quarta-feira, 3 de outubro de 2018

VÁRIOS DIAS EM ANHUMAS

Gustavo Maia Gomes
(Recife, 2-10-2018)
Em 1972, a fazenda e antigo engenho de açúcar Anhumas (União dos Palmares, Alagoas), desde os anos 1930 pertencente a Benon Maia Gomes (1901-48), sua mulher, filhos e netos, foi cenário do filme "Joana, a Francesa".
Dirigido por Cacá Diegues, com Jeanne Moreau no papel-título, "Joana, a Francesa" conta a história de uma dona de bordel em São Paulo que é trazida por um "coronel" (Carlos Kroeber, o coronel Aureliano) seu cliente para o engenho de açúcar em Alagoas, de que ele era dono.
Do elenco, participaram também Pierre Cardim, o estilista, além de muitos atores e atrizes brasileiros. "Joana, a Francesa" está disponível no Youtube. Tem muitas esquisitices, como parece inevitável em filmes brasileiros intelectualizados (ou seja, chatos, pedantes), mas isso não lhe tira inteiramente o valor.
A prima Izabel Maia Gomes enviou-me há poucos dias fotos tiradas na fazenda Anhumas durante as filmagens. Uma delas mostra minha tia-avó Helena Bahia Maia Gomes (1908-2008), viúva de Benon (ela e ele avôs de Izabel) ao lado dos dois franceses famosos. Au revoir, aujourd'hui, ça va...
Anhumas está associada a muitas lembranças boas em minha vida. Não é a toa que dei ao meu livro ora em elaboração, cuja temática é semelhante à de "O Trem para Branquinha", o título que ele terá, quando impresso.

PROBLEMAS DE HIERARQUIA

Gustavo Maia Gomes
(Recife, 1-10-2018)
Às vésperas de uma escolha presidencial que pode desencadear histórias futuras antagônicas, vivemos uma situação estranha. Perigosa. De um lado, está o candidato petista. Ele pretende manter a situação dos últimos 16 anos (o hiato Temer será rapidamente esquecido; a rigor, nem precisa ser considerado). De outro, o seu único contestador DE FATO com alguma aparente probabilidade de sair vitorioso.
A situação que o candidato petista quer manter é esta: desemprego recorde, recrudescimento da pobreza, estagnação econômica, desmoralização das instituições pelo loteamento de seus cargos, corrupção generalizada, assalto aos fundos de pensão, pilhagem das empresas estatais,...
... cerceamento da liberdade de opinião, apoio a invasões de propriedade, aliança com os piores regimes da América Latina (inclusive com aquele cujo povo foge aos milhares, em busca de alimentos e papel higiênico), caos na segurança, educação básica em ruínas -- preterida pelo demagógico apoio à formação de “doutores” que mal sabem ler.
Como o partido do primeiro candidato, o PT, já fez isso antes -- sem jamais ter-se declarado arrependido --, sendo o responsável direto pela situação a que chegamos, devemos acreditar que será capaz de o fazer de novo, agora com ainda maior voracidade, pois tem sede de vingança.
Se esse cenário realista não preocupa os caros leitores, então que votemos todos em Haddad, para evitar o que teria de ser, pela força da lógica, um mal maior.
No polo oposto, está Bolsonaro. Nunca foi meu candidato. Eu queria votar em Alckmin, e o faria, se ele tivesse assumido uma postura vigorosa de oposição ao PT. Mas, Alckmin desprezou o meu voto. Contrariamente ao que penso, ele acha o “problema Bolsonaro” mais sério que a revanche petista.
Muito bem, mas em quê e a quem Bolsonaro mete medo? Qual é, afinal, o grande argumento contra ele? -- “É homofóbico”, dizem os críticos. “Despreza as mulheres”, afirmam outros. “Vai nos trazer de volta a ditadura militar”, garantem os entendidos.
Dessas acusações, ou temores, o que merece ser considerado real e o que, claramente, não passa de fantasia eleitoreira? Comecemos pelo terceiro: Bolsonaro quer trazer de volta o regime militar? Suponha que sim e pergunte, em seguida: ele será capaz disso? Existe alguma ameaça concreta de que os militares deem um golpe para se reapossar do poder no Brasil? Eles querem isso? Deram mostras de querer?
Negativo, para as quatro perguntas. Não é impossível que o perigo venha a existir, no futuro, mas isso pode acontecer tanto num governo Haddad quanto num governo Bolsonaro. Em meu palpite (só um palpite), acontecerá mais provavelmente com Haddad na presidência.
O argumento do golpe militar subsequente à vitória de Bolsonaro fica, portanto, descartado. Restam-nos as supostas homofobia e antifeminismo do único candidato que dá mostras de ser capaz de vencer o petismo.
Vamos supor, para dar curso ao argumento, que, nesses casos, as alegações sejam verdadeiras. O Brasil terá, portanto, eleito um presidente que proibirá as marchas do Orgulho LGBTI. Lamentável. Talvez, também tente impedir que algumas mulheres mostrem a bunda para o grande público, em demonstrações de militância política. Igualmente, lamentável. A bunda é delas; vê quem quer.
Mas, meus amigos, em que país vocês prefeririam viver: aquele onde faltará papel higiênico, a inflação estourará, o desemprego continuará alto, a imprensa estará amordaçada, a Petrobras voltará a ser assaltada, os presos por corrupção se tornarão ministros, a mulher sapiens fará discursos como líder do governo no Senado...
Ou vocês tolerariam melhor viver em um país onde, lamentavelmente, o presidente é retrógrado, não gosta de gays e prefere que as mulheres lutem por sua ascensão social e política usando métodos que ele julga civilizados? Eu sei em qual dos dois países eu preferiria viver, sem achar nenhum deles o ideal. Não é o mundo petista.
Acontece, meus caros, que os problemas também têm hierarquia. E uma bunda recolhida à sua privacidade, por lamentável que seja esse cerceamento ao direito universal de alguém exibir o próprio traseiro, não representa incômodo nem mesmo remotamente comparável ao de se ter uma economia em frangalhos, destruída por um governo de corruptos já identificados pela Justiça.

