sexta-feira, 31 de março de 2017

31 DE MARÇO DE 1964 (Reflexões breves sobre um dia longo)

Gustavo Maia Gomes


Quando terminei de ler a excelente biografia de Getúlio Vargas escrita por Lira Neto (São Paulo, Companhia das Letras), estava marcado por inúmeras revelações importantes. Juntando-as ao que já tinha aprendido antes, conclui que, em todos os momentos, de 1889 a 1964, algum golpe de Estado estava sempre sendo preparado para derrubar o governo. Sem surpresa: afinal, a própria República começara com a tomada do poder por uns poucos militares e seus cavalos e nunca descobrimos se um dos dois sabia o que estava fazendo.

Não poderia ter sido diferente com o governo João Goulart (1961-64). Herdeiro de Getúlio Vargas, mas desprovido da inteligência e carisma deste, Jango foi quase uma avant-première de Dilma Rousseff, ou seja, um absoluto desastre político, econômico e administrativo. Desde que assumiu, com poderes limitados (um veto militar à sua posse na Presidência, como sucessor do renunciante Jânio Quadros, levou à instauração do parlamentarismo), tratou de piorar a própria situação (e a nossa!).

Quando o país precisava de uma boa política econômica, ele entregou a demagogia populista. Jogou todas as fichas na defesa de “reformas de base”, que nada mais eram do que ameaças à produção. Virou marionete das centrais sindicais e sindicatos controlados por pelegos, cuja única aspiração era chupar mais dinheiro público para eles mesmos. Nos estertores de seu governo, Jango, como se estivesse convidando os militares a depô-lo, apoiou ou foi conivente até mesmo com um motim de marinheiros.

Não há dúvida de que João Goulart foi um desastre. Sua inépcia estava, sim, ampliando as probabilidades de tomada violenta do poder pela esquerda (à época, quase toda, comunista), o que teria levado o país a uma ditadura ainda mais violenta e longeva do que aquela de direita, porém, reformista que viríamos a ter. (Basta pensar em Cuba, na América Latina, ou em qualquer país comunista, no mundo.)

Justificaria isso a intervenção militar violenta que tivemos em 31 de março e 10 de abril de 1964? Na época, achei (e ainda acho) que não. Mas, é fácil fazer previsões sobre o passado. Difícil é tomar decisões sob a incerteza do que virá, se nada for feito agora. O regime militar que se implantou há 53 anos e que iria durar outros 21, sem dúvida, trouxe benefícios ao país. O esforço de racionalização da política econômica, entre 1965 e 1967, com Roberto Campos e Otávio Bulhões no comando, poderia ser citado: ele nos livrou de uma hiperinflação que já parecia inevitável, muito antes de abril de 1964.

Houve avanços em outras áreas. Os padrões de moralidade no trato da coisa pública – salvo prova em contrário que, até hoje, não apareceu – foram melhorados. Basta ver que nenhum alto dirigente do regime militar ficou rico, como já era comum à época – basta citar o caso do “rouba, mas faz” Ademar de Barros, por duas vezes governador de São Paulo. O avassalador crescimento do poder dos sindicatos, que só poderia levar ao descalabro econômico e à instabilidade política, foi detido, por um tempo. (Seria restabelecido, mais adiante, na era petista, com os resultados que estamos vendo.)

Mas o golpe trouxe, também, altíssimos custos, devidos à interrupção do processo democrático (iríamos ter eleições em 1965!) e ao excesso de poder conferido a militares, muitos deles, imbecilizados pela doutrina que opunha de forma maniqueísta, os “bons”, liderados pelos Estados Unidos, aos “maus”, seguidores da União Soviética. Doutrina que justificou apreensões, em operações policiais, até mesmo de discos que continham a música “Noites de Moscou”, e que transformou o debate político em caso de polícia, favorecendo o aparecimento da reação armada (e desastrosa) ao governo.


Devia haver mesmo algo muito errado com aquele regime que deu espaço para uma reles terrorista e assaltante de bancos, como a nossa ex-presidente, querer, até hoje, se passar por heroína. Em retrospecto, acho que teria sido muito melhor se não tivesse havido o golpe militar (desde que, tampouco, tivesse havido uma tomada de poder pela esquerda comunista), mas isso, reconheço, é uma coisa mais fácil de dizer hoje do que no calor dos acontecimentos daquele longo 31 de março de 1964.

quinta-feira, 30 de março de 2017

“Dize-me com quem andas...” (As boas companhias de Luís Alípio de Barros no Rio de Janeiro, 1944-68)

