segunda-feira, 31 de julho de 2017

Desconhecidos de San Telmo

Gustavo Maia Gomes

Ocorreu-me fazer, em Buenos Aires – mais precisamente, no Mercado de San Telmo – o que nunca havia feito antes, em lugar nenhum: examinar montanhas de fotografias de gente, para mim, desconhecida. E comprar, por míseros dois pesos, as que me pareceram mais significativas. Pensava em escrever sobre as pessoas que elas retratam. Para quê? Não sabia. Nem sei.
Umas poucas fotos contêm lacônicas anotações. Com os nomes dos personagens: “A mi inolvidable amigo H. Sottocorno. Eduardo Blanco, 11/1/44”; “Carinhosamente a tia y primitos, Iruna, 7/26/49”. Com indicações de lugar e data: “Mar del Plata, 1939”; “Lucerna (Suiza), 3/9/1953. Sobre el puente”. Declarando apenas a data, completamente especificada: “18/6/39”, “Lunes, 24-12-1951”; ou limitada ao ano: “1936”, “1939”.
Publico essas fotos como um tributo. Por trás das imagens, em algum momento, em algum lugar, houve pessoas. Pela idade que aparentavam nos anos declarados, já devem estar mortas. Ademais, viveram, provavelmente, na Argentina, a seis mil quilômetros de onde me encontro agora. Não sei que significação tais pessoas poderiam ter para mim. De alguma forma, entretanto, passaram a ter.
Saudações, Iruna, Eduardo Blanco, 1936, 1939...

(Publicado no Facebook em 28/7/2017)
No verso: “A mi inolvidable amigo H. Sottocorno. Eduardo Blanco, 11/1/44".

No verso: “Carinhosamente a tia y primitos, Iruna, 7/26/49”.

No verso: "18/6/39".

No verso: "Mar del Plata, 1939".

No verso: “Lucerna (Suiza), 3/9/1953. Sobre el puente".

No verso: "Lunes, 24/12/51".

Apenas "1936".

Vizinhos póstumos

Gustavo Maia Gomes

Dois brasileiros antagônicos que nunca se viram enquanto vivos se tornaram vizinhos depois de mortos. Explico: às margens do Rio da Prata, na Ciudad Antigua de Montevideo, existem, a poucos metros de distância, um monumento a Irineu Evangelista de Souza (1813-89), o Barão / Visconde de Mauá, e um "Espaço Livre" com o nome de Luís Carlos Prestes (1898-1990), o mais notório dos comunistas brasileiros.
Mauá foi um grande empresário. Suas realizações incluem a primeira fundição de ferro e estaleiro no Brasil (1846); a exploração dos transportes com barcos a vapor dos rios Amazonas e Guaíba (1852); a criação do terceiro Banco do Brasil (1853); a construção da primeira ferrovia brasileira (1854); a iluminação pública a gás na cidade do Rio de Janeiro (1854); e a instalação do cabo submarino telegráfico entre a América do Sul e a Europa (1875). No Uruguai, fundou um banco e se envolveu na política, em favor dos liberais. (Wikipedia)
Luís Carlos Prestes foi um militar, engenheiro e político. Participou da revolta tenentista de 1924; liderou, em seguida, a marcha dos derrotados pelo centro do país (a chamada Coluna Miguel Costa – Prestes); exilou-se na Argentina e no Uruguai, de onde se mudou para a União Soviética. Nessa época, tornou-se comunista. Voltou para o Brasil, clandestinamente, para liderar a intentona de 1935. Foi presidente do Partido Comunista Brasileiro e jamais fez autocrítica pela longa adesão a Stálin.
Mauá construiu; Prestes tentou destruir. (Idealmente, para, em cima dos destroços, construir uma sociedade melhor.) Os dois se relacionaram, em determinados momentos de suas vidas, com o Uruguai. Montevidéu homenageou a ambos. Se tivesse de escolher, eu ficaria com Irineu Evangelista de Souza. E o leitor?

