quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Senhora de Engenho (Romance de Mário Sette, 1921)

Gustavo Maia Gomes


Mário Sette (1886-1950)
Li, em três dias, mas com atraso de 69 anos, o romance "Senhora de Engenho", do escritor pernambucano Mário Sette. Publicado em 1921, é anterior ao Manifesto Regionalista (1926), a "Casa Grande e Senzala" (1933) e a "Sobrados e Mucambos" (1936), de Gilberto Freyre; ao romance "A Bagaceira", de José Américo de Almeida (1928); e a toda a produção literária de José Lins do Rego. Antecipa muito da temática depois desenvolvida por cada um desses autores -- e por muitos outros.
"Senhora de Engenho" não é uma obra prima. (Ou, talvez, seja?) Fico sabendo que, em seu tempo, foi sucesso de vendas. As meninas o liam com avidez, chorando o amor secreto que Maria da Betânia nutria pelo seu companheiro de infância Nestor. Para meu gosto, a narrativa passa, em alguns momentos, muito perto do pieguismo. Mas esse é um "olhar 2016", quase cem anos mais velho do que o livro. As características duradouras da obra de Mário Sette, por outro lado, se impõem ao leitor bem avisado.
Nela, estão presentes os temas:
(1) da saída do herdeiro do engenho para a cidade (o Recife e o Rio de Janeiro) e o desprezo do estudante de Direito, depois, jovem bacharel, pelos valores e tradições do seu meio rural;
(2) do emprego público (sempre "arranjado" pelos bons amigos, embora o livro não explore muito isso) como viabilizador da mudança do campo para a cidade;
(3) da educação de segunda classe reservada para as mulheres, assim como de seu papel irrelevante na administração dos negócios da fazenda;
(4) do contraste entre a rotina escravizante do empregado urbano e a vida (supostamente) livre do proprietário rural dono de seu negócio;
(5) da política feita de alianças escusas e troca interessada de favores, embora esse tema seja abordado apenas em uma passagem (porém, importante) do livro;
(6) da superficialidade dos hábitos urbanos (como valorizar maçãs sem gosto, apenas por serem importadas da Europa), em contraste com o enraizamento em sólida moral dos costumes rurais;
(7) da possibilidade (ou, talvez, da utopia) de modernizar o velho engenho, não apenas em seus aspectos tecnológicos, mas, também, em suas relações de trabalho, melhorando as condições de vida dos trabalhadores;
(8) do triunfo final (aqui, mais um desejo do escritor do que um retrato realista de como as coisas se passaram) dos valores rurais sobre os urbanos, exemplificado no retorno do Rio de Janeiro para Tracunhaém (PE) tanto do personagem principal, Nestor, quanto de seu cunhado Lúcio e, acima de tudo (aí já forçando bastante a barra) a conversão aos valores rurais da carioca e urbaníssima mulher de Nestor, Hortência, a Senhora de Engenho.
E muito mais. Para quem se interessa pelo tema, "Senhora de Engenho", de Mário Sette, ainda é um livro que merece ser lido.

Controle dos gastos federais (PEC 241): Reflexões necessárias

Gustavo Maia Gomes

A má fé e a falta de informações têm se combinado para produzir oposição de péssima qualidade (porém, estridente e causadora de transtornos) à Proposta de Emenda Constitucional 241, que estabelece um teto de gastos reais (ou seja, determina que os gastos sejam aumentados, apenas, pela inflação do ano anterior) dos poderes federais. A má fé é irrevogável; a falta de informações, talvez, não seja. Com essa limitada esperança, faço alguns esclarecimentos sobre o assunto, ainda em tramitação no Congresso Nacional.

1. Serão, mesmo, vinte anos de congelamento? Não necessariamente. As novas regras de controle dos gastos públicos federais (que, se aprovadas, passarão a integrar a Constituição, em suas Disposições Transitórias) poderão ser alteradas por maioria simples, nas duas casas, dez anos após entrarem em vigor. Por Emenda Constitucional (maioria de dois terços), elas poderão ser modificadas em qualquer momento. Portanto, provavelmente, não durarão vinte anos.