Gustavo Maia Gomes

Vez por outra, escuto alguém dizer: “tenho berço”. Em Pernambuco e Alagoas, pelo menos, ainda se ouve isso. “Ter berço” – pertencer a uma família tradicional que, se já teve dinheiro, hoje, com certeza, está arruinada – é o último refúgio dos falidos. Assim como, mutatis mutandis, desfilar em público trajando bolsas Louis Vuitton é a derradeira cartada das mulheres que, carentes de um próprio, adorariam dormir em berços alheios.
Luís Alípio de Barros (1920-91), certamente, “tinha berço”. Seu pai, dono de usina em Alagoas, gozava a fama de milionário. Na verdade, todos os usineiros pernambucanos e alagoanos – falo da primeira metade do século vinte, mas ainda hoje é assim – eram ricos. (Exceto para o Banco do Brasil que, a intervalos, aparecia na fábrica e tomava tudo.) Mas, mesmo podendo, Luís Alípio não se resignou a viver das fraldas que herdara.
Arrumou a trouxa e, aos 24 anos, foi morar no Rio de Janeiro. Levava “pistolões”? (como se dizia antigamente; hoje, seriam “indicações políticas”.) Imagino que não, pois sua vida profissional passou longe dos governos, único território onde o pistolão valia ouro. Foi feita em revistas e jornais privados: O Cruzeiro, A Cigarra Magazine, A Cena Muda, Diário da Noite, Diário de Notícias, Correio da Manhã, A Manhã, Revista da Semana, O Jornal, O Pasquim e, sobretudo, a Última Hora.
A conquista do Rio
Rapidamente, Luís Alípio abriu caminho na antiga capital federal. No mesmo ano em que chegara (1944) já assinava a seção “O mundo dos livros” em O Cruzeiro, maior revista brasileira da época. Na Última Hora, onde trabalharia desde a criação do jornal (1951) até seu desaparecimento (c.1987), chegou a ter posições administrativas e a manter duas colunas simultâneas. Talvez, três, duas delas sob pseudônimos.
Gostava da noite, de cerveja, uísque, boa comida e do convívio com pessoas interessantes. (De mulheres, com certeza: algumas fotos são reveladoras, embora ele fosse discreto em relação a isso.) Salvyano Cavalcanti de Paiva escreveu, em 1951, a “Antologia dos cronistas cariocas”, uma série de perfis biográficos publicados na revista A Cena Muda. O alagoano foi objeto do perfil número seis. Segundo Salvyano, Luís Alípio “gosta[va] de uma boa praia, de futebol bem jogado, de uma cerveja gelada, de pensar em Ingrid Bergman sem Roberto Rossellini e em Elizabeth Taylor sem o hoteleiro seu marido. (Desejo satisfeito: Elizabeth Taylor vai se divorciar...)[1]
Luís Alípio foi casado, ou viveu maritalmente (hoje, não fazemos mais essa distinção) duas vezes. A primeira, de 1948 a 1956, com Maria Luíza Gonçalves Cavalcante de Melo, uma jornalista que, após deixa-lo, casou-se com o escritor nascido em Caruaru (PE), mas radicado no Rio de Janeiro, José Condé (1917-71). A segunda, e última, com Maria Ivanira Teixeira, também jornalista, de 1958 até a morte dele, em 19 de janeiro de 1991. Com Ivanira, que ainda está viva e perfeitamente lúcida, e com quem conversei por telefone, ele teve um filho (George Andrea) e uma filha (Ana Catarina).[2]
Há um detalhe curioso, nessa área pessoal, que merece menção. Matéria da revista Veja publicada em 4/10/1972 (portanto, quando Luís Alípio e Ivanira já eram casados) começa assim: “Alípio Júnior, de dezesseis anos, é filho do jornalista carioca Luís Alípio de Barros. Como milhares de outras pessoas, ele assistiu pela televisão, na semana passada, a um programa retrospectivo mostrando o enterro do cantor Francisco Alves, morto num desastre de carro vinte anos atrás. Alípio Júnior perguntou ao pai: – Quem era esse cara?”[3]
Bem, eis o paradoxo: se o rapaz, em 1972, tinha 16 anos, ele havia nascido em 1956, quando Luís Alípio estava casado, ou dela havia se separado muito recentemente, com Maria Luíza. Não se tratava, portanto, de um filho que ele tivesse tido “fora do casamento” com Ivanira e que, portanto, precisasse ou preferisse esconder. (Teria sido difícil, depois da matéria na Veja.) Mas, curiosamente, a filha Ana Catarina nunca ouviu falar desse irmão mais velho. Terá sido um grosseiro erro de atribuição do redator? Provavelmente, sim. Na verdade, depois que um conhecido jornalista contemporâneo, Mario Sérgio Conti, “entrevistou”, em 2014, pleno ano da Copa do Mundo de Futebol (e publicou o resultado em página inteira da Folha de S. Paulo), um falso Luís Felipe Scolari, treinador da seleção brasileira, sem se dar conta de que estava sendo enganado, qualquer outra barriga parece possível.[4]
Deixo o lado pessoal e volto ao foco deste artigo. No seu ofício de jornalista, profissão que atraiu tantos talentos de primeira grandeza ao Rio de Janeiro dos anos 1940-70, Luís Alípio de Barros conviveu com figuras destacadas da intelectualidade brasileira – especialmente, a intelectualidade boêmia. Já em 1944, entrevistou para O Cruzeiro, de uma só vez, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Leda Maria de Albuquerque, Nelson Rodrigues, Antonio Accioly Netto, Dinah Silveira de Queiroz, Emil Farhat, Graciliano Ramos, Millor Fernandes e Rachel de Queiroz. A maioria desses poetas, contistas e romancistas trabalhava ao seu lado, na mesma redação. Pô-los todos juntos, numa única reportagem, entretanto, não era para qualquer um, de modo que aquela matéria terminou sendo o atestado de que o Rio, ao primeiro combate, se havia rendido a Luís Alípio de Barros.[5]
Dize-me com quem andas...
Estão começando a entender por que dei esse título ao presente artigo? Foi porque Luís Alípio Gomes de Barros tinha berço, sim, (bolsa, não), mas se elevou na vida não devido a isso e, sim, ao seu próprio esforço, em primeiro lugar, e às boas companhias que escolheu para si, em segundo.
De fato, O Cruzeiro era um conglomerado de luminares. O expediente da revista (em 17/8/1946) relacionava como colaboradores, além do próprio Luís Alípio, entre outros, Dinah Silveira de Queiroz, Leda Maria de Albuquerque, Adalgisa Nery, Lia Correia Dutra, Odorico Tavares, R. Magalhães Junior, Emil Farhat , Nelson Rodrigues, Guilherme Figueiredo, Orígenes Lessa, Agripino Grieco, Ledo Ivo, Adonias Filho, Raimundo Souza Dantas, Herberto Sales, Marques Rebelo e José Lins do Rego. Copiei apenas aqueles nomes já meus conhecidos.
Como titulares de seção, tinha O Cruzeiro Austregésilo de Athayde, Rachel de Queiroz, Millor Fernandes, Péricles (o do “Amigo da Onça”), Franklin de Oliveira, Frederico Chateaubriand, Antonio Accioly Netto, David Nasser, Dácio Pinheiro, Alex Viany, Helena B. Sangirardi, José Teles, Hélio Fernandes e Genolino Amado. No Departamento Fotográfico, uma equipe de cinco, despontava Jean Mazon; Alceu Pena e Tomás Santa Rosa integravam o Departamento Artístico.[6]
Tudo gente com pouco berço e muita cabeça. Nosso alagoano começara bem. E assim continuaria. Em 1952, foi citado por Vinícius de Morais numa matéria em que este tentava justificar seu medo de avião. O poetinha, Alex Viany, Alberto Cavalcanti (cineasta brasileiro que foi trabalhar na Europa, onde ganhou vasto prestígio) e Luís Alípio estavam juntos em voo quando a aeronave sofreu sérios problemas, tendo de fazer um pouso emergencial. O pânico do grupo só não foi compartilhado por Alberto Cavalcanti, que, dormindo estava, dormindo continuou a estar, durante todo o tempo.[7]
No mesmo ano, Luís Alípio reuniu-se a um grupo de intelectuais para enviar telegrama de apoio ao candidato a governador de Pernambuco Osório Borba (que, entretanto, perderia por larga margem a eleição para Etelvino Lins). Subscreveram a mensagem, além do jornalista alagoano, Manuel Bandeira, Gastão Cruls, José Lins do Rego, Álvaro Lins, Lúcio Rangel, Rachel de Queiroz, José Condé, João Condé, Guilherme Figueiredo, José Auto (também alagoano), J. G. de Araújo Jorge, Luís Camilo de Oliveira Torres, Otávio Tarquínio de Souza, Emil Farhat, Rubem Braga, Odilo Costa Filho, Vinícius de Morais, Prudente de Moraes Neto e Pompeu de Souza.[8]
Em 1953, Luís Alípio estreou na Rádio Clube do Brasil, então chefiada pelo romancista Marques Rebelo. Do programa “Falam os críticos” (levado ao ar todas as sextas-feiras, aos 23 minutos depois da meia noite – ah, como intelectual boêmio gosta de uma madrugada!) participavam Adonias Filho, Josué Montello, (Tomás?) Santa Rosa, Reinaldo Jardim, João Cabral de Melo Neto, e outros do mesmo naipe. Além de Luís Alípio, claro.[9]