CARTAS AOS PARAIBANOS E OUTRAS NOTÍCIAS DE LÁ

CARTAS AOS PARAIBANOS
Gustavo Maia Gomes
João Pessoa, 28-9-2018
A sede dos Correios e Telégrafos da Paraíba, cuja construção, entre 1921 e 1924, foi comandada por Cornélio Otto Kuhn (1872-1946), irmão de minha bisavó, na ascendência materna, é realmente enorme, elegante, espaçoso e bonito. Ele foi inaugurado em 1927. Seu tamanho suscita a pergunta sobre o número de cartas que os paraibanos esperavam receber ou expedir, nos anos à frente. Eles deviam ser muito otimistas.
De tão grande, me parece, a sede dos Correios deve ter permanecido sempre subutilizada. Tanto que, em 2000, parte substancial de suas instalações foi cedida para uso da Prefeitura, que logo mudou o nome do lugar para Paço Municipal. Agora, sim. Pois, se o tamanho dos Correios depende, em teoria, do número esperado de cartas, o da prefeitura, qualquer que ela seja, será sempre maior, amanhã, do que o mais arrojado observador poderá imaginar, hoje.
Cornélio Otto deixou a obra nas etapas finais de sua construção, provavelmente, pelo agravamento de seus problemas de visão, que o deixariam cego, um pouco depois. Foi substituído por Inaldo de Carvalho Tupper, seu auxiliar, que também pediu para sair, faltando poucas semanas para a inauguração.
O magnífico edifício dos Correios e Telégrafos na Paraíba – hoje, Paço Municipal – fica na esquina das avenidas Guedes Pereira e Beaurepaire-Rohan, ladeando a Praça Pedro Américo, no centro de João Pessoa. A praça tem, em seu entorno, outros belos edifícios.

O QUARTEL
Gustavo Maia Gomes
João Pessoa, 29-9-2018
“O engenheiro militar major Cornélio Otto Kuhn chegou à Paraíba, acompanhado do primeiro tenente Inaldo de Carvalho Tupper. (...) Vem tratar da construção do novo quartel do Vigésimo Segundo Batalhão de Caçadores, que ficará situado em Cruz das Armas”, noticiava o Diario de Pernambuco, em dia próximo a 19 de novembro de 1920
O mesmo jornal informava, dois meses e meio depois, que a construção prometida se havia iniciado: “Teve lugar ontem no bairro de Cruz das Armas o lançamento da pedra fundamental do quartel do 22 Batalhão de Caçadores”.
Dizia, ainda, que as instalações ocupariam “uma área de 33 mil metros quadrados e o edifício terá quatro pavilhões de 80 metros de frente, sendo observados na sua construção os modernos princípios de higiene”.
As obras terminaram em 1925 e o quartel de Cruz das Armas ainda está lá, como Lourdes Barbosa e eu pudemos constatar. Seus ocupantes, entretanto, mudaram de nome já por duas vezes: em 1941, o 22 Batalhão de Caçadores virou o 15 Batalhão de Infantaria Motorizada.
Em 1965, esse último foi oficialmente denominado Regimento Vidal de Negreiros, “numa homenagem ao ilustre paraibano herói das batalhas dos Guararapes (1648-1649)”.
Ele não foi concluído por Cornélio Otto, entretanto. Possivelmente, devido ao agravamento dos problemas de visão, em agosto de 1924 o (então) tenente-coronel solicitou dispensa e retornou ao Rio de Janeiro, onde morava permanentemente.

BELEZAS PARAIBANAS
Gustavo Maia Gomes
João Pessoa, 29-9-2018
Uma das coisas que Lourdes Barbosa e eu aprendemos em nossas viagens para lugares próximos ou distantes foi a valorizar em cada local visitado seus pontos estética, histórica, arquitetônica ou culturalmente valiosos. Todas as cidades os têm, embora nem sempre eles sejam badalados.
Assim foi com João Pessoa. Embora meu interesse principal fosse ver e fotografar o prédio dos Correios e o quartel do Vigésimo-Segundo Batalhão de Caçadores, construídos por meu tio-bisavô Cornélio Otto Kuhn nos anos 1920, tivemos tempo de apreciar outros locais interessantes.

OS ÓCULOS
Gustavo Maia Gomes
(João Pessoa, 30-9-2018)
Por trás dos óculos tinha uma mulher
tinha uma mulher por trás dos óculos
tinha uma mulher
por trás dos óculos tinha uma mulher.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que por trás dos óculos
tinha uma mulher
tinha uma mulher por trás dos óculos
Por trás dos óculos tinha uma mulher.
...
(Troquei as pedras que dificultaram o andar de Drummond — a quem agradeço o empréstimo — pelos óculos que alegram o passar da minha vida.)

