos e até manchas de sangue. (G1 Bahia, Rede Bahia de Televisão. 24/10/2011; 11:42)
Escândalo do reúso de lençóis de hospitais chega a São Paulo. Um comerciante do Brás foi acusado pelo dono da loja em Ilhéus, na Bahia, de vender tecidos com logomarcas de vários hospitais brasileiros. As autoridades suspeitam que o material seja lixo hospitalar. (http:// veja.abril.com.br/noticia/brasil/escandalo-do-reuso-de-lencois-de-hospitais-chega-a-sp. 22/10/2011)
Suposto lixo hospitalar é encontrado em forro de roupa em Fortaleza. Dona de casa (...) enviou ao Diário do Nordeste Online imagens da roupa ao avesso que mostram as logos do Governo da Bahia e da Maternidade Professor José Maria de Magalhães Neto, localizada em Salvador. (Liana Sampaio) http://diariodonordeste. globo.com/noticia.asp?codigo=328900&modulo =966 . 21/10/11)
Lençóis contaminados dos EUA são usados na indústria têxtil da Paraíba. Peças com retalhos potencialmente contaminados foram localizadas em Pernambuco, na Paraíba, na Bahia, no Ceará, no Espírito Santo e no Piauí. Uma carga saída do bairro do Brás, em São Paulo, foi interceptada ontem, com cerca de 13t de lençóis com nomes e marcas de hospitais e moteis brasileiros. (http://www.paraiba.com.br/2011/10/21/67324-lixo-hospitalar-lencois-contaminados -dos-eua-sao-usados-na-industria-textil-da-paraiba . 21/10/2011)
Santa Casa em Belo Horizonte comenta uso de lençóis hospitalares em roupas. Tecidos com inscrições de hospitais de Belo Horizonte foram usados para confeccionar bolsos de calças. Nesta quinta-feira, o grupo Santa Casa informou que existe a possibilidade do fabricante de lençóis ter repassado retalhos têxteis às confecções. Mas não quis divulgar os nomes das indústrias fornecedoras. http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2011/10/santa-casa-em-bh-comenta-uso-de-lencois-hospitalares-em-roupas.html.

“EM COMPENSAÇÃO”
Meu falecido tio Álvaro Batinga, advogado de renome em Maceió na década de sessenta, tinha uma veia satírica particularmente aguçada. Certa vez, ele contou a seguinte história.
Um menino de seus dez a doze anos pergunta ao pai o que queria dizer “em compensação”. O pai explica de várias maneiras, mas não se faz entender em nenhuma. Apela, então, para um exemplo.
– Joãosinho – diz ele –, se você chegasse aqui em casa, uma noite, e encontrasse sua mãe na cama com outro homem, o que eu seria?
O menino responde prontamente, sem disfarçar a satisfação:
– Corno.
Ao que o pai retruca:
– É, mas em compensação, você seria f. da p.
No episódio do lixo hospitalar, o polo de confecções do Agreste pernambucano bem pode ter sido o corno, mas, em compensação, contribuiu para mostrar que há muitos f. da p. por aí.