(Publicado no Facebook em 28/7/2017)

Cavalos, baratinha e city tour

Gustavo Maia Gomes

Adolfo Alsinia Filho era filho de Dom Pedro Romariz Duarte y Yrigoien, domador de cavalos em Rio Encima. Sua mãe nunca lhe explicou por que ele, sendo filho de Dom Pedro Romariz Duarte y Yrigoien, chamava-se Adolfo Alsinia Filho.
O menino tomou gosto pela profissão do pai e a fez sua. Ganhou enorme reconhecimento. Logo, havia domado todos os cavalos de Rio Encima, razão pela qual mudou-se para Rio Abajo. Foi onde seu talento desabrochou definitivamente.
Passou a amestrar não apenas cavalos, mas bois, burros, tartarugas e tigres. Dos últimos, quebrava uma perna, para os transformar em tigres de bengala. Só os jumentos lhe resistiam. Intelectuais de esquerda, nada lhes fazia mudar de hábitos.
Depois disso, o filho de Dom Pedro Romariz Duarte y Yrigoien ensinou uma baratinha a dançar, balançar a cabeça, rodopiar sobre si mesma. Passaram-se seis meses, mas o bichinho aprendeu. Com esta barata, vou ficar rico, pensou Adolfo.
Mudou-se para Buenos Aires. Instalou-se em frente à Casa Rosada. Anunciou as maravilhas que todos iriam ver. Depositou a baratinha no chão. O primeiro homem que viu aquilo soou o alarme: – Uma barata! – E a esmagou com a sola do sapato.
Adolfo não desistiu. Ensinou um macaco a perguntar pelo ônibus de city-tour. Mas, o bicho tinha deficiências, nunca aprendeu coisa nenhuma. Aquele foi o último desafio do domador de cavalos e ele o perdeu.

(Publicado no Facebook em 26/7/2017)

Um igual a seis

Gustavo Maia Gomes
Ontem (24/7/2017), compartilhei recorte publicado no Facebook por Carlos Linhares, empresário na Bahia. Anúncios de concursos para promotor de justiça estadual (no Rio Grande do Sul, salário R$ 22.213,44); e para médicos, em várias especialidades (município de Caxias do Sul, no mesmo Estado, salário R$ 3.291,54). Está provado assim que, no Brasil austral (mas, não apenas lá), um promotor vale seis médicos.
É sabido que divergências salariais extremas existem no setor público brasileiro e elas não se limitam ao caso acima. Sem ser novidades, são escandalosas. Ainda mais chocante é vê-las expostas no mesmo Estado, no mesmo dia, na mesma página de jornal — um anúncio ao lado do outro. De onde veio isso?
No setor privado, os salários se determinam no mercado (oferta, demanda), sujeito a condicionantes "políticas" (leis trabalhistas). Proporções? Estimativa grosseira: 80% mercado; 20% política. No governo, as percentagens se invertem: política, 80; mercado, 20.
Isso dito, passo aos fatos. O que houve no Brasil, após 1985, foi um gradual, mas intenso, fortalecimento do poder político de certos grupos profissionais. Limitando-me ao setor público, destaco os casos de procuradores, promotores, juízes, deputados, senadores, auditores fiscais... Todos esses, nem eram, mas ficaram muito fortes, desde o fim do regime militar.
Com o Judiciário desfrutando de completa autonomia (ao contrário do que ocorria antes), os fazedores e os executores de leis passaram a ter medo de procuradores e juízes. Portanto, demandas por salários estratosféricos e por mais dinheiro para os tribunais passaram a ser atendidas sem qualquer apelação.
Com o direito à greve, na prática, garantido aos funcionários públicos, também após 1985, aqueles grupos profissionais cujo trabalho é diariamente vital para o funcionamento do governo (por exemplo, os cobradores de impostos) logo perceberam que podiam ganhar – como ganharam – todos os aumentos salariais que pleiteassem. Nem preciso falar de deputados e senadores, detentores diretos de poder, num regime democrático. Esses decretam seus próprios rendimentos.
Em contraste, os funcionários públicos de outras qualificações – cujo poder político revelou-se incomparavelmente menor – foram ficando para trás. Médicos, professores, acendedores de lampiões podem paralisar atividades, mas a vida segue "normal" sem seu trabalho. Já houve greves de até seis meses em universidades públicas brasileiras. Os alunos foram muito prejudicados, mas os professores não ganharam coisa nenhuma.
Nos anos petistas da Grande Destruição, 2003-2016 (Paulo Roberto de Almeida), um novo elemento se agregou a esse quadro: na ânsia de conseguir votos distribuindo favores, o governo aumentou substancialmente os salários dos funcionários públicos em geral. Isso teve consequências específicas (por exemplo, tornou aguda a assimetria entre as aposentadorias "públicas" e "privadas"), mas não afetou as disparidades de ganhos entre os servidores públicos.
De todo modo, temos um monte de problemas nessa área. Se, um dia, chegar ao fim a fase atual de denúncias e condenações dos corruptos, com as cadeias enchidas e as retóricas esvaziadas, teremos oportunidade e necessidade de pensar sobre essas coisas. Inevitavelmente, ao fazê-lo, estaremos refletindo sobre as "regras do jogo". Com alguma probabilidade (política) de implantar regras melhores?
Não sei, mas aceito palpites. Meu amigo argentino, Atilio Elizagaray, pessoa de alta competência, com quem tenho conversado muito estes dias, acha que o Brasil tem mais chances do que seu país de resolver esses e outros problemas fundamentais (dentre os quais, o pior deles, a tentação populista). Eu não tenho tanta certeza.