PILATOS, O LIVRO

Gustavo Maia Gomes
Recife, 22-9-2018
Uma consequência de ter parente que vai morar no Exterior é herdar sua biblioteca. São poucos os contemplados, pois, se parentes deixando o Brasil abundam, livros são raros. Eu fui. Ou melhor, ele foi, com sua mulher; eu fiquei, com a minha e os livros recebidos em doação.
Dentre esses, ataquei primeiro Nelson Rodrigues, "A vida como ela é". A releitura foi agradável; Nelson é sempre atual. "Na veia", como se dizia. Agora li "Pilatos", romance de Carlos Heitor Cony. Conta a história de um pobre coitado que, sem jamais ter sido coisa nenhuma, continuou a nada ser, depois de atropelado por um ônibus.
No hospital, lhe amputaram o pênis. Ele fica sabendo disso ao despertar do sono anestésico, pois, ao seu lado, havia duas freiras absortas num vidro de compotas com o pau dele (é a palavra que Cony usa para o ex-membro viril do acidentado) imerso em substância líquida. Devia ser o único que elas jamais haviam visto, comenta o narrador.
Aquele pau tinha nome, um nome bíblico: Herodes. E lá estava ele, exposto à curiosidade pública e privada. Já o personagem principal do romance nem nome tem. Apenas uma vez, declarou chamar-se Álvaro Picadura. Um nome inventado. Picadura ele, se tinha sido, não era mais.
Quando recebe alta, o suposto Álvaro leva consigo o vidro de compotas, sua única propriedade. A história subsequente incorpora novos personagens, todos desprovidos de passado ou de futuro, que vivem o dia a dia da absoluta miséria fazendo biscates, aplicando golpes, pedindo esmolas, furtando transeuntes, sendo presos e espancados nas delegacias.
Nos bancos da Cinelândia, uma noite dessas, o homem e seu vidro de compotas encontram Joaquim Dos Passos, que escrevia contos. Num deles, o protagonista, desiludido com as mulheres, pois vivia sendo chifrado, muda-se para Jacarepaguá, na companhia da cabra com quem passa a viver maritalmente. Mas, vejam o azar, havia um bode no quintal vizinho e a cabra fura a cerca, a fim de se enroscar com o semelhante, do que resulta o assassinato de ambos.
Da primeira vez que, no romance, Picadura e Dos Passos são presos, eles se encontram com mais dois personagens notáveis. Um velho sem nome, cuja única obsessão vem a ser apropriar-se do pau in vitro, que pensa ser uma salsicha. E o Grande Arquimandrita, alegadamente, filho do rei libanês Georges Fahmé, que organiza um governo completo com os cinco ou seis presidiários da mesma cela.
Um dia, eles são soltos, voltam para a rua, e tudo permanece sendo como sempre tinha sido. Mais para o fim do livro, o velho, em fuga após um furto mal sucedido, morre atropelado; o Grande Arquimandrita se torna informante da polícia; Dos Passos é morto por uma rajada de metralhadoras. Apenas Álvaro Picadura, que não era nem uma coisa nem outra, prossegue a sua vida nas ruas.
Nas derradeiras linhas, ele faz uma incursão filosófica. A única. Passara a noite ao léu. "O dia começava a nascer. Perto do Hotel Glória, havia um grupo de rapazes e moças que cantavam e dançavam, esticando um fim de festa. [Um sujeito ia passando e o olhou], depois apontou para o grupo que cantava diante do sol que nascia. -- Estão felizes, hem? -- Estão mal informados, respondi -- E afastei-me".
Narrado em linguagem chula, adequada ao enredo, Pilatos é um excelente livro. Exercício magistral na completa falta de modos literários. Em muitas passagens, o leitor disposto a ler palavrões vai morrer de rir com as irreverências.
Eu sempre soube que humor, quando tem qualidade, é coisa séria. Viva Cony, embora ele tenha morrido este ano.

PROPOSTAS ECONÔMICAS OU PIADAS DE MAU GOSTO?

Gustavo Maia Gomes
21-9-2018
Algumas das propostas econômicas dos principais candidatos a presidente (tais como resumidas no pernambucano Jornal do Commercio de hoje) são sensatas; outras parecem tiradas da sabedoria de Iolanda, aquela que estocava ventos e nos trouxe tempestades.
Haddad, no resumo citado, quer: (1) revogar a reforma trabalhista; (2) revogar o teto do gasto público; (3) realizar uma reforma tributária com incidência direta sobre lucros e dividendos e aumentar taxas para "spreads" maiores; (4) suspender a venda de ativos da Petrobras; (5) criar uma mesa de negociações para a reforma da Previdência.
A proposta (5) é uma maneira de dizer que não haverá reforma da Previdência, apenas conversas sobre a reforma da Previdência. As outras quatro constituem a plataforma do atraso, no melhor dos casos, ou do retrocesso, nos outros. Mas a joia da coroa é a (4) suspender a venda de ativos da Petrobras. Faz sentido: se vendê tudo, o que vai sobrá prus cumpanheiro?
Ciro Gomes, além de revogar o teto dos gastos públicos, refinanciar as dívidas de quem esteja no SPC, e investir 5% do PIB em infraestrutura (a soma disso tudo significando uma tremenda expansão fiscal) também quer “impor ao Banco Central, além da meta da inflação, a meta da taxa de desemprego”. Ele deve crer que se devia ter tentado apagar o incêndio do Museu Nacional usando gasolina, em vez de água. Se os bombeiros não o fizeram, no Rio; o Banco Central de Ciro o fará, no Brasil todo.
Bolsonaro quer privatizar estatais e usar os recursos das privatizações para reduzir em 20% a dívida pública federal. Também quer “quebrar o monopólio” da Petrobras, o que significa que não pretende privatizá-la. O pensamento militar no Brasil, a que o candidato presta continência, sempre foi estatizante. Como é que isso se conciliaria com as ideias do pretenso guru de Bolsonaro, um economista radicalmente “liberal”, eu não sei. Paulo Guedes, o Breve, tende a ser o oposto daquele auxiliar amanteigado de Dilma, que ficou no Ministério muito mais tempo do que era necessário para afundar completamente a economia brasileira.
A propósito: a ideia de usar os recursos da privatização para reduzir a dívida pública não é ruim, em tese. Já foi usada antes, como justificativa para a venda das estatais. Mas como, no modelo brasileiro, quem compra as estatais é o próprio Estado (via BNDES ou fundos de pensão das empresas públicas, controlados pelo governo), a ideia está fadada a novo fracasso. A menos que haja uma mudança drástica no modelo, o que não me parece estar contemplada no discurso.
As propostas de Alckmin são as melhores: tirar os temas econômicos da Constituição; reduzir o imposto de renda das empresas (para aumentar o investimento privado); manter o teto de gastos, enquanto (imagino eu, isso não está dito) não se completa o ajuste; promover a reforma da Previdência. (Também, fazer uma reforma tributária descomplicadora, o que a matéria do JC não menciona.)
Infelizmente, como sempre acontece com o PSDB, o discurso de Alckmin se mantém respeitosamente dentro de limites fixados pelo policiamento petista. Por exemplo, quando diz ser a favor de privatizar as estatais, “com exceção da Petrobras e do Banco do Brasil”.
O que há de tão especial com a Petrobras e o Banco do Brasil, além de serem elas duas entidades cheias de dinheiro facilmente apropriável por interesses particulares ali instalados por quem estiver no poder? E de serem muito dedicadas a beneficiar seus próprios empregados? É hora de jogar esses dogmas na lata de lixo da História.
Quero dizer: eu gostaria que tivesse chegado a hora de jogar esses entulhos populistas na lata de lixo da História, mas não estou certo que essa hora chegou. Nem eu, nem Alckmin, para não falar dos outros.