Ainda em 1953, ele ajudou a criar a revista Flan, pertencente à Última Hora. Estavam ao seu lado como repórteres, redatores ou colunistas, Joel Silveira, Justino Martins, Antonio Olinto, Nelson Rodrigues, Jean Mazon, Hermes Lima, Marques Rebelo, Carlos de Laet, Vinícius de Morais, Dorival Caymmi, Otto Lara Resende, Hélio Pelegrino, Augusto Rodrigues, e os chargistas Lan e Nássara. A revista escreveu, em anúncio comercial: “é este o Quadro A [equipe titular, no jargão da época] de Flan: um quadro de ases do jornalismo”. Menos de dez anos depois de deixar a pequenina Maceió (com uma breve estada no Recife) o filho de Laurentino Gomes de Barros já se via incluído entre os “ases do jornalismo” no Rio de Janeiro.[10]
Intelectuais do cinema
Quando se cogitou criar um Círculo Brasileiro de Críticos Cinematográficos, todos os colunistas especializados que atuavam na imprensa carioca foram convidados. Estavam entre eles: Antonio Moniz Vianna, Ely Azeredo, Hugo Barcelos, José Amádio, Luís Alípio de Barros e Salvyano Cavalcanti de Paiva. Eram os intelectuais do cinema.[11]
No ano seguinte, foi organizada uma homenagem ao Comendador Ventura (que ninguém mais era que Luís Alípio de Barros) pelo sucesso de sua coluna “Ronda da Meia Noite” na Última Hora. Quem promoveu a festa foi o Clube da Chave, “curiosa e magnífica entidade que congrega um belo grupo de artistas, intelectuais e boêmios desta cidade de São Sebastião”.[12]
Não era um clube qualquer: “Em 1953, Tom Jobim passou a frequentar o Clube da Chave. (...) Criado por Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga, [o Clube] tinha um número limitado de sócios, a maioria artistas e intelectuais. Cada um deles possuía a chave da porta principal. Entre eles Sivuca, Luiz Gonzaga, Dick Farney, Johnny Alf, Dolores Duran, Antonio Maria, Vinicius de Moraes”.[13]
Ibrahim Sued, cronista social mais prestigiado do Rio de Janeiro, deu ampla cobertura ao evento: “O amigo Luís Alípio de Barros (Comendador Ventura) foi devidamente homenageado na noite de segunda-feira no Clube da Chave. O jovem jornalista recebeu de parte dessa gente de rádio, teatro e cinema uma consagração”. O colunista (que, segundo Stanislaw Ponte Preta, era burro) prosseguiu:
Em uma noite com show, discursos e drinques, reuniram-se para homenagear o Comendador figuras de nossa sociedade, como o sr. e sra. Jorge Guinle, o sr. e sra. Carlos de Laet, galãs de cinema, como os senhores Cill Farney, José Lewgoy; artistas do rádio Manoel Barcelos, Ângela Maria, Pau de Arara, Lúcio Alves, Grande Otelo, Antonio Maria, Jorge Veiga e Marly Sorel. Gente de teatro: Silveira Sampaio, Teófilo de Vasconcelos, Jorge Dória. Gente da imprensa: Darwin Brandão, Paulo Pereira, Carlos Brasil, Leon Eliachar, Doutel de Andrade, Oscar Bloch e, ainda, o maestro Eleazar de Carvalho...[14]
Tom Jobim deve ter faltado, naquela noite. Ou, então, ainda não tinha notoriedade suficiente para ter a presença reconhecida. Mas, o Clube da Chave não era o único ambiente, nem tinha sido o primeiro, onde se congregavam intelectuais boêmios e artistas no Rio de Janeiro. Alguns anos à frente, numa reportagem nostálgica sob o título “Para onde vai a inteligência (quando não está pensando)”, Salvyano Cavalcanti de Paiva relembrou os bares e restaurantes nos quais se reunia a intelectualidade carioca, desde antes da Segunda Guerra.
Naquele momento (1961), testemunhava ele, “o reduto mais recente da nata notívaga do Rio de Janeiro é o Alfredão, espécie de cantina, bar ou restaurante que fica nos confins do Leblon”. Mas, antes, tinha havido as épocas do Vermelhinho (anos trinta) e do Alvadia. Este bar, que fica na Cinelândia e ainda existe, atraiu, nos anos quarenta, um importante grupo de estudiosos de cinema: “a Cinelândia ainda era o centro do mundo das diversões, inclusive com teatros. Era de ver, a partir da tardinha e madrugada adentro, a rapaziada que renovaria a crítica do Brasil, em intermináveis colóquios sobre neorrealismo italiano, ritmo americano, cine clubismo.”[15]
Salvyano Cavalcanti de Paiva continuou:
Heróis da literatura cinematográfica, futuros grandes colunistas, diretores, atores (e atrizes), os Alvadia Boys (e as Alvadia Girls) marcaram época. Vêm à lembrança Hugo Barcelos e Jonald (Oswaldo Marques de Oliveira), Luís Alípio de Barros e Jorge Ileli, Lima Barreto e Anselmo Duarte, Décio Ottoni e Clóvis de Castro, o nosso Moniz Vianna e Hélio Souto. Da primeira geração nasceu, no apartamento de Luís Alípio, casadinho de novo, o famoso Círculo de Estudos Cinematográficos, de efêmera vida e gloriosa memória.[16]
Luís Alípio de Barros também fez parte da turma do Pasquim, célebre tabloide humorístico-noticioso de oposição à ditadura militar, que circulou entre os anos de 1968 a 1991. Foi companheiro, portanto, pelo menos nas páginas impressas, de Millor Fernandes (seu velho amigo, com quem dividira, anos antes, um apartamento gigante em Copacabana), Paulo Francis, Ivan Lessa, Ruy Castro, Fausto Wolff, Antonio Callado, Rubem Fontoura, Glauber Rocha, Ziraldo, Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral (o verdadeiro – pai do falso, ex-governador do Rio de Janeiro, atualmente preso por corrupção), Miguel Paiva, Claudius, Fortuna, entre outros.[17]
Turma da pesada.
... E te direi quem és?
Desfrutando de tão boas companhias, mas, sobretudo, sabendo delas aproveitar, Luís Alípio Gomes de Barros foi longe. Que diferença – em meio a tantas semelhanças – entre sua história e a do primo legítimo Mario Brandão Maia Gomes, que contei em artigo referido na nota seguinte. Os dois foram jornalistas, ambos tinham interesse em literatura, tanto um como outro vinham do mesmo “berço” alagoano (embora Mario tivesse nascido na Bahia) e os dois deram o passo idêntico de se mudar de Maceió para o Rio de Janeiro.[18]
Daí para diante, contudo, tudo seria diferente, Mario que na capital alagoana participara ativamente do movimento cultural dos anos 1920, sucumbiu no Rio de Janeiro, para onde vinha e de onde voltava, a cada três, quatro anos, pulando de um emprego precário e ruim para outro ainda mais precário e pior. Também era boêmio e bebedor, mas, pelo que pude saber, nunca teve amigos ou, sequer, companheiros de bar de seu nível intelectual. Aos cultos, preferiu as putas. (Ou, talvez, foi esnobado por aqueles e acolhido por essas?) Não sei se ele e Luís Alípio chegaram a se encontrar, alguma vez, em Maceió, por exemplo, onde ambos moraram durante algum tempo. (O baiano era bem mais velho do que seu primo; Mário saiu de Maceió para o Rio quando tinha 24 anos. Na mesma ocasião, Luís Alípio tinha apenas dez anos.) No Rio, nunca se viram: antes de o primo ali chegar, Mario deu cabo da vida navalhando o próprio pescoço.
O percurso de Luís Alípio Gomes de Barros (cuja mãe, Amália, era irmã de Alípio Maia Gomes, pai de Mário Brandão) foi completamente diferente. Boêmio, porém responsável, ele fez carreira brilhante como jornalista e intelectual. Viveu o Rio de Janeiro magnífico, inebriante, inigualável, dos anos quarenta, cinquenta e sessenta do século passado; conviveu com todo aquele povo intelectualmente privilegiado. Ah, ia esquecendo, (já aludi a isso, mas preciso dar detalhes): em data que não consegui especificar (deve ter sido meados dos 1940), Luís Alípio, Freddy Chateaubriand e Millor Fernandes alugaram juntos um apartamento de sete quartos e três banheiros na Avenida Atlântica, Copacabana. Uma exuberância, que devia custar uma nota. Ali, desconfio seriamente, os três tomaram muito uísque, receberam amigos e mulheres e tiveram conversas inteligentes. Tudo somado, mais do que compensou o investimento.[19]
“Nunca houve uma mulher como Gilda”, diziam os cartazes do filme de 1946, com Rita Rayworth no papel principal, e que Luís Alípio Gomes de Barros, certamente, comentou nas páginas de O Cruzeiro ou de A Cigarra Magazine. Se a frase era verdadeira, em relação a Gilda, não sei. Mas, seguramente, nunca houve – no Brasil, pelo menos – uma cidade como o Rio de Janeiro dos anos quarenta e cinquenta e sessenta do século passado. Egresso da pequena Maceió, onde tinha berço, mas não teria encontrado estímulos intelectuais que lhe satisfizessem a curiosidade, Luís Alípio soube aproveitar bem sua estada neste mundo, o único que temos ou teremos.