(Publicado no Facebook em 25/7/2017)

Agujeros malditos

Gustavo Maia Gomes
Estoliana é um município localizado entre Pirauá, Paraíba, e Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais. Seu prefeito, Frederico Ferreira Freire, mal consegue dormir: a cidade tem cinco mil buracos; o cofre da prefeitura, dez tostões.
Visitando Buenos Aires, Frederico aprendeu que, em espanhol, há duas palavras sinônimas: buraco e agujero. Veio-lhe a ideia de reduzir pela metade e instantaneamente o problema da sua cidade. Editou um decreto. Doravante, o que houvesse no lado direito das ruas se chamaria buraco; no lado esquerdo, agujero.
Com isso, sonhava se reeleger. Deu errado. O lado direito de quem vem é o lado esquerdo de quem vai. Não apenas os buracos de Estoliana continuaram os mesmos, como a cidade ganhou cinco mil agujeros. Na eleição seguinte, nem a própria família votou em Frederico Ferreira Freire.

(Publicado no Facebook em 24/7/2017)

Um, dois, feijão com arroz

Gustavo Maia Gomes
Passeando por uma cidade onde nunca estivera antes, Eduardo se sentia feliz. Comentava com Júlia sobre cada coisa que viam: os parques apinhados de gente, as pessoas com quem cruzavam, os altos edifícios erguidos ao lado das calçadas.
Dez andares acima, no seu apartamento, Fernando e Eudócia discutiam. Logo, a briga se tornou séria. Num dado instante, a mulher arremessou violentamente um objeto de vidro na direção do marido. Ele saiu da frente. A garrafa perdeu-se no espaço lá fora.
Acertou a cabeça de Eduardo que morreu na calçada respingando Júlia de sangue.

(Publicado no Facebook em 22/7/2017)

Glamour

Gustavo Maia Gomes

A gastronomia contemporânea enfatiza a aparência, mais que o sabor das comidas. Afinal, as pessoas vão aos restaurantes fotografar os pratos, não comê-los. Recentemente, produziu-se o seguinte diálogo entre cliente e garçom:
— O que o chef recomenda?
— Antes de tudo, o Montalverne de Croquis Empanados com Conversa Mole ao Emolumento Picante.
— O que é isso?
— Um prato com um volume central muito escuro, rodeado de figuras geométricas de cor marrom. É lindo.
— Não tem algo mais colorido?
— Ah, sim, e com mais variedade de formas, também. É o Pinturesco Tratiforme Pontilhado de Acetatos ao Arco Iris.
— Parece ótimo, mas, tem gluten?
— Não sei. Sua câmera é alérgica?

(Publicado no Facebook em 21/7/2017)

São iguais todos os ratos?

Gustavo Maia Gomes

Aconteceu num aeroporto. O alto falante berra:
— José da Silva. Voo para Miami. Compareça ao portão 6. Embarque imediato. Última chamada.
Não era a última chamada. Poucos minutos depois, a mesma voz estridente:
— José da Silva. Voo para Miami. Compareça ao portão 6. Embarque imediato. Última chamada.
E assim por mais duas ou três vezes. Foi quando percebi que o tal José da Silva estava sentado ao meu lado. Não me contive:
— Estão lhe chamando.
— Eu sei.
— Não vai?
— Não.
Achei estranho, mas permaneci calado. Foi ele quem completou.
— Eu não queria ir. Os amigos me convenceram. Disseram que lá é bom, que Mickey Mouse mora perto, que todo mundo vai.
— E então?
— Eu estava aqui me sentindo um imbecil. O Brasil está cheio de ratos. Eu lá preciso pegar um avião para ver um deles? Desisti.