CAPITAL DO NORDESTE

Gustavo Maia Gomes
Recife, 21-8-2018
Há este slogan, "Recife, a capital do Nordeste", muito repetido na propaganda oficial. Foi criado, (ou redescoberto?) por um publicitário baiano. Seus conterrâneos se sentiram traídos. Os cearenses, tampouco, devem ter gostado muito.
O que fazer? Salvador já foi capital do Brasil. Podia apregoar isso e estaríamos quites. Mas, e Fortaleza? Não pode ficar por baixo. Tenho uma ideia, embora não seja publicitário nem, muito menos, baiano. Ei-la:
-- "Fortaleza, a capital do Banco do Nordeste".
Achou pouco? Não é: o Nordeste vive na miséria, mas o Banco do Nordeste tem dinheiro a perder de vista.

O DIA EM QUE CHURCHILL VOTOU EM STALIN

Gustavo Maia Gomes
Recife, 18-9-2018
Winston Churchill, nós sabemos, era o mais ferenho dos anticomunistas. Detestava Josef Stálin, abominava sua ditadura, repelia o regime ateísta. Eis que, um dia (22 de junho de 1941), em plena guerra naquele momento travada, de fato, apenas entre a Grã Bretanha e a Alemanha, os nazistas invadem a União Soviética comunista.
O que faz Churchill? Fica observando, à distância, indiferente? Não, vai à BBC (a rádio oficial britânica) poucas horas depois da invasão e pronuncia um de seus marcantes discursos. Para dizer, entre outras coisas, o seguinte:
“Temos apenas um objetivo e um único propósito irrevogável. Estamos decididos a destruir Hitler e todos os vestígios do regime nazista. Nada nos afastará disso. (...) Qualquer homem ou Estado que lutar contra o nazismo terá nossa ajuda. Qualquer homem ou Estado que marche ao lado de Hitler é nosso inimigo.”
Houve quem o criticasse. – Mas, você não era anticomunista? – A sua resposta, como frequentemente acontecia, foi brilhante. Sim, concordou, Stálin e seu regime eram detestáveis, mas, numa hora crítica como aquela, até mesmo essas objeções tão graves tinham de ser sacrificadas às necessidades prementes.
E completou, didaticamente: “se Hitler invadisse o Inferno, eu faria, no mínimo, uma menção de apoio ao Diabo no Parlamento”.

NO AGRESTE, COM POESIA

Gustavo Maia Gomes
(Gravatá, PE, 8/9/2018)
Ontem, no sempre agradável Portal de Gravatá, hotel-fazenda onde escrevi boa parte do livro “Velhas Secas em Novos Sertões” (Brasília, 2001), aprendi muito com Fernando Costa Cavalcanti e Felisardo Nunes Moura sobre uma das mais belas artes populares dos sertões e agrestes nordestinos: a cantoria, ou repente.
Felisardo é filho de Zé de Cazuza (nascido em 1929, na região do Cariri Paraibano, onde estão as cidades de Monteiro, Prata e Ouro Velho). Um dos maiores repentistas de todos os tempos, Zé de Cazuza se notabilizou, também, por sua memória prodigiosa, que lhe valeu o apelido de Homem Gravador. Há alguns anos, escreveu um livro de 400 páginas (“Poetas Encantadores”) contendo parte dos versos dele próprio e de terceiros que estavam em sua cabeça.
Foi uma conversa agradável e uma ocasião para ouvir histórias de Pinto de Monteiro, Jansen Filho e Zabé da Loca, entre outros. Os dois primeiros foram poetas populares; a última tocava pífanos que ela própria fabricava. Quando foi descoberta pela imprensa, já era muito idosa e pobre, morando numa gruta (ou “loca”), no linguajar local. Morreu pouco depois, em 2017.
Todos os cinco personagens (Cazuza, Pinto, Jansen, Zabé e Felizardo) são da mesma região, da qual Monteiro é a principal cidade. O filho de Zé de Cazuza também é poeta, nas horas vagas, mas, faz sucesso, principalmente, como apresentador de cantorias no Nordeste.
Também falamos sobre outro notável poeta paraibano, Ronaldo Cunha Lima, o único a quem conheci pessoalmente, no tempo em que ele era governador de seu Estado (1991-95). Figura inesquecível, sem dúvida, embora mais como artista que como político.

FORTUNAS MUTANTES E OUTRAS HISTÓRIAS DE BELÉM

FORTUNAS MUTANTES
Gustavo Maia Gomes
(20/8/2018)
Nos últimos dois dias, guiado por Lourdes Barbosa, tenho andado na Avenida Nazaré e seus arredores. Bairro de ricos, desde há mais de cem anos. Bonito. Arborizado. Cheio de mangueiras plantadas, quem sabe, por Antônio Lemos (1843-1913), o mais famoso dos intendentes de Belém do Pará.
Muitas casas suntuosas ainda se mantém de pé, em bom estado de conservação. Tipicamente, foram alugadas por órgãos públicos e é isso o que lhes têm permitido sobreviver. Outras, entretanto, viraram esqueletos em risco de desabar. Onde residiam famílias ricas, hoje há morcegos e abandono.
Fortunas mutantes.