2. Mas, então, por que colocar "vinte anos" no texto da Proposta? Porque, considerada isoladamente, a PEC 241 é insuficiente para resolver o desequilíbrio fiscal do governo federal. (Imagine, então, o desequilíbrio conjunto de todos os três níveis de governo!) Neste ano, 2016, as contas federais fecharão com um déficit primário (ou seja, sem adicionar o pagamento de juros) de R$170 bilhões. Se, nos anos vindouros, nada acontecer com a receita pública, congelar o gasto nominal corrigido pela inflação do ano anterior terá o único efeito de eternizar o rombo atual, que é insustentável. A PEC (se considerada isoladamente) faz a aposta ousada de que a disposição do governo de impor limites, por um longo período, ao aumento de seus gastos seja suficiente para que os agentes econômicos retomem a confiança na estabilidade e voltem a produzir, a dar empregos, a investir. Se isso acontecer, as receitas públicas crescerão até, eventualmente, fecharem o rombo atual. Mas, a única possibilidade dessa aposta dar certo é que ela sinalize, realmente, uma disposição radical de o governo evitar a reincidência, por um longo tempo, de surtos populistas como o que tivemos nos anos Lula-Dilma. Foi por isso, como sinalização de comprometimento efetivo, que os “vinte anos” foram julgados necessários.

3. “É absurdo impor cortes lineares no gasto público”. Claro, que é absurdo, mas, quem fará isso? Não, a PEC 241. Essa proíbe o aumento do total dos gastos federais. (Mesmo assim, excluindo do cálculo vários itens, como as transferências para Estados e Municípios.) Ali, não se fala em cortes, muito menos em cortes lineares. A despesa real total no ano (t+1) não poderá ser maior do que tiver sido no ano (t), mas qualquer item isolado dessas mesmas despesas poderá, sim, crescer, em termos reais, desde haja uma redução correspondente em outro (ou outros) item. O resultado dessas intenções de aumentar isso e reduzir aquilo, ao qual se agrega uma expectativa de quanto dinheiro teremos para gastar, constitui o que as pessoas chamam orçamento. Quem, de nós, ignora regras tais, quando planeja, racionalmente, suas despesas? Este ano, eu quero ir para a Europa, mas, como jamais acumulei fortuna, terei de reduzir minhas idas a restaurantes caros. Em 2017, diz o jovem recém-empregado, vou fazer uma poupança para meu casamento. Cálculos desse tipo são necessários porque dinheiro não nasce do chão, como mato. Nem o dinheiro privado, nem o público. Mas os governos, em regra, preferem garantir votos fingindo ignorar isso.

4. “Vão acabar com a saúde e a educação”. É a objeção mais vocalizada pelos que misturam desinformação com má fé. Sobre a má fé, sejamos francos: quem estava acabando com a saúde e a educação neste país eram aqueles que hoje se opõem à PEC 241. Foram os governos petistas que jogaram o Brasil na pior crise (queda de renda e destruição de empregos) que nossas estatísticas jamais registraram. Alguém acredita que a educação e a saúde de um país destruído possam ser "boas"? E sobre a desinformação: saúde e educação, ao contrário do que repetem os que incendeiam os pneus da ignorância, são os únicos itens de despesa que não poderão ser reduzidos (em relação aos níveis de 2016) nos anos de vigência da PEC 241. Ao contrário de todos os outros, eles têm piso, não teto. Podem aumentar, sim; não podem ser reduzidos. Aumentarão? Isso dependerá do Congresso que, a cada ano, tem a obrigação de fazer o Orçamento da União, emendando e remendando a proposta enviada pelo Executivo. Se aumentar gastos em educação e/ou saúde vier a ser considerado necessário ou desejável, deputados e senadores estarão livres para destinar mais recursos para esses setores, desde que identifiquem aqueles outros que terão menos dinheiro no próximo ano.

5. Necessária, mas não suficiente. Em palestra que pronunciei, recentemente, para um grupo de militantes do PSDB em Pernambuco, comecei dizendo: se vocês tivessem me dado somente dez segundos para falar sobre a PEC 241, eu diria que ela é necessária, mas não suficiente. Se mais alguns minutos eu tivesse, continuaria falando que, como política de reequilíbrio fiscal, diante do descalabro a que nos conduziram os governos petistas, nenhuma poderia ser mais suave que essa. (Outras medidas precisarão ser tomadas, para complementá-la.) De fato, a proposta em discussão embute, como vimos, uma aposta ousada de que as receitas públicas irão voltar a crescer, após a aprovação do novo regime fiscal. Irão, mesmo? Isso, sem ser impossível, não é certo. Pode se tornar muito improvável, se a oposição à PEC não for contrabalançada, diante da opinião pública, por argumentos sólidos em sua defesa. Pois, afinal, nenhum empresário há de querer investir e criar empregos em um país onde as pessoas são impedidas de ir para lá e para cá por gente – muita gente – que fecha as ruas, declarando guerra contra o inimigo errado.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Dois sogros, um genro (O breve primeiro casamento de Alípio Maia Gomes)