(Publicado no Facebook em 17/7/2017)

O pilar da falsidade

Gustavo Maia Gomes
Em artigo curto, mas importante ("A utopia de Lula e do PT acabou", O Globo, 13/7/2017), o jornalista Zuenir Ventura relembra seu encantamento original com o hoje condenado Luís Inácio e com a organização criminosa – no começo, era um partido – por ele fundada. Dá dois motivos principais para seu entusiasmo, que já se extinguiu:
(1) Os padrões éticos do PT recém nascido: "Era raro encontrar um petista nos escândalos políticos de então; hoje, é difícil haver um escândalo sem nenhum petista envolvido". (Estou citando de memória; as palavras podem não ter sido exatamente essas.)
(2) A dedicação aos pobres. Zuenir recorda seu trabalho de jornalista acompanhando o Lula dos primeiros tempos e se enternece retrospectivamente com as visitas que o futuro larápio fazia aos lares mais miseráveis, sempre levando uma mensagem de redenção. (Estou forçando a memória, mas creio que o essencial do pensamento é esse.)
Santo de barro
Tenho apenas um rápido comentário a fazer sobre (1): ainda bem que Zuenir Ventura está entre aqueles raros admiradores de Lula e do PT íntegros e inteligentes o bastante para reconhecer, em face das evidências reunidas pelas investigações criminais, que seu santo era de barro. Viva o velho jornalista por tê-lo admitido.
Isso, entretanto, a despeito de sua enorme relevância, é o menos importante. Além de ser óbvio. Só um cara muito burro, ou mal intencionado, ainda não se convenceu de ter cometido grave engano ao votar seguidas vezes num político ladrão e num partido dedicado a assaltar os cofres públicos. Portanto, eu prefiro dar mais atenção ao ponto (2), acima: as conversas de Lula com as pessoas hoje designadas como "excluídas".
Não sei o que o líder operário dizia aos pobres a quem visitava, mas posso imaginar. A herança cultural de Lula, assim como do sindicalismo ideológico, da Teologia da Libertação, do revolucionismo marxista, da pedagogia de Paulo Freire, da esquerda em geral, é o coitadismo, que tem como premissa básica uma afirmação FALSA: a de que, se eu sou pobre, alguém está me roubando. Desde o século XVIII, pelo menos, essa falácia nos persegue.
Muitas razões respondem pela popularidade de tal crença. A mais evidente é que ela produz o conforto simples sem o qual os idiotas não sabem viver. Quer coisa melhor do que acreditar — e com o respaldo de gente conceituada: Marx chamou seu socialismo de "científico"! — que aquele rico safado, possuidor das coisas que eu gostaria de ter, é responsável pela miséria do mundo, a começar pela minha?
Uma segunda razão para tanta gente acreditar no afirmaçao "o roubo explica a riqueza" é a incessante propaganda que a tese recebe. Um número elevado de pessoas vence na vida se aproveitando da crença ingênua das multidões naquela premissa falsa. E, portanto, trabalha para que tal convicção se torne a cada dia mais firme e generalizada.
Ao propagar a mentira, Lula, assim como os sindicalistas ideológicos, os teólogos da libertação, os revolucionários marxistas, os pedadogos paulo-freireanos, os esquerdistas em geral, reforçam o disfarce construído para ocultar o verdadeiro objetivo de suas atividades, que é produzir vantagens para eles mesmos e seus grupos.
Com tanta gente dedicada à propaganda de teses reconfortantes e fáceis de entender, não surpreende que elas se tornem ainda mais populares. E, assim, o palco é montado para que uns poucos escolhidos promovam o "bem" do povo e a felicidade geral deles próprios.
Falsidade ideológica
Com a difusão da tese coitadista, os votos dos pobres (somados aos dos profissionais liberais, professores universitários e intelectuais de formação duvidosa) facilmente se canalizam para os que prometem combater os vilões causadores da pobreza. Esses votos elegeram Lula e seus comparsas, os quais, em seguida, se dedicaram ao que realmente lhes interessava: perpetuar-se no poder e enriquecer além da imaginação.
Mas, não foi apenas Lula e o PT que se beneficiaram com a convicção do povo na premissa falsa. O fenômeno é muito mais geral e abrange todos os segmentos da esquerda, no Brasil e no mundo. Seus efeitos têm sido, correspondentemente, amplos. Por exemplos:
(i) A mobilização dos trabalhadores sindicalizados (que são muitos) em defesa das "conquistas trabalhistas" permitiu aos trabalhadores ligados aos sindicatos fortes (que são poucos) conquistar salários anormalmente altos e incompatíveis com sua produtividade.
(I) A lenga-lenga da Teologia da Libertação deu azo a que pessoas intelectualmente primárias ganhassem notoriedade nacional e fossem levadas a sério. Essa gente, em maioria padres, também se sentiu merecedora da salvação eterna, por pugnar pelos pobres e oprimidos.
(iii) Os revolucionários marxistas tomaram o poder em várias partes do mundo e o mantiveram por um tempo próximo à eternidade, beneficiando a si próprios da forma a mais desabrida.
Riqueza é produção
Lula e seus amigos estão errados. Contrariamente às convicções mais arraigadas da esquerda, o que torna as pessoas ricas é a produção, não o discurso. Sendo assim, só podem superar a pobreza de sua gente as sociedades altamente produtivas. E o fato é que, até hoje, a humanidade não inventou nenhuma forma de organização econômica mais capaz de gerar riqueza do que o capitalismo operado pelos mercados livres e ancorado na propriedade privada dos "meios de produção".
Não há, portanto, outra forma de defender os pobres (ao invés de iludi-los e usá-los) que não seja facilitando o desenvolvimento do capitalismo. Talvez Lula, um dia, entenda isso, se lhe for dada a oportunidade, aí pelo vigésimo ano de cadeia. Eu duvido.