TARZAN NA ILHA
Gustavo Maia Gomes
(20/8/2018)
No sábado, Lourdes, seu irmão Francisco, e eu atravessamos o pequeno rio que separa Belém do Combu e fomos almoçar ali. Da comida, nāo falo agora, pois não me impressionou especialmente, mas da travessia e do ambiente onde se instalou o restaurante, sim. Belos, ambos.
Trouxeram-me à lembrança sonhos antigos de viver como Tarzan, o Rei dos Macacos, que, não obstante morar nas árvores com a chimpanzé Chita, trabalhava em Hollywood. Um dia, alguém achou que aquele celibato amacacado não pegava bem e arranjaram a Jane para o Tarzan. (A mulher, vou te dizer, era de parar o trânsito leonino da África inteira.)
O lado triste dessa história se passou com Chita. Sentindo-se preterida, procurou um analista, que a manteve em tratamento durante vinte anos. Quando morreu, de velhice, estava melhorando. Nesse meio tempo, nas minhas fantasias sexuais, substituí Jane por Brigitte Bardot e arquivei os sonhos de morar trepado nas árvores. Até ontem, quando senti as velhas lembranças de novo me assaltarem.
Fui salvo por um bolinho de maniçoba, oferecido por Lourdes Barbosa, que me trouxe de volta à realidade.

CASA DA LINGUAGEM
Gustavo Maia Gomes
(Belém, 20/8/2018)
Descobrimos hoje, Lourdes Barbosa e eu, em nossas andanças, a Casa da Linguagem. Fica na esquina da Avenida Nazaré com a Praça da República. É uma instituição pública onde há biblioteca, livraria, estúdios para aulas de música e coisas tais.
Funciona no belo prédio construído em 1870 para servir de residência ao coronel Francisco Bolonha e sua família. Em 1918, no mesmo endereço, passou a funcionar o Grupo Escolar Floriano Peixoto, que ainda ocupa parte das instalações.
Em 1991, quando Hélio Gueiros era o governador, a edifício foi restaurado para abrigar a Casa da Linguagem. A boa notícia é que, ainda hoje, ele se encontra em perfeito estado de conservação. Isso nos deixou satisfeitos, a Lourdes e a mim.

ERA UMA VEZ A PARIS DA AMÉRICA
Gustavo Maia Gomes
(Belém, 20/8/2018)
Em 1909, o português Francisco de Castro inaugurou sua casa comercial "Paris n'América", na Rua Santo Antônio, centro de Belém. Trouxe da Europa inspiração, projeto arquitetônico e materiais. Tudo do bom e do melhor.
A loja deveria se tornar um ponto de encontro da elite local, como as Galerias Lafayette, da capital francesa. A decoração art noveau incluía uma escada de que Belém poderia se orgulhar, até mesmo, diante de visitantes europeus.
Lamentavelmente, em 1912, a fantástica prosperidade fundada na borracha foi interrompida por uma crise profunda, da qual a região e a cidade jamais se recuperariam. E, aos poucos, a Paris n'América foi afundando.
Cento e dez anos passados, a loja agora se chama Tecidolândia. (Alguma coisa muito errada aconteceu a um lugar que de Paris n'América passou a Tecidolândia.) As ruas e calçadas em torno dela abrigam um número infinito de tendas com roupas penduradas. Um horror.
O desolador destino da Paris n'América é somente um símbolo de tudo que de urbanisticamente desastroso aconteceu na capital paraense, ao longo do século XX. O centro da cidade é, hoje, um inferno dantesco. Mas isso não aconteceu apenas devido ao desastre da borracha. Pior, talvez, foi o inacreditável crescimento da população pobre vivendo em Belém.
Poderia ter sido diferente? Talvez, sim. Se tivesse havido um mínimo de ordenamento urbano, a invasão dos espaços nas belas ruas centrais de Belém não teria acontecido com a mesma intensidade.
Todos se teriam beneficiado, inclusive os mais pobres. Mas isso é chorar sobre o leite derramado. A desgraça foi feita. Corrigi-la, tomará muito tempo. Isso, na hipótese de que, um dia, as coisas deixem de piorar.

AINDA SOBRE DECADÊNCIA URBANA
Gustavo Maia Gomes
(Belém, 21/8/2018)
Publiquei, ontem, texto e fotos da Santo Antônio, até meados do século XX, uma elegante rua em Belém. E da outrora sofisticada loja Paris n’América. Não são mais o que foram: o estado atual de ambas é de impressionante degradação.
Belém não está sozinha, no Brasil, a esse respeito. O Recife, Salvador, São Paulo e o Rio apresentam quadros parecidos. Mas, calma, a podridão não é o destino inevitável das grandes cidades. Mesmo sem falar na Europa ou nos Estados Unidos, onde problemas houve — mas foram mitigados, por exemplos, em Londres ou Nova York —, há que referir a cidades como Montevidéu e Buenos Aires. Em nenhuma das duas encontrei centros tão destruídos como os nossos.
A Rua Santo Antônio, em Belém, com a Paris n’América, poderia ser comparada à Calle Florida de Buenos Aires, com o Florida Gardens, um café. Vejam como eram as duas ruas, na primeira década do século XX (fotos em preto e branco) e como ficaram elas, cem anos depois (fotos coloridas). A Florida ainda é uma calle alegre, bonita, limpa, urbana; a Santo Antônio transformou-se em pesadelo.
E olhe que os argentinos também tiveram um monte de governos ruins, péssimos, desastrosos...

QUATRO LIVROS E UM CARTÃO (DE CRÉDITO)
Gustavo Maia Gomes
(Belém, 22/8/2018)
"Viajar é comprar livros", disse Washington Luís. (Se não o fez, deveria.). "Uma biblioteca se faz com livros e dívidas", afirmou Monteiro Lobato. (Engano-me de novo, não importa.) Por isso, comprei, em Belém, na base do “levo hoje, pago amanhã”, quatro livros escritos por autores da região Norte. Sem tê-los, ainda, lido, dois me deram impressão inicial, especialmente, boa.
São eles: "Ficções do Ciclo da Borracha", de Lucilene Gomes Lima, e "1932: A Revolução Constitucionalista no Baixo Amazonas", de Walter Pinto de Oliveira. Também devem ser bons Emir Hermes Bemerguy, "Enquanto eu me Lembro", e Franciane Gama Lacerda e Maria de Nazaré Sarges, orgs., "Belém do Pará. História, Cultura e Cidade".
Tenho interesse na Amazônia há bastante tempo. Até já escrevi um longo texto sobre a região, em co-autoria com Jose Raimundo Vergolino. Foi publicado, em edições separadas, pelo Ipea e pela Sudam. Isso, há uns 20 anos. Meu próximo livro, depois de "Uma Noite em Anhumas", que ora redijo, será escrito a quatro mãos com Lourdes Barbosa e versará, principalmente, sobre a saga da borracha no Pará.
É bom saber que os cursos de pós-graduação em História oferecidos pelas universidades federais, sobretudo, no Amazonas e no Pará, estão começando a render seus frutos. Três dos quatro livros que comprei nos últimos dias foram escritos por alunos formados nesses cursos, ou por seus professores. A única exceção é "Enquanto eu me lembro".