Gustavo Maia Gomes



Alípio Maia Gomes (1878-1916), irmão de José, Fernando, Nominando Maia Gomes e outros, médico profissional e jornalista amador, apesar de ter vivido apenas 38 anos, alcançou sucesso nas duas atividades. Mas, tinha uma coisa que ele sabia fazer ainda melhor do que atender enfermos e escrever artigos: arranjar sogros notáveis. Teve dois. (Não simultâneos, esclareço.)
Há uns dias (17/10), falei aqui de Sérgio Cardozo, médico prático, jornalista e segundo sogro de Alípio. Um vulto histórico. Pois o primeiro, Rodrigo Antônio Falcão Brandão (1865-1911), não lhe ficou a dever. Também médico, dono de jornal e político proeminente, foi deputado estadual e secretário de Fazenda do governador Luis Viana (1896-1900). Além de usineiro de açúcar.
Radicado em Santo Amaro da Purificação, cidade do Recôncavo baiano, Rodrigo era pai de Luíza (1887-1910), com quem Alípio se casou, em janeiro de 1906. O casal teve dois filhos. Um se chamava Elmano; do outro, nada sei. (Essa informação parcial eu a obtive dois dias atrás com Iza, filha de Yára e neta de Elisette Cardozo, a segunda mulher de Alípio. Ela não lembra o nome de seu outro tio ou tia.)
De qualquer forma, a probabilidade é alta de que Rodrigo Brandão tenha sido avô e bisavô de muitos Maia Gomes que já nem mais carregam esse sobrenome. Netos e bisnetos baianos, acrescente-se, pois o paí de Luíza morava em Santo Amaro e muitos de seus descendentes devem continuar lá, ou em Salvador. (Alípio foi para a Bahia estudar medicina, mas, em face de tantos sogros de alta qualidade disponíveis, foi ficando, até morrer, em 1916.)
O lado triste dessa história é que Luíza Brandão Maia Gomes, filha de Rodrigo Brandão e primeira mulher de Alípio Maia Gomes, morreu aos 23 anos. Uma menina. 

(Publicado no Facebook, 20/10/2016)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Sérgio Cardozo: Médico, jornalista e abolicionista

O avô dos primeiros Maia Gomes baianos
Gustavo Maia Gomes


Pessoa notória, em seu tempo, Sérgio Cardozo (1858-1933) nasceu na Bahia, onde estudou medicina e foi jornalista. Ativista da Abolição, não concluiu o curso, provavelmente, vítima de retaliação pelo resgate de um menino escravo que o Barão de Cotegipe (João Maurício Wanderley, 1815-89) pretendia levar para a Corte.