(Publicado no Facebook em 16/7/2017)

Fábula dos dois infernos

Gustavo Maia Gomes
Chovia muito quando o brasileiro barbudo chegou à porta do Céu. Tinha sido presidente, mas descobriram suas trelas e ele fora parar na cadeia. Nunca se conformou. Disse ao porteiro celestial: "fui condenado sem provas, mereço entrar".
-- Seu nome não consta da relação, senhor, mas o chefe deixou aqui um recado. Vou ver.
-- Tenho de entrar. Fui condenado sem provas.
-- Na Terra, não sei, senhor, mas, aqui no Céu, duas mentiras juntas não fazem uma verdade. Mesmo assim, tenho uma boa notícia para você.
-- O dono do sítio reconhece minha inocência? Posso ser candidato?
-- Nada disso. Ele apenas lhe deixa escolher seu destino final. Há uma vaga no inferno brasileiro e outra no inferno americano. Qual prefere?
-- Eu conheço essa piada e ela não tem graça.
-- É o que podemos fazer. Devia estar agradecido. Há trinta anos ouvimos o senhor repetir a mesma conversa. Ninguém aguenta mais. Paciência de santo também se esgota.

(Publicado no Facebook em 16/7/2017)

Desescrevendo a História em Pernambuco (1947)

Gustavo Maia Gomes

Meu pi, Mauro Bahia de Maia Gomes, de terno branco, no centro.

Em 13 de maio de 1891, cumprindo ordem deixada por Rui Barbosa (que tinha sido, já não era, ministro), todos os livros de matrícula, controle aduaneiro e recolhimento de tributos existentes no Ministério da Fazenda que contivessem referências a transações com escravos foram queimados.
A ideia era apagar vestígios passíveis de serem utilizados em processos de indenização movidos pelos antigos proprietários de escravos. Muito bem: a intenção pode ter sido boa, mas o fato é que, com sua colocação em prática, perderam-se documentos preciosos para nossa História.
Em 15 de março de 1947, houve em Pernambuco (possivelmente, também em outros estados) episódio semelhante: a queima dos prontuários político-policiais herdados da ditadura varguista. Destruíram-se mais de 1.500 fichas com informações sobre pessoas consideradas inimigas do regime deposto em 29 de outubro de 1945.
Meu pai, Mauro Bahia de Maia Gomes, à época, Delegado de Vigilância e Costumes do Estado, testemunhou a queima (Diário de Pernambuco, 16/3/1947, pág. 3). Apenas, esteve presente, como a reportagem deixa claro. De qualquer forma, se envolveu na lamentável repetição do erro que havia sido cometido por Rui Barbosa, sessenta anos antes.
A relação completa dos nomes a que os prontuários destruídos se referiam foi publicada em sucessivas edições do Diário de Pernambuco. Adorei percorrê-la e nela descobrir nomes que me soam familiares, pela importância que já tinham ou viriam a ter na vida política e intelectual do meu Estado.
Voltarei ao assunto, aqui (nos próximos dias, mas sempre de forma breve) e no livro que ora escrevo, Uma Noite em Anhumas, no qual um dos capítulos terá Mauro Bahia de Maia Gomes como personagem principal.