[1] Salvyano Cavalcanti de Paiva, “Antologia de cronistas cariocas, VI: Luís Alípio de Barros”. A Cena Muda, 18/1/1951, pág. 14.
[2] Obtive essas informações diretamente de Maria Ivanira e de Ana Catarina, por telefone (30/3/2017), graças à intermediação de Lisiana Cansanção, a quem agradeço.
[3] “A última viagem do Rei”. Veja, n. 213, 4/10/1972, pág. 73.
[4] Contato telefônico com Ana Catarina, filha de Luís Alípio, em 30/3/2017.
[5] O Cruzeiro, 17/11/1945, págs. 72-73.
[6] O Cruzeiro, 17/8/1946, pág. 90.
[7] Vinícius de Morais, “Batizado na Penha”, Última Hora, 13/11/1952, pág. 11.
[8] Tribuna da Imprensa, 22/10/1952, pág. 10.
[9] Fon Fon, 28/2/1953, pág. 12.
[10] Última Hora, 10/4/1953, pág. 5.
[11] Tribuna da Imprensa, 1/10/1953, pág. 8.
[12] Última Hora, 4/5/1954, pág. 1.
[14] Coluna de Ibrahim Sued. Diário da Noite, 5/5/1954, pág. 14.
[15] Salvyano Cavalcanti de Paiva. “Para onde vai a inteligência (quando não está pensando)”. Correio da Manhã, 4/8/1961, pág. 1, 2º Caderno.
[16] Salvyano Cavalcanti de Paiva. “Para onde vai a inteligência (quando não está pensando)”. Correio da Manhã, 4/8/1961, pág. 1, 2º Caderno.
[17] Disso, fiquei sabendo por sua filha Ana Catarina, em telefonema de 30/3/2017. O Pasquim, infelizmente, continua fora dos arquivos digitalizados, seja da Biblioteca Nacional, seja de qualquer outra instituição.
[18] Gustavo Maia Gomes. “Mario Acorrentado Brandão”, em Blog Gustavo Maia Gomes, 15/3/2017, disponível em http://gustavomaiagomes.blogspot.com.br/2017/03/gustavomaia-gomes-versao-preliminar-de.html
[19] A informação sobre o apartamento da Avenida Atlântica está na Veja (20/12/1972, pág. 75).