O episódio, ocorrido em ano próximo a 1884, teve grande repercussão, ainda mais porque Cotegipe era, à época, presidente do Senado e logo viria a ser chefe de Governo (1885-88). Impedido de continuar os estudos, embora já estivesse no penúltimo ano do curso, Cardozo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornou amigo de José do Patrocínio (1854-1905), grande líder abolicionista.
Mestiços e jornalistas
Ambos eram mestiços, filhos de brancos com negras ex-escravas. No Rio, Cardozo trabalhou em vários jornais. Num deles (“A Cidade do Rio”), pertencente a Patrocínio, conviveu com Olavo Bilac (1865-1918), o célebre poeta parnasiano, que lhe mandava seguidos bilhetes sugerindo pautas.
Após a Abolição (1888), “A Cidade do Rio” tornou-se monarquista, o que deve ter desgostado Cardozo, republicano convicto. Além disso, José do Patrocínio, endividado e já doente, saiu de cena. O baiano achou que estava na hora de voltar para sua terra. Fez isso, provavelmente, ainda nos primeiros anos 1900. Conseguiu um emprego público federal num distrito (Berimbau) de Santo Amaro da Purificação e ali se tornou, adicionalmente, jornalista, boticário e médico prático.
Sérgio Cardozo entrou na história da família Maia Gomes quando sua filha Elisette se casou com Alípio, irmão de Nominando, Fernando, José, Jovino, Juvenal, Amélia, Amália, Eulália, Antônio e Frigdiano.
Vida curta, mas movimentada
Alípio Maia Gomes (1878-1916) teve vida curta, porém movimentada. Ainda no século XIX, saiu de Murici (AL) para estudar, primeiro, no Liceu alagoano, em Maceió; depois, na Faculdade de Medicina da Bahia. Formou-se médico em algum ano próximo a 1900 e passou a viver e trabalhar em Santo Amaro da Purificação (BA).
Naquela cidade do Recôncavo, Alípio se casou (em primeiras núpcias, 1906) com Luíza Brandão, filha de Rodrigo Antonio de Falcão Brandão (1865-1911), um “notável político” baiano, segundo os jornais da época. Com Luíza, Alípio teve dois filhos, cujos nomes desconheço, mas, enviuvou prematuramente (jan. 1910).
O casamento com Elisette, na mesma cidade, ocorreu, provavelmente, em 1912. Dele, nasceram Luiz (4/4/1913), Francisco (11/7/1914), Yára (7/10/1915) e Inah (22/10/1916). Todos tinham o sobrenome Cardozo Maia. (Sem o “Gomes”, pelo que pude apurar.) Tenho uma foto preciosa, que me foi emprestada por Ivan Pedrosa Maia Gomes, onde aparecem três dos quatro filhos de Alípio e Elizette, todos, ainda, crianças. Apenas dois anos e meses após a morte do pai deles.
Amigos para sempre
Sogro e genro se tornaram amigos e, em sua "Memória Histórica de Santo Amaro" (1920), Sérgio Cardozo elogia a atuação corajosa de Alípio Maia Gomes, como médico, durante uma epidemia de cólera que assolou a cidade em 1912. Também há notícias anteriores de que Alípio teve atuação destacada assistindo os feridos da Guerra de Canudos.
Em outro desdobramento que não tem a ver com os Maia Gomes, uma neta de Sérgio Cardozo, Velleda Cardozo Barreto Pinto, descendente de espanhóis, fundou, com o marido, o Teatro de Amadores da Bahia. Não consegui saber se essa companhia teatral ainda existe.
Notas
(A história de Alípio Maia Gomes e de seus descendentes, meus primos desconhecidos, vai poder ser mais bem contada nos próximos dias, agora que Angela Gomes De Souza Chaloub me pôs em contato com uma das netas de Alípio, Iza, residente em Salvador.)
(As fontes dos fatos relatados aparecerão em detalhe no livro que ora escrevo sobre os Maia Gomes, os Bahia, os Araújo Pedrosa, Kuhn, Quanz, Dias Cardoso, Kruss... Enfim, sobre meus ancestrais.)

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Freud explica Lula?

Gustavo Maia Gomes

As investigações policiais vão revelando que o ex-presidente Da Silva roubaria até galinhas, se os seus grandes negócios lhe deixassem algum tempo livre para dedicar a essas atividades prazerosas, mas pouco rentáveis. -- "Roubar galinhas. Ah, se eu pudesse!"
Falo sério: ou todos os indícios são falsos ou o cara é, obsessivamente, ladrão. Seu prontuário como desviador de recursos públicos é tão abrangente, diversificado e megalomaníaco que, acho eu, nem Freud explica. Ou explica?
A analogia que me vem à mente é a do menino Severino da Silva. Biu, como o chamávamos, passava fome no interior de Pernambuco, aí pelos 1970. Sem forças, aos quatro anos de idade, mal conseguia andar. Havia sido abandonado pelos pais.
Foi trazido para o Recife por uma família de classe média. Não tinha o status de filho adotado, mas, de repente, passou a se alimentar com fartura e regularidade. Em pouco tempo, (diria Luís Gonzaga) estava gordo como um major.
Mentalmente falando, contudo, se Biu tinha saído da fome, a fome não havia saído dele. Nos aniversários de criança, jamais brincava, até que o bolo fosse partido e a comilança autorizada. Permanecia horas em pé, ao lado da mesa. Obediente, nada comia. Esperava.
Quando o recreio tinha início, entretanto, Biu comia tudo, compulsivamente. Aquilo, para ele, era a festa. Nenhuma outra atividade lhe dava prazer. Queria, apenas, comer naquela tarde tudo o que a vida lhe negara durante tanto tempo.
E, assim, a vida passou. Biu nunca mais foi magro, mas virou um quase marginal. Não estudou. (Talvez, seus neurônios tivessem se atrofiado?) Mentia corriqueiramente. Era dado a pequenos furtos. (Os grandes nunca estiveram ao seu alcance.)
Se tivesse chegado a presidente, Biu teria festas de aniversário todos os dias. Comeria seiscentos brigadeiros, novecentas coxinhas, cinco mil e oitocentos cachorros quentes. Afogar-se-ia em piscinas de Coca Cola, enquanto os outros meninos apenas cantariam Parabéns pra Você, correndo pelos lados, em alvoroços tipicamente infantis.
Biu explica Lula? Sim e não. Sim, porque condições iniciais desfavoráveis podem marcar as pessoas para sempre. Não, porque nem todos os Da Silva são iguais. Conheço caso semelhante, vivido na mesma casa (Ezequiel, seu nome) de alguém que se tornou um cidadão respeitável, honesto, produtivo.
De Biu, nunca mais tive notícias. Deve estar preso, outra vez. Ezequiel aposentou-se como motorista de caminhão. Hoje, possui uma van e faz transporte escolar. Seus filhos, todos, tiveram sucesso na vida, nos limites do possível. Acho que são felizes.
Freud explica Biu, Lula. Mas, quem explica Ezequiel? Quem explica por que virar ladrão não era a única possibilidade?