(Publicado no Facebook em 13/7/2017)

O dia em que Macron me telefonou

Gustavo Maia Gomes

Remexendo velhos papeis, encontrei um artigo meu publicado no Jornal do Commercio (Recife) há 24 anos (26-3-1993). Estava para acontecer o plebiscito sobre a forma de governo (Presidencialismo, Parlamentarismo, Monarquia?) previsto na Constituição brasileira de 1988. Copio um trecho:
"Não precisamos deste plebiscito. Precisamos é de mais vergonha e menos vereadores; mais dedicação e menos deputados; mais seriedade e menos senadores. (...) Por que não programaram um plebiscito para reduzir em dois terços o número de deputados, extinguir o Senado e transformar as Câmaras Municipais em creches? Alguém tem dúvidas sobre como o povo votaria?"
Agora entendo porque Emmanuel Macron insistiu tanto em falar comigo antes de propor aquele projeto modesto, mas, no mesmo espírito, para a França.

(Publicado no Facebook em 10/7/2017)

Falta uma mala na denúncia

Gustavo Maia Gomes

1. Para o Presidente, será difícil explicar a mala cheia de dinheiro — redondos 500 mil reais —, a menos que o Papagaio Loures do Bico Dourado resolva assumir que a grana era dele, uma hipótese inverossímil.
2. Também só com muita benevolência alguém poderia acreditar que um Presidente da República recebesse em Palácio um empresário ladrão e investigado — fora da agenda e em horário esquisito — para discutir temas republicanos.
3. A meu ver, isso é tudo o que existe na denúncia. E é muito. Porém, a tentativa de fazer o diálogo gravado (resultante de uma armadilha afrontosamente preparada contra o Presidente) dizer mais coisas do que ele, de fato, diz lança fundadas suspeitas sobre os reais motivos do Procurador Geral. E aí a gente se convence de que, nessa história, ninguém é santo.
4. Não existe menção a dinheiro na conversa gravada. O empresário ladrão poderia estar mantendo "Eduardo" calmo com sessões de ioga (que o Presidente aprova e manda continuar). A inquietação de "Eduardo" poderia se dever ao fato de que o time de futebol pelo qual ele torce anda perdendo muito.
5. Mas o esticamento inacreditável (sem falar nas interrupções, no que era inaudível e deixou de ser...) a que o diálogo gravado foi submetido, para demonstrar o que ele não demonstra, é somente mais uma evidência de que há mistérios demais nesse processo.
6. Para meu entendimento, as circunstâncias estranháveis em que tudo aconteceu (a armação da cena, a homologação da delação em prazo inusitado, a inaceitável absolvição total concedida aos empresários ladrões) exalam cheiro de podre.
7. Não irei defender Michel Temer. A mala abarrotada de dinheiro não me deixa fazê-lo. Um fdp que usa o cargo de Presidente da República para coletar propinas deve mesmo ser condenado e preso. (Não nos esqueçamos de que essa era a prática usual do grande líder popular Lula da Silva, que também já deveria estar na cadeia.)
8. Apenas acho que o lado acusador, o Procurador Geral da República, tampouco, inspira confiança. Não há malas contra ele, é verdade. Mas, será porque não existiram ou apenas porque não foram filmadas?

(Publicado no Facebook em 27/6/2017)

Internet restabelecida ou a derrota do palito

Gustavo Maia Gomes

Depois de dez dias apresentando problemas, hoje, a conexão com a internet em minha casa voltou a funcionar. (Não sei por quanto tempo.) Terminou assim a terceira batalha de uma guerra em que o grande derrotado foi o palito de dentes.
Explico.
A operadora sempre impõe que o usuário trabalhe para ela. (Devia ser o contrário, já que ele paga pelo serviço.) Ao invés de mandar um técnico aonde está o problema, primeiro tenta fazer tudo remotamente. Nunca dá certo.
Na tentativa de conserto de ontem, falando por telefone com uma mocinha pré-paga que entende mais de Einstein que de internet, recebi a ordem de me dirigir ao "modem", a fim de "ressetá-lo". Levando um palito de dentes. Eu tinha de enfiar o palito em um buraco na parte de trás do modem e mantê-lo ali, fazendo pressão, durante trinta segundos.
Obedeci, mas não adiantou. Hoje, um técnico de carne e osso veio à minha casa e resolveu o problema. Fiquei aliviado: onde já se viu alguém, para ter internet em casa, precisar enfiar palitos de dentes em buracos apropriados? E mantê-los ali, sob pressão, por trinta segundos!

