sábado, 16 de janeiro de 2016

Os jesuítas e a origem da gastronomia brasileira

Padre José de Anchieta (1534-1597)
Gustavo Maia Gomes

É uma delícia ler as cartas dos padres jesuítas chegados ao Brasil no século XVI. Manoel da Nóbrega, José de Anchieta e o impronunciável Azpilcueta Navarro, entre outros, escreviam bem sobre assuntos vários, como pecado e salvação, salvação e pecado, pecado e salvação, salvação e pecado...
Detestavam, por exemplo, a prática indígena da antropofagia. "É esta a coisa mais abominável que existe entre eles", diz Nóbrega, escrevendo da Bahia para Portugal, em 1549. "Se matam a um na guerra, o partem em pedaços e, depois de moqueados, os comem com a mesma solenidade".
Os defensores do pensamento politicamente correto digeriram com dificuldade esse aspecto da cultura local anterior à chegada dos portugueses. Sustentaram, por exemplo, para dourar a pílula, que se tratava de assassinatos rituais, cujo único objetivo seria permitir aos membros de uma tribo incorporar as qualidades guerreiras do inimigo assado no moquém.
Balela. Os índios "brasileiros" tinham deficiências de proteínas e apreciavam muito comer carne humana. Não sou eu o primeiro a dizer isso, mas encontrei uma história excelente, que reforça meu ponto, nas Cartas Avulsas, 1550-1568, de Azpilcueta Navarro e outros (São Paulo e Belo Horizonte, Editora da USP e Itatiaia, 1988, pág. 81).
A história aparece em nota ao livro e foi buscada pelo editor Afrânio Peixoto nas Crônicas escritas em 1663 pelo também jesuíta Simão de Vasconcelos. Com pequenas adaptações de estilo, mormente, para adaptar os tempos de verbo ao uso mais comum hoje em dia, ei-la:
"Sem governo, erradios e canibais. Tinham os padres juízo em diferir o batismo, pois, por mais civis e piedosos que se mostrassem, o uso de comer carne humana era neles inveterado. Sobejam os documentos: basta esta anedota, simbólica."
Até aqui, copiei Afrânio Peixoto. Daqui para frente, o editor das Cartas Avulsas transcreve Simão de Vasconcelos.
"Contava um padre de nossa Companhia, grande língua brasílica, que penetrando uma vez o sertão, chegando a certa aldeia, achou uma índia velhíssima, no último da vida. Catequizou-a naquele extremo, ensinou-lhe as coisas da Fé e fez cumpridamente o seu ofício." (A expressão "língua brasílica" quer dizer que a pessoa sabia falar o idioma dos índios.)
O padre da história agora se dirige à idosa. "Depois de ter-se cansado em coisas de tanta importância, atendendo à sua fraqueza e fastio, lhe disse (falando a modo seu da terra): Minha avó (assim chamam as que são muito velhas) se eu vos desse agora um pequeno bocado de açúcar, ou outro conforto lá de nossas partes do mar, não o comeríeis?"
"Respondeu a velha, catequizada, já: Meu neto, nenhuma coisa mais da vida desejo, tudo me aborrece. Só uma coisa me poderia abrir agora o fastio: se eu tivesse uma mãozinha de um rapaz tapuia, de pouca idade, tenrinha, e lhe chupasse aqueles ossinhos, então, parece, tomaria algum alento. Porém eu, coitada de mim, não tenho quem vá me flechar um desses".
Não adianta negar: a verdadeira origem da gastronomia brasileira é o churrasco de índio.

(Publicado no Facebook, 13/1/16)

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O Regulamento do Teatro Nacional (São Luís do Maranhão, 1854)

O então chamado Teatro Nacional de São Luís (hoje Arthur Azevedo) em 1908.
(Foto colhida no site do Governo do Maranhão)
Gustavo Maia Gomes

O imponente Teatro União, depois Nacional e, hoje, Arthur Azevedo, em São Luís do Maranhão, é um dos mais antigos do Brasil. Foi inaugurado em 1817, bem antes, portanto, dos comparáveis Santa Isabel, no Recife (1850); da Paz, em Belém (1878) e Amazonas, em Manaus (1896). Construído por dois comerciantes portugueses, Eleutério Lopes Varela e Estevão Gonçalves Braga, tornou-se um símbolo da grande prosperidade criada pelo algodão maranhense no crepúsculo do Brasil Colônia.
A história do teatro tem sido atribulada. Ainda em construção, arranjou uma briga com os padres, que não queriam uma casa blasfema perto da igreja. Os comerciantes trocaram a frente do prédio, que se volta para uma rua estreita. Depois de inaugurado, o União (o nome aludia ao então recém criado "Reino Unido" do Brasil e Portugal) não demorou a fechar. Permaneceu assim por vários anos, até que o governo da província o comprou e, nos primeiros anos 1850, patrocinou sua reabertura.
 O Regulamento
Em 1854, o teatro (que já tinha trocado o nome pela primeira vez, chamando-se, então, Nacional de São Luís) foi reaberto e entregue, sob contrato, a Germano Francisco de Oliveira. Havia um regulamento, que começava assim: "O edifício construído na rua do Sol, incorporado aos próprios provinciais em 28 de outubro de 1848, e destinado a servir de teatro de declamação em língua nacional, conservará a denominação que já tem de Teatro Nacional de São Luís" (Artigo Primeiro).
“Tem por objeto o Teatro Nacional de São Luís promover o aperfeiçoamento da arte dramática, quer pelo trabalho de artistas de reconhecido merecimento, quer pela escolha e representação de peças nacionais ou estrangeiras cuja ação, linguagem e moralidade possam servir de lição e ilustrar o público desta cidade”, rezava o Artigo Segundo. E continuava (Artigo Terceiro): “São permitidos os seguintes gêneros: 1. A tragédia; 2. A comédia de caráter e costumes, e a comédia ligeira; 3. O drama histórico, o drama de paixão e o drama da atualidade; 4. Óperas líricas cantadas, quer na língua nacional, quer em qualquer outra; 5. Peças avulsas destas mesmas óperas"
Farsas, entremezes
Ainda outros parágrafos do Artigo Terceiro davam permissão a "6. Danças completas com mímica e bailados; 7. Farsas, entremezes e todas as peças de cômica vulgar, não resultando delas depravações para o gosto, atraso para a boa declamação dramática e ofensa da moral, da razão e da arte; 8. Bailes mascarados unicamente pelo carnaval e em sábado de Aleluia.” (“Entremez”, uma forma de arte típica dos séculos XVI a XVIII, quer dizer farsa, ou “uma representação jocosa ou burlesca de curta duração, que servia de entreato da peça principal”, segundo o Dicionário Criativo.)
Havia, também, as disposições que tratavam da “Censura Dramática” (Artigos 29 a 34). Entre elas: “Nenhum drama, ou qualquer outra peça de declamação pode ser representado sem prévia censura”. “A censura compreende a censura literária e a censura moral”. “A censura literária e artística das peças destinadas ao Teatro de São Luís será exercida pelo Inspetor, enquanto não se criar uma conservatório dramático”.
E mais: “O objeto da censura literária", esclarecia o Regulamento assinado 1 de maio de 1854 pelo presidente da Província, Eduardo Olímpio Machado (1817-55), "é apreciar o merecimento intelectual das obras dramáticas, sustentar a pureza da língua e, quando for possível, a correção do gosto”.
Durante parte do século XX, o Teatro Arthur Azevedo foi transformado em cinema, mas voltou a cumprir sua destinação original e, às vésperas de completar 200 anos, hoje, funciona normalmente.