ASSIM É A SÉ
Texto editado por Gustavo Maia Gomes
22/8/2018
A Igreja da Sé, ou de Nossa Senhora da Graça do Pará, teve sua construção iniciada em 1749. Seis anos depois, o terceiro bispo do Pará, D. Frei Miguel de Bulhões, “benzeu” a catedral, edificada desde a porta da rua até o arco da capela mor.
O “benzeu” daí de cima está entre aspas no original, um texto tirado do site da igreja. Não vão dizer que fiz ironia. Seguem-se várias parágrafos incompreensíveis, até que encontro referências a dois nomes conhecidos.
Antonio Giuseppe Landi, arquiteto italiano que deixou muitas obras em Belém, “ainda chegou a decorar o Santíssimo [altar?] na futura igreja da Sé, mas a construção foi interrompida entre 1761 a 1766, por falta de verbas. Em 1766, Landi voltou à igreja e (...) os trabalhos recomeçaram”.
Prossegue o texto: “Em meados de 1867, tem inicio o aformoseamento da Catedral, por vontade de D. Antonio Macedo Costa, 10º. Bispo do Pará: nessa ocasião sua decoração interior foi muito alterada”.
Dom Macedo Costa eu também conheço. Ele foi, junto com Dom Vital, arcebispo de Olinda, personagem central da chamada Questão Religiosa, de 1872-75, uma disputa entre a Igreja Católica e o Império brasileiro em torno da Maçonaria. Os dois religiosos chegaram a ser presos.
A cerimônia de Sagração da nova Catedral, continua o informe, ”no dia 1º de maio de 1892, foi assistida pelos bispos do Maranhão e do Ceará, além de D. Jerônimo Tomé da Silva, sucessor de D. Macedo Costa”.
Finalmente, fiquei sabendo que “o altar principal da Catedral de Belém é, hoje, todo de mármore e alabastro [tendo sido] confeccionado em Roma pelo escultor Luca Carimini. Sua santidade o Papa Pio IX doou o mármore necessário à confecção do altar”.
Embora o site da catedral não afirme isso, ouvi numa matéria da TV Liberal que essa igreja foi a maior que os portugueses construíram fora da Europa. Ela é, além disso, muito bonita.
Benzeu, Lourdes Barbosa?

TORDESILHAS EM BELÉM
Gustavo Maia Gomes
(24/8/2018)
Lourdes Barbosa, seu irmão Carlos, e eu fomos visitar o Instituto Histórico e Geográfico do Pará, na Cidade Velha de Belém, e lá fizemos uma descoberta notável: a do marco relativo ao Tratado de Tordesilhas. Fica na praça Pedro II, em frente ao Instituto.
Soube o que era aquilo -- nada além de uma pedra semi-enterrada -- por Carlos, e jamais teria desconfiado, de outra maneira, pois o marco sofre de um anonimato atroz: não tem nome, nem qualquer indicação de porque lhe puseram ali.
Deveria ter, pois trata-se de algo importante. Afinal, se o tratado tivesse sido obedecido e, mesmo assim, Belém existisse, durante algum tempo, pelo menos, ela teria sido uma cidade cortada em duas metades, uma espanhola e a outra portuguesa. No pior pesadelo, hoje, a Venezuela terminaria no Mercado Ver-o-Peso, lugar simbólico de Belém.
Imaginem as pessoas serem obrigadas a ouvir os discursos de Maduro sem ter como comprar o indispensável papel higiênico.
(PS. O Tratado de Tordesilhas, de 1494, dividiu o Novo Mundo entre Portugal e Espanha. A identificação do monumento como sendo um marco desse tratado foi feita pelo pesquisador Aurelino Santos Jr. Aparentemente, ele contou com o respaldo de outros historiadores, mas é possível que ainda exista alguma incerteza quanto a isso.)

ÚLTIMO BALUARTE?
Gustavo Maia Gomes
(25/8/2018)
Lourdes Barbosa e eu visitamos a Basílica de Nazaré, em Belém, no dia 17/8. Grande, bonita e muito frequentada por fieis. Uns se benzendo, resmungando orações; outros, tocando as imagens; todos, pedindo milagres.
Os paraenses vão às ruas, anualmente, em outubro, no que talvez seja a maior concentração humana numa cerimônia religiosa em todo o mundo: a procissão do Círio de Nazaré. A Basílica é o ponto terminal do acontecimento.
Já observei a passagem do Círio, anos atrás. Por um lado, é impressionante; por outro, pareceu-me que as multidões são sempre iguais. De qualquer forma, o Círio, a festa de Aparecida, em São Paulo, e as romarias ao Juazeiro do Padre Cícero, no Ceará, talvez sejam os últimos baluartes do Catolicismo de massas no Brasil.
Podem não durar para sempre, pois a competição é grande. No mercado de grandes concentrações temporárias de pessoas, não são apenas as igrejas evangélicas empresariais que estão ameaçando o antigo monopólio católico. Há concorrentes, até recentemente, inimagináveis.
Por exemplo, ainda se juntássemos num só lugar o Círio, as romarias a Aparecida do Norte e as do Padre Cícero, ainda teríamos menos gente que na Parada Gay de São Paulo. Nada contra, nem a favor. Faço, apenas o registro. Não deixa de ser um sinal dos tempos.