segunda-feira, 27 de março de 2017

Atilio Elizagaray, 70 anos

Gustavo Maia Gomes

Na vida, fiz muitos amigos. Vários bons, poucos grandes e dois acima de qualquer adjetivo. De um desses, já falei ("Tributo a Vicente Moreno Filho", blog Gustavo Maia Gomes, 2/12/2013), quando ele recebeu o título de Cidadão Honorário do Recife. Do outro, que ontem comemorou seu septuagésimo cumpleanos (Oh, palavra bonita!) em La Plata, Argentina, falo agora.
Sei que não estou sozinho. Pois Atílio Elizagaray teve muitos amigos brasileiros na pós-graduação em Illinois, EUA, nos idos dos 1980, e a todos conquistou com sua alegre seriedade. Cito, especialmente, Jose Raimundo VergolinoMaurício Costa Romão e Lincoln Coutinho de Aguiar (falecido). Mas, há muitos outros, que me desculpo por não nominar.
Atílio Elizagaray obteve seu doutorado em Economia em 1984. Fomos, ambos, discípulos do grande professor Werner Baer, falecido há quase exatamente um ano. Diplomado, ele voltou para sua terra e se tornou professor da Universidade de La Plata, na simpática cidade capital da província de Buenos Aires. Especializou-se em finanças públicas o que, na Argentina, como no Brasil, tem levado muitos estudiosos à depressão. (Ele, felizmente, escapou de tão inglório destino.)
Com os diplomas de Ph. D. na mão, conseguimos fazer algumas (infelizmente, poucas) atividades acadêmicas juntos, a mais importante delas sendo participar, como co-autores, de um livro editado por Alberto Porto ("Economia de la educación universitaria: Argentina, Brasil, Peru", La Plata, Edulp, 2005.) Foi Atílio, naturalmente, que me incluiu naquele círculo. Assim, cheguei a dar uma palestra em sua universidade, quando era diretor do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, à época, vinculado ao Ministério do Planejamento.)
Em 2002, fomos, ambos conferencistas em seminário sobre desenvolvimento regional que ajudei a organizar em Sevilha, Espanha. Cinco ou seis anos depois, em evento acadêmico promovido por Alexandre Rands Barros (hoje, um dos donos da Datamétrica Telemarketing e do Diário de Pernambuco; então, professor da Universidade Federal de Pernambuco), voltamos a nos encontrar. O local não poderia ser melhor: a praia de Porto de Galinhas (Ipojuca, PE). Por aquela época, Atílio ainda tinha esperança de entender as finanças públicas de seu país. Hoje, imagino que tenha desistido.
Quando Atílio e Mirta Freccero se casaram, em 1991 (ou 1992?), escolheram Olinda (PE) para passar a lua-de-mel. Meus filhos gêmeos ("gemelos") Pedro e Daniel eram muito novos. Alguns meses depois, nasceriam os gêmeos ("mellizos") Lucas e Maia Lina, filhos de Mirta e Atílio. Os quatro, ainda hoje, têm contacto, embora esporádico, pelo Facebook.
Nosso encontro mais recente ocorreu há dois meses, na praia de Pipa (RN), onde ele, Mirta e a irmã dela, Maria Cristina, com o marido, desfrutavam de curtas férias. Acompanharam-me minha mulher, Lourdes Barbosa (que também está acima de qualquer adjetivo) e minha filha Gabriela, que fez sucesso entre os argentinos visitantes. (Segundo eles, por sua beleza.)
Grande Atílio. Continue por muitos anos a ser a pessoa extraordinária que você sempre foi. Quanto às finanças públicas de seu país, console-se. Os brasileiros, tampouco, entendemos a irracionalidade das nossas.
(Na foto, que colhi na internet, Atilio Elizagaray faz uma intervenção em evento da Universidade de La Plata.)