(Publicado no Facebook, 11/10/2016)

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

As geografias discrepantes de dois alemães desgarrados (Século XIX)

Gustavo Maia Gomes

Doroteia Kruss (1840-c.1902)
A criança no colo é, provavelmente,
Olga Dias Cardoso (1896-1978). (Foto
do acervo de Heloisa Pedrosa, enviada
por seu genro Bento Luiz Silva)

Christian Frederick William Kruss
(1833-95),  em foto colhida no site
My Heritage / 

The Kruss Family Website.


Meu tetravô (nem sei se a palavra existe), Marcus Kruss, nasceu em Burg auf Fehmarn, no dia 20/12/1798. Morreu ali mesmo, em 31/5/1886. Trabalhava como Lichtgieber und Polizeidiener. O que era isso? Polizeidiener, OK, é policial, mas a melhor tradução que consegui para Lichtgieber foi “cortina de luz”, que não parece ser uma profissão. A pequena ilha de Fehmarn, no Mar Báltico, era, à época, território alemão. (Ou dinamarquês, segundo algumas fontes.) [1]
Marcus Kruss casou-se duas vezes. A primeira (em 1820), com Christina Margaretha Wendt (1795-1823). Mas, Christina morreu apenas três anos depois. Pelo tempo que foi casada, devem ter sido dela apenas duas das dez filhas e filhos do policial cortina de luz: (i) Amalie Maria Christina Kruss (Leiden por casamento) e (ii) Gertrude Kruss (Kukuk, por casamento). Não sei os anos e locais de nascimento e morte delas.
CASAMENTO
A segunda mulher (1829) de Marcus Kruss, minha tetravó, foi Catherina Dorothea Prussing (24/10/1797-22/3/1873), nascida em Orth, na mesma ilha de Fehmarn, localidade distante apenas 14,5km de Burg auf Fehmarn. Catherina morreu na mesma ilha onde, aparentemente, vivera toda a vida. O marido, ainda menos inclinado a mudanças, parece nunca ter saído da minúscula cidade em que nascera (12.000 habitantes, em 2013.)
Com Catherina Dorothea Prussing, Marcus Kruss teria mais oito filhos (todos com sobrenome Kruss): (iii) Magdalena Wilhelmina (Krohn, por casamento); (iv) Jacob; (v) Christian Frederick William (6/1/1833-27/11/1895); (vi) Carl Heinrich; (vii) Daniel Gottlieb; (viii) August Carl Ludwig; (ix) Anna Dorothea, de quem não há registro de que se tenha casado; (x) Dorothea Elise Kruss (Quanz), nascida em 1840, décima filha de Marcus, oitava de Catherina Dorothea. Minha trisavó.
Enquanto Marcus e Catherina viveram e morreram no mesmo lugar, uma ilha pacata, que destinos geograficamente tão diferentes teriam seus filhos Christian Frederick William Kruss e Dorothea Elise Kruss (Quanz por casamento)! Ambos nascidos em Burg auf Fehmarn, Alemanha ou Dinamarca, um foi parar em Welshmans Reef, Vitória, Austrália; a outra, em Santa Rita, Paraíba, Brasil. Isso, aí pelos anos 1860-70, mais ou menos.
PARAÍBA
Dorothea Elise Kruss Quanz – ou Doroteia Elizabeth, como seu nome aparece aportuguesado nas Memórias da trineta Heloisa Pedrosa – nasceu no dia 25 de junho de 1840, no mesmo Burg auf Fehmarn onde Marcus Kruss viveria toda a vida. Talvez não fosse o melhor lugar do mundo para uma moça arranjar casamento. Tornando as coisas mais difíceis, já com 25 anos de idade e ainda solteira, a jovem não era bonita. (A julgar pelos retratos que se conservaram, não, mesmo.) Mas, tinha padrinhos. Um deles, Henry Leiden, industrial do ramo cervejeiro, era casado com a meio-irmã de Dorothea Elise, Amalie Maria Christina Kruss, filha mais velha do primeiro casamento de seu pai.