CASAMENTO E FUNERAL

Gustavo Maia Gomes
(16/8/2018)
Descobri, pesquisando o jornal "O Paiz", do Rio de Janeiro, (24/10/1914, pág. 5) duas notícias, uma junto da outra, dando conta: (a) do casamento de meus avôs Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa (1889-1936) e Olga Dias Cardoso (1895-1978), ocorrido em Santa Rita, PB; e (b) da morte de Julio Roca (1843-1914), que foi duas vezes presidente da Argentina.
Meu interesse em resgatar a história dos antepassados já é conhecido, mas o que tem Julio Roca a ver com isso? A resposta é que, em 2017, Lourdes Barbosa e eu visitamos, na Argentina, nossos amigos Atilio Elizagaray e Mirta Freccero. Por eles, fiquei sabendo do livro "Soy Roca", de Félix Luna. Veio a ser um dos melhores livros que li em toda a minha vida -- e olhe que disputou com, pelo menos, mil outros, lidos ao longo dos últimos 60 anos.
Meu entusiasmo pelo livro de Félix Luna foi tal que escrevi uma longa resenha sobre ele. Nunca tentei publicá-la. Afinal, "Soy Roca", escrito em 1989, já era um livro velho, quando o li. Pareceu-me que a tal resenha despertaria pouco interesse. Alguns amigos, como os já citados e Paulo Roberto de Almeida, lerem o texto e, aparentemente, também gostaram da história contada em "Soy Roca".

OLGA SEM FOLGA

Gustavo Maia Gomes
(26/6/2018)
Sempre a conheci trabalhando. Administrando a casa enorme, com um quintal correspondente; cuidando de que as refeições fossem preparadas e servidas; fazendo doces e geleias, ou levando e trazendo do sol a tábua com umas cinquenta bananas, postas para secar e virarem passas.
Olga Dias Cardoso (1895-1978), que trocou os sobrenomes para Cardoso Pedrosa com o casamento, minha avó materna, perdeu o marido ainda jovem. Teve de dar conta sozinha das quatro filhas e dois filhos. (A mais velha de todos, Maria do Carmo, mal tinha feito 20 anos, quando o pai morreu.)
Muito religiosa, lia O Semeador, jornal da Diocese de Maceió, e ouvia a Difusora de Alagoas no seu rádio Mullard (acertei o nome, Marcus Antonio Pedrosa Ferreira?) Escrevia cartas, num escritório só dela, o primeiro cômodo da casa. Suas quatro filhas, todas, se casaram. Os filhos homens, também.
Morreu em paz, há quarenta anos.

JOSEFINA E AS MULHERES NO MUNDO DOS ENGENHOS

Gustavo Maia Gomes
(20/5/2018)
Em várias passagens de “O Trem para Branquinha”, discuto a condição feminina na sociedade canavieiro-açucareira do Nordeste Oriental entre os últimos anos 1800 e os primeiros 1900. Esse não é um tema novo, mas a forma como o trato no livro foge um pouco da abordagem mais comum. Eis um extrato editado do Cap. 17 (“Josefina e o engenho mal assombrado”, págs. 257 e ss), que trata de minha bisavó Josefina Cristina Amélia Quanz (1869-1922). Daqui para baixo, tudo é citação de “O Trem”.
“Esse depoimento sobre a Vovó Fifi [contido nas Memórias de Heloisa Pedrosa (1916-2007), irmã de minha mãe, Stella (1917-2001)] deixa a clara impressão de que as mulheres das classes média e alta do Nordeste litorâneo canavieiro não tinham, realmente, vida própria fora do circuito familiar ou, no máximo ‘familiar ampliado’, como nos compadrios de Josefina com os funcionários da fábrica Tibiri [em Santa Rita, PB, onde trabalhou o marido dela, engenheiro Francisco Dias Cardoso]” (pág. 262).
Mas, elas não reclamavam, continua o texto: “Não há qualquer registro de que aquelas mulheres lastimassem a sua condição. O que elas queriam era serem valorizadas pelo acatamento dos costumes, pela fidelidade ao marido, a domesticação das filhas (mais que dos filhos), a observância religiosa, a boa administração das empregadas domésticas, as habilidades na costura e bordados, no piano, o carinho com os netos” (pág. 263).
“Hoje em dia”, escrevi, “depois de tanta agitação feminista, parece inquestionável que o mundo de Josefina desvalorizava a mulher. Minha mãe foi uma das poucas, em seu tempo, a perceber isso com clareza – mas, sem que daí se seguisse revolta ou tentativa séria de mudar a própria situação. Dizia que a pior opressão da humanidade não fora a dos negros pelos brancos, a dos pobres pelos ricos, ou a dos descrentes pelos religiosos e, sim, a da mulher pelo homem. Stella, porém, era distintamente mais inteligente do que a quase totalidade das mulheres de sua família, seu lugar, seu mundo” (pág. 263).
“Em quê, dando agora exemplos concretos, aquela sociedade relegava o elemento feminino a um status de segunda classe, submisso, irrelevante?” Assim prossigo, no Cap. 17: “não quero me restringir ao duplo crivo da moral sexual, que punia as mulheres com máxima severidade à menor transgressão e era leniente com os homens, até mesmo em face dos pecados mais graves. Essas disparidades, importantíssimas, sim, creio que já tinham sido percebidas como fatos da vida, naturais, imutáveis (e aceitos por homens e mulheres), em tempos tão remotos quanto os da Vovó Fifi” (pág. 263).
Refiro-me – continuo no texto – “a que todas as atividades cujo desempenho exitoso gerava reconhecimento social amplo – na forma de dinheiro, notoriedade, reputação, influência muito além das fronteiras familiares – eram reservadas aos homens. Somente homens podiam se tornar políticos destacados, escritores de renome, advogados brilhantes, padres, monsenhores, bispos e arcebispos reconhecidos, senhores de engenho donos do mundo e das pessoas. (Aqui, havia exceções: se o marido morria, às vezes, suas mulheres assumiam e davam conta da tarefa de gerir as propriedades e sustentar os filhos com seu trabalho. Mas eram exceções.) Às mulheres era vedado, se não a todas, à imensa maioria, até mesmo ganharem o próprio dinheiro, ter independência financeira” (págs. 263-4).
“Um sociólogo das relatividades poderia contra-argumentar que o papel das mulheres em universos sociais como aquele em que viveu Josefina Quanz não era menos importante que o dos homens. Que, sem a valorização da maternidade, por exemplo, nenhuma organização social duraria muito tempo. Que as mulheres tinham responsabilidades não menores que a dos homens na sustentação daquele mundo deles: cuidar dos filhos, administrar as casas, costurar as roupas. Penso que esse argumento é verdadeiro e falso. Mais falso que verdadeiro. A ‘valorização social’ da maternidade, em grande medida, era um engodo, uma sugestão às mulheres de que elas deviam permanecer passivas parindo os filhos que, talvez, nem desejassem. Morrendo, muitas vezes, do quinto, sexto ou sétimo partos” (pág. 264).
“Ao assumirem o discurso que enaltecia o seu papel de procriadoras (ao mesmo tempo em que lhes fechava todas as outras portas), as mulheres mordiam a isca, conformavam-se com sua posição secundária, e mantinham intacto o mundo que os homens haviam criado para o desfrute deles, não delas, nem de ambos. O que lhes sobrava, às mulheres? Cuidar dos filhos? Administrar as casas? Costurar? Todas essas eram tarefas de segunda classe, tanto que, em larga medida, podiam ser delegadas a gente sem instrução, que nem ‘branca’ precisava ser. ‘Vovó Fifi tinha muita sorte com as empregadas’, registrou Heloisa Pedrosa [em suas Memórias], considerando isso um fato tão importante (e era!) que não podia deixar de ser mencionado” (págs. 264-5).
A discussão se estende, em “O Trem para Branquinha”, por mais algumas páginas, no citado Capítulo 17 e em outros. Paro por aqui, pois não quero lhes tirar o prazer de comprarem o livro e o lerem. Lançamento em Maceió nesta quinta-feira, 24/5, a partir das 18:30, na Livraria Leitura, Parque Shopping.