(Publicado no Facebook em 22/6/2017)

Pontos de vista e vírgulas a perder de vista

Gustavo Maia Gomes
Meus amigos virtuais e reais que foram irrestritamente contra o descalabro dos governos petistas (e, sobretudo, nos estertores destes, a favor do impeachment da mulher sapiens) agora se dividem em relação ao salvamento de Michel Temer pelo Tribunal das Sentenças Encomendadas.
Diante disso, acho que pode interessar a alguns deles uma exposição mais detalhada de como vejo esse acontecimento recente da nossa esquisitíssima política. Não que me ache capaz de mudar pontos de vista, certamente, sólidos. Apenas aspiro ser mais bem entendido pelos poucos que se disponham a ler o que segue.
Começo fazendo uma preliminar. Minha opinião profissional como economista é que, no presente momento, as consequências de uma renúncia ou afastamento do Sr. Temer para a estabilidade e/ou lenta retomada do crescimento econômico brasileiro seriam, exatamente, NENHUMA.
O "fiador da estabilidade", na atual conjuntura, não é o presidente, incapaz de fiar sequer a si próprio, mas a convicção bastante generalizada e imposta pelo medo (ao menos, entre as pessoas que poderiam assumir o comando do governo, na nova pinguela pós-Temer) de que, se nenhum ajustamento fiscal for feito (ou, no mínimo, crivelmente prometido), teremos rapidamente a volta da inflação e o aumento do desemprego.
Se eu estiver certo nesta preliminar (como acho que estou), a alegação de que salvar Temer (e, por consequência óbvia, INOCENTAR Dilma e o PT) equivale a salvar a estabilidade cai por terra. Passo, portanto, à parte mais importante do argumento.
O Sr. Michel Temer e os quarenta ladrões que ele escolheu para ministros não compõem uma nova organização criminosa. Eles são, apenas, uma dissidência (membros subordinados, vá lá) da mesma quadrilha que nos governa há quatorze anos e meio. Infelizmente, só existia uma rota constitucional para demitir a "presidenta" que levara o país à bancarrota. Essa via implicava na posse do vice-presidente. Não tínhamos escolha. E, cá pra nós, o Brasil melhorou um bocado depois que a troca foi feita.
O respeito às leis e, especialmente, à Constituição, mantido durante todo o processo do impeachment (descontada a falcatrua cometida no apagar das luzes pela dupla Renan-Lewandowski a favor da desastrada senhora) forneceu o respaldo moral a nós que fomos às ruas pedir a derrubada de Dilma Rousseff e seus asseclas petistas.
Não estávamos lutando para colocar Temer no poder, mas para tirar do poder uma pessoa que havia cometido crimes. Não tínhamos bandidos de estimação, como os tem o PT. (Vejam como reagimos às devastadoras recentes denúncias contra Aécio Neves.) Queríamos, sim, lutar contra a incompetência específica e a roubalheira generalizada características daquela mulher e do seu bando de marginais.
Se lutamos contra isso (e vencemos!) recorrendo, estritamente, aos meios legais disponíveis, como vamos, agora, defender a vergonhosa lambança que este governo montou no TSE? Como podemos aceitar que a montanha de evidências de que a chapa Dilma-Temer fraudou as eleições seja ignorada? Não foi exatamente contra isso (a desconsideração das evidências, ofuscadas pelo discurso de que o impeachment era golpe) que tão vigorosamente protestamos?
Em especial, como podemos acreditar na honestidade de um juiz – cujo voto e condução do processo foram decisivos para a absolvição da chapa liderada por Dilma Rousseff – se ele, escancaradamente, muda de opinião segundo suas conveniências momentâneas? Como podemos defender um desfecho processual conseguido sabe-se lá como, mas conspicuamente fraudulento?
Tô fora.

(Publicado no Facebook em 11/6/2017)