O cervejeiro prussiano Henry Joseph Leiden fundara e era dono de fábricas no Rio de Janeiro (desde 1842; ele é considerado o pioneiro desta indústria no Brasil) e no Recife (pelo menos, desde 1866). E era tio de Henri Quanz, alemão da Baviera, que perdera os pais ainda criança e fora morar com parentes em Paris. O que Henri Quanz fazia na França, não sei. Mas ali se casou com uma francesa, teve duas filhas (Ana e Valentina) e, de súbito, a mulher morreu. 
Estamos, nesta altura da narrativa, em um ano próximo a 1866. Leiden tinha interesses industriais no Brasil, mas morava na Europa. Precisava, especialmente, de alguém confiável para administrar a fábrica do Recife. Convenceu o sobrinho recém-viúvo Henri Quanz a vir residir em Pernambuco. E lhe arranjou a noiva que queria “colocar”: sua cunhada (dele, Henry Leiden) Dorothea Elise Kruss.
Em 1868, Quanz brigou com Leiden e o casal Henri-Dorothea se mudou para a Paraíba, onde os dois viveram o resto das vidas. Sua filha Josefina Kruss Quanz casou-se com Francisco Dias Cardoso Filho, engenheiro vindo do Rio de Janeiro para a Paraíba e com ele teve cinco filhos: Raul, Olga, Henriqueta, Corina e Maria Helena. Conheci e convivi com todos eles. Não tenho notícia de que minha trisavó Doroteia Elizabeth, na versão aportuguesada de seu nome, tenha, jamais voltado a Burg auf Fehmarn, ou à Alemanha, ou à Dinamarca, ou à Europa.
AUSTRÁLIA
A narrativa feita até aqui é, em suas linhas gerais, conhecida dos descendentes de Dorothea Elise (ou Elizabeth) Kruss. Mas há outra ponta da história inteiramente desconhecida, que descobri recentemente. É que o irmão de Dorothea, Christian Frederick William, sete anos mais velho do que ela, também fez uma viagem transoceânica da qual jamais retornaria. 
Foi morar na Austrália, num lugar chamado Welshmans Reef, a 114 km de Melbourne, no Estado de Vitória. Não tenho a menor ideia (ainda) do que ele terá ido fazer lá. Será que Henry Leiden também tinha interesses comerciais na Austrália? Não sei. O fato é que Christian foi morar naquele lugar incrivelmente distante.
Deu-se, então, o duplo paradoxo: enquanto seus pais, Marcus Kruss e Catherina Dorothea Prussing, nunca saíram do pequeno lugar onde haviam nascido, entre a Alemanha e a Dinamarca, dois de seus filhos foram bater com os costados em fins-do-mundo extremamente distantes não apenas de Fehmarn, mas, sobretudo, um do outro: Dorothea, no Brasil; Christian, na Austrália.





[1] Boa parte das informações deste artigo foi colhida em "My Heritage / Kruss Family Website". (Alguns dos dados são divulgados apenas para os assinantes do site, o que foi meu caso, por um breve tempo.) As Memórias de Heloisa Pedrosa, editadas por Martha Pedrosa Resende, também foram utilizadas. Umas poucas informações são resultado de pesquisas anteriores feitas, sobretudo, na coleção de jornais da Hemeroteca Brasileira Digital da Biblioteca Nacional.