domingo, 26 de março de 2017

Outras reflexões do Comendador Ventura: Turismo em Maceió; comes e bebes no Recife (1965)

Gustavo Maia Gomes

Não bastassem os relatos sobre sururus, pitus, ostras e camarões com que brindara seus leitores cariocas no dia 31 de janeiro de 1965, Luís Alípio de Barros, o Comendador Ventura, apenas uma semana depois, voltou a falar de Maceió – e do Recife - em sua coluna “Não morra pela boca”. Dessa vez, quanto a Maceió, enfatizando o potencial turístico da cidade.

É certo que faltam a Maceió, a capital do pequeno estado nordestino de Alagoas, bons hotéis e, por que não dizer, bons restaurantes. Porém, tirante Salvador e até certo modo Recife, talvez nenhuma outra cidade acima da capital baiana possua tantas condições para o turismo. Pois, em matéria de belezas naturais, a capital alagoana e adjacências têm tantos detalhes atraentes que seria muito longo enumerá-los todos numa simples coluna de jornal.

O velho Atlântico deu a Maceió praias admiráveis, como as de Sobral e de Pajuçara, com um mar admirável. No rumo sul, temos, ainda dentro da cidade, a praia do Pontal da Barra, belíssima. No rumo norte, as praias são sem conta: Ponta Verde, Jatiúca e, mais adiante, Riacho Doce, Ipióca, Paripueira, etc.

Como outro detalhe físico encantador e surpreendente, [tem Maceió] a grande lagoa Mundaú com Coqueiro Seco, Fernão Velho, etc. Do outro lado, chegando a outra magnífica lagoa, a Manguaba, através de lindos canais de margens cobertas de coqueiros, [há] o roteiro de Volta D’Água, Bica da Pedra, Ilha de Santa Rita (que dizem ser a maior ilha lacustre do mundo), do Cumbe, que leva a Marechal Deodoro (a antiga capital) e a Pilar.

[É o roteiro, repito, que leva à] velha e bela Manguaba, para quem os bagres (peixe gostosíssimo) são tão característicos como o sururu (marisco que é o “prato de guerra” da culinária da capital alagoana) [o são] para a lagoa Mundaú.

Quando os conheci, devo registrar, os bagres da Lagoa Manguaba não me pareceram tão gostosos assim. Mas esse é um detalhe. A avaliação de Luís Alípio, por outro lado, se revelou bastante precisa no seu ponto mais importante: Maceió tornou-se, deveras, nos últimos trinta anos, um dos maiores polos turísticos do Nordeste. E seus atrativos são aqueles mesmos destacados pelo Comendador Ventura: belezas naturais, praias, sobretudo.

Tendo também visitado o Recife na mesma viagem, Luís Alípio acrescentou algumas informações interessantes, além das que já havia contado uma semana antes:

Baixou bastante o preço da cerveja no Nordeste, com a inauguração da grande fábrica da Brahma na cidade pernambucana do Cabo, a 30 quilômetros do Recife. Daí, quando se pede uma Brahma ao garçom, diz-se assim: “Me traga uma Cabo 30”.

Continuam firmes as peixadas [do bairro litorâneo da Zona Sul] do Pina, na capital pernambucana. Principalmente, no Maxime. E o velho Leite (ali bem pertinho do Cinema Moderno) continua a ser o restaurante de tradição do Recife. (...) Assim como o sorvete do Gemba (o japonês), na Rua da Aurora, continua a ser o mais procurado, apesar de no Recife haver melhores sorvetes de frutas.

Eu, certamente, me lembro da sorveteria Gemba, que ficava próxima ao cinema São Luís. Mas, nessa mesma época, eu apreciava mais os sorvetes de frutas da Ki-Sabor (que, depois de uma briga na Justiça com a Kibon, trocou de nome para Fri-Sabor.) A Fri-Sabor existe até hoje. Recentemente, foi adquirida por gente com algum dinheiro, que resolveu dar uma modernizada na forma de apresentar e vender o produto. O sorvete atual não chega a se comparar, em qualidade, com o que o Comendador Ventura e eu conhecemos, em 1965. Mas não é ruim, tampouco.


[Os trechos em destaque são do Comendador Ventura (Luís Alípio de Barros). “As confissões de um alagoano imparcial”. Coluna "Não morra pela boca". Última Hora, RJ, 6/2/1965, pág. 13.]

Sururus, carapebas, pitus e o Bar das Ostras na Maceió dos anos 1960

Gustavo Maia Gomes




Aguente um pouco, leitor. Antes dos sururus, carapebas, pitus e ostras que faziam a delícia dos paladares alagoanos, quero falar de meu primo Luís Alípio Gomes de Barros. Já digo quem foi ele. No dia 30/5/2015, O Globo publicou carta em que o leitor José Hamilton Moniz do Amaral corrigia erro anterior do jornal. Dizia o missivista:

"Gostaria de fazer justiça ao real pioneiro do jornalismo gastronômico, Luís Alípio de Barros. Entre os anos 1950 e 1960, sob o pseudônimo de Comendador Ventura, ele assinou a coluna ‘Não morra pela boca’, na Última Hora [do Rio de Janeiro]". (O Globo, 30/5/2015, pág. 15.)