CORNÉLIO VAI, JUDITH VEM

Gustavo Maia Gomes
(Recife, 15/5/2018)
Em 1889, ou ano muito próximo desse, Cornélio Otto Kuhn (1872-1946) saiu do Poço da Panela, arrabalde do Recife onde nascera, e foi morar no Rio de Janeiro. Entrou no Exército, formou-se em engenharia, casou-se por lá com Maria Luíza Rieken, e a Pernambuco nunca mais voltou, exceto em passagens muito breves.
No Recife, ficaram seus pais Leonardo Kuhn e Maria Margarida Gertner, além da irmã, também chamada Maria Margarida (1864-1947). Esta última era, então, recém-casada com Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa. Os dois viriam a ser meus bisavôs.
Cornélio Otto e Maria Luíza tiveram três filhos, no Rio de Janeiro: Edith Luíza, Leonardo Otto e Maria Luíza. O quarto, Dagoberto Otto, temporão, nasceu na Paraíba, como era chamada a atual João Pessoa, onde seus pais moraram de 1920 a 1924 — Cornélio em missão militar. Antes disso, no Recife (e, em seguida, em Santa Rita, Paraíba, para onde se mudaram em 1899), Maria Margarida e Manoel Sebastião tiveram os filhos Manoel Sebastião II, Antônio Leonardo e Maria Alice.
Como Maria Margarida Kuhn nasceu oito anos antes do seu irmão Cornélio, foram as netas mais velhas dela (Maria do Carmo, Heloisa e Maria Stella) que se tornaram companheiras das primas cariocas Edith e Maria Luíza, nos primeiros anos 1920, quando todas elas — e, nas férias escolares, também Leonardo Otto — moraram na Paraíba, Estado. Aquela foi uma época de convívio intenso e agradável, de que Heloisa recordaria saudosa em suas memórias familiares.
Depois de 1924, entretanto, a separação entre os dois ramos de descendentes de Leonardo Kuhn se tornou quase total. Heloisa esteve no Rio de Janeiro em 1935 (possivelmente, com Maria do Carmo) e visitou os Kuhn de lá. Maria Stella (minha mãe) fez o mesmo em 1941. Felizmente, registros fotográficos dessas viagens foram conservados. Estão comigo.
Em 1946, recém casada, Heloisa visitou seus parentes cariocas. Cornélio Otto ainda era vivo, não por muito tempo. Esse pode ter sido o último encontro dos Kuhn-Pedrosa (que ficaram no Nordeste) com os Kuhn-Rieken (que nasceram e permaneceram no Rio de Janeiro). Aconteceu há 72 anos.
O último encontro, ressalvo, até ontem à noite. Pois se, em 1889, Cornélio Otto Kuhn foi do Recife para o Rio de Janeiro, em 2018 — cento e vinte e nove anos depois! — sua neta Judith Kuhn, filha de Dagoberto Otto, fez o percurso inverso e veio, como se fora a la recherche du temps perdu, do Rio para o Recife. Trazendo a bela Isa, quero dizer, a Isabella, sua filha.
Não que tenham vindo, as duas, Judith e Isabella, carregando seu matulão, ou seja, de mala e cuia, de mudança. Não importa: vieram para ver os parentes que a geografia havia separado sem apagar os laços afetivos que, nalgum recôndito, continuaram a existir. E deram ensejo ao reencontro de quem, a rigor, jamais havia se encontrado antes. Que bom!
Tivemos, assim, um jantar agradável no restaurante Entre Amigos de Boa Viagem (Zona Sul). Comida excelente. De Maceió, vieram Marcus Antonio Pedrosa Ferreira e seu irmão Alfredo, filhos de Maria do Carmo. Do Recife, estivemos presentes Lourdes Barbosa (minha mulher), Gabriela (filha) e eu.
Foi, com certeza, uma noite digna de entrar na nossa história, a história dos descendentes de Leonardo Kuhn (suíço que, em 1850, trocou Zurique pelo Recife) e de Maria Margarida Gertner, filha de alemães nascida no Brasil.