A primeira “Não morra pela boca” que consegui resgatar foi a do dia 9/9/1961, mas isso não exclui a possibilidade de que outras tivessem sido publicadas antes. (A última que localizei foi de 1984.) Falar em jornal sobre restaurantes e gastronomia, que hoje virou moda, há 60 anos, era uma novidade. Representou, contudo, uma coisa natural para Luís Alípio, que já escrevia na Última Hora sobre cinema e vida noturna.

Das usinas de açúcar aos cinemas e jornais

Filho de Laurentino Gomes de Barros e de Amália Maia Gomes, Luís Alípio nasceu em Murici (AL), no mesmo ano (1920), ou pouquíssimo depois (1921?) de criada a Usina Campo Verde. Seu pai foi um dos sócios da empresa Maia & Cia., fundada pelos cunhados Juvenal, José, Jovino, Antonio e Fernando Maia Gomes (e por ele próprio, Laurentino) com o objetivo específico de construir e operar uma indústria de açúcar. Quatorze anos depois, Laurentino desligou-se da Campo Verde e foi construir sua própria usina (a Santa Amália), na região do Alto Camaragibe alagoano.

Nessa época (1934), deduzo a partir de informações ainda muito precárias que consegui reunir, Luís Alípio morava e estudava em Maceió. Uma matéria sobre ele (Salvyano Cavalcanti de Paiva, “Antologia dos cronistas cariocas: Luís Alípio de Barros”, revista A cena muda, RJ, 18/1/1951, pág. 14) afirma que o futuro jornalista “começou a ter interesse pelo cinema nos tempos do Cine Delícia, cinema mudo da Rua do Sol, onde assistiu aos mais notáveis clássicos silenciosos”.

Em 1944, já o descubro ocupando posição de realce na imprensa carioca, titular que era da seção “O mundo dos livros” da revista O Cruzeiro. Ao mesmo tempo, colaborava com vários jornais, mas , quando Samuel Wainer fundou a Última Hora (1951), Luís Alípio de Barros transferiu-se de armas e bagagens para lá, onde viria a assinar a coluna de cinema com seu nome real e outra, sintomaticamente chamada “Ronda da Meia Noite”, com o de “Comendador Ventura”.

Tendo de reduzir as atividades jornalísticas para assumir um cargo administrativo na Última Hora, Luís Alípio pôs o Comendador na geladeira, por assim dizer. Mas, só por um tempo. Em 1961, o personagem boêmio e um tanto cínico (que, na verdade, fora criado pelo cartunista argentino Divito, anos antes) retornaria assinando a já mencionada coluna gastronômica “Não morra pela boca”.

Recordações gastronômicas de uma viagem a Maceió (e a Goiana, Caruaru...)

Embora definitivamente fixado ao Rio de Janeiro, Luís Alípio de Barros, vez por outra, vinha ao Nordeste. Depois de uma dessas visitas, escreveu na sua coluna, o seguinte (copio, mas edito um pouco, para maior brevidade):

Coluna "Não morra pela boca" 
(Última Hora, RJ, 30/1/1965)

Comendador Ventura

De vez em quando, acontece: o sururu some da Lagoa Mundaú. No momento, mesmo, não há sururu nos cardápios de Maceió. Falta o precioso molusco, o “prato da guerra” dos alagoanos. O motivo foi o inverno rigoroso de 1964, que fez o Rio Mundaú despejar na lagoa de mesmo nome um impressionante volume de água doce.

Problema idêntico ao do sururu foi criado para as ostras da formidável lagoa. As famosas ostras também andam como que desaparecidas, fazendo que no popular “Bar das Ostras”, restaurante de instalações rústicas na margem da Mundaú e dentro de Maceió, conhecido hoje no Brasil inteiro, não se possa servir, provisoriamente, a atração culinária que lhe dá o nome.

Mas, no "Bar das Ostras" podem-se comer os melhores camarões do Brasil, assim como respeitabilíssimas peixadas. É bom que se frise que Maceió não está muito bem servido de restaurantes. Tirante o “Bar das Ostras”, que é um restaurante típico e de instalações precárias, o que há mesmo, como casa atraente e simpática, muito bem instalada e dominando uma das mais belas praias do mundo, é o restaurante do tradicional Clube Fênix Alagoana.

Ali come-se bem, uma comidinha trivial, com um ou outro prato da terra. Será, sem dúvida, o mais “internacional” restaurante da capital alagoana. Em matéria de ambiente, então, a coisa funciona esplendidamente. O restaurante, mesmo pertencendo a um dos clubes mais fechados em suas atividades sócio-recreativas, é aberto ao público. Para o visitante, é um achado, numa cidade praticamente sem restaurantes, como é Maceió.

Pitu, uma maravilha

Quem de vocês que nos estão lendo, neste momento, comeu já uma pitusada? Alguns poucos, certamente. Os que já comeram sabem, mas os que ainda não comeram não podem imaginar as delícias de uns pitus cozidos (com casca e tudo) acompanhados com o pirão feito com o próprio caldo da pitusada.

Lagosta mirim (ou um camarão maior?), o pitu é uma das preciosidades dos rios nordestinos. O velho Mundaú, que o inolvidável Jorge de Lima [poeta alagoano, nascido em União dos Palmares, 1893-1953] consagrou em versos de rara beleza, é um rio onde proliferam os pitus. Aquele que come uma pitusada do Mundaú jamais esquece.

Mas é preciso parar algum tempo em Alagoas para conseguir provar dos pitus maravilhosos do Mundaú. Ou de outros rios. Uma pitusada regada a um “branco” seco, geladinho, ou a cervejotas, destas de tinir, de geladas.

Carapeba, outra maravilha

Não sabemos como ele se chama em outras regiões e outros mares, mas no Nordeste há um peixe que se conhece como carapeba. É pequeno, até certo ponto, com uma forte camada de espinhas dividindo suas carnes. Mas, quando frito, é dos mais gostosos peixes que este velho Comendador conhece.

Especial para um começo de conversa no almoço ou no jantar. Ou para ser enfrentado, em horas outras, na base de uma “abrideira”, de uma cervejota ou de um “branco” seco. A carapeba frita está para o nordestino assim como as sardinhas assadas estão para os portugueses... Não se sabe qual seja a melhor.

Umas e outras

[Nem tudo é Maceió, porém.] Bom danado é também ir a Goiana (PE) a 35 quilômetros do Recife, para comer uns guaiamuns (caranguejos) no “Buraco da Jia”. Ou ir a Caruaru (PE), para uma carne de sol de verdade. Lá para as bandas de Caruaru, Pesqueira, Arcoverde, come-se uma carne-de-sol de se tirar o chapéu (de couro).

Uns camarões de água doce (camarões de rio) têm seus encantos. São uma das preciosidades do Nordeste brasileiro. Quando aparecerem por lá, tentem encontrar uns camarões de água doce. Torrados, cozidos ou fritos no azeite de oliva, são geniais. De modo principal, em horas extra almoço ou jantar, ou melhor, na hora do drinque.

Provem, um belo dia, e verão se este velho Comendador não tem razão. [Mas, deixando os camarões,] há um botequim, em Maceió, o “Carne Assada”, na Praça Deodoro, que serve uma carne assada com feijão (especial) que é de se repetir e repetir... (Última Hora, RJ, 30/1/1965, pág. 12.)

E hoje (2017)?

Contrariamente ao que Luís Alípio de Barros, o Comendador Ventura, observou em 1965, a Maceió de hoje é bem suprida de restaurantes. Posso citar, pela própria experiência e com a ajuda de minha mulher Lourdes Barbosa, como bons ou aceitáveis o Massarella, o Basilico, o Santo Orégano, o Lopana, o Imperador dos Camarões, o Wanchako, o Picuí, o Akuaba, o Divina Gula, o Maria Antonieta, o Armazém Guimarães, o Peixarão...

Deve haver muitos outros. Recentemente, tivemos uma reunião de família no Maria Antonieta, que não me decepcionou. (Ao contrário.) A pizza do Armazém Guimarães também se tornou bem conhecida de mim e de meus habituais companheiros de viagem, como Lourdes e meu irmão Ivan. Gosto dela. O Imperador dos Camarões se destaca, sobretudo, pelos seus preços. (Há uma promessa de que, um dia, a qualidade da comida um dia fará jus a eles.) Ivan, Murilo Lins Marinho, Naia Gomes de Freitas, Arnoldo Gomes de Barros e eu almoçamos, recentemente, no restaurante do Hotel Jatiúca, que eu achei muito bom.

A proliferação de restaurantes em Maceió responde, diretamente, ao grande aumento de turistas que a cidade passou a receber, nos últimos vinte anos. Talvez já não seja tão fácil encontrar, no circuito gastronômico mais badalado da capital alagoana uma boa pitusada do Mundaú, ou carapebas, sururus, camarões... O Bar das Ostras, penso eu, já não existe. Na minha última visita, talvez há uma década e meia, ele  funcionava em outro endereço e tentava ser um restaurante chique. Não deu certo. Nem podia.

Ainda há carapebas em Maceió, mas são raras. Papai as adorava.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Aventuras do Ventura


Luís Alípio Gomes de Barros (falecido em 1991) nasceu em Maceió, mas fez, praticamente, toda a carreira de jornalista no Rio de Janeiro. Em 1944, já mantinha a seção “Mundo dos Livros”, na célebre revista O Cruzeiro. Passou por vários jornais cariocas, até se fixar na Última Hora, desde a criação desta, em 1951, até 1984 (quando, para todos os efeitos, o matutino deixou de existir).

Na capital federal, o alagoano, filho de Laurentino Gomes de Barros e Amália Maia Gomes, tornou-se conceituado crítico de cinema e notívago de primeira grandeza. Durante anos, escreveu quase sozinho a página 9 da Última Hora, onde mantinha duas colunas, uma ao lado da outra: “Cinema” e “Ronda da Meia Noite”. Na primeira, ele se identificava pelo seu nome de batismo; na segunda, era o “Comendador Ventura de Sá”. 

Transcrevo, abaixo, uma parte da coluna “Onda & Ondas” escrita por "Marijô" e publicada no dia 9 de abril de 1954. Não tenho mais informações sobre quem teria sido "Marijô". 

PRA QUÊ! ...
[Marijô, na coluna Onda & Ondas]

O negócio foi assim: ontem, na redação, estava tudo calmo. Poucos redatores trabalhando. À nossa frente, Nelson Rodrigues terminando sua “Vida como ela é” [conhecida coluna do jornalista e teatrólogo pernambucano] matava um pai deixando dezenove filhos na orfandade, mais a esposa e a sogra. Mais adiante, o Comendador Ventura trabalhava na sua “Ronda”. E, mais longe, Otávio Malta [também pernambucano, comunista, um dos fundadores de Última Hora, com Samuel Wainer], nosso diretor secretário, batia na sua máquina portátil.

Estava mesmo uma quietude gostosa que nem ela só.

Pois foi nesse momento que, por dever de ofício, ligamos o rádio para ouvir alguém berrar assim mesmo:

-- E agora, passamos a transmitir a “Voz do Brasil”.

Nossa Senhora. Pra quê? Pra quê?

O Comendador Ventura caiu, estatelado de pernas pro ar, da cadeira onde estava sentado! ... Plén! ... E olha o barulho de vidro quebrado! E olha o pote de goma em cima do pobre! O Otávio Malta, coitado, engoliu a máquina de escrever! E o Nelson Rodrigues acabou matando os dezenove órfãos, a sogra, a esposa e toda a raça!

Cruzes! Deus que nos perdoe!

Só a gente aguentou a mão.

Raios de profissão!

(Última Hora, Rio de Janeiro, 9/4/1954, pág. 9)