terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Vietnam, 1965-75 (Crônicas do Mundo, IV)

Gustavo Maia Gomes

As “Crônicas do Mundo” tratam de eventos e processos políticos e econômicos internacionais nos últimos 60 anos. Foram motivadas pela leitura de quatro livros extraordinários: Era dos Extremos, de Hobsbawm; Pós-Guerra, de Judt; A revolução de 1989, de Sebestyen; e Ascensão e Queda do Comunismo, de Brown. (Veja as referências completas ao final deste texto.)
Chefe de Polícia de Saigon executa suspeito de colaborar com guerrilheiros, em   




















Ambientada no conflito ideológico e de arsenais militares entre a União Soviética e os Estados Unidos, a Guerra do Vietnam (na verdade, a segunda, pois a primeira terminara em 1953, com a vitória parcial dos nacionalistas / comunistas de Ho Chi Minh sobre a França) dominou o noticiário internacional durante dez anos.
Foi uma clara intervenção americana em assuntos que deveriam ser internos (embora o então Vietnam do Norte tivesse o apoio da China comunista). E que intervenção: se as fontes – neste caso, não citadas – de Hobsbawm (pág. 215) estiverem certas, os Estados Unidos despejaram ali “um volume de explosivos maior do que o empregado em toda a Segunda Guerra Mundial”.
Desastre
Do começo ao fim, a Guerra do Vietnam foi um desastre militar, econômico e político para os Estados Unidos e, em médio prazo, o mundo. Desastre militar, pois o envolvimento dos EUA foi se tornando cada vez maior (no pico, meio milhão de soldados americanos estavam em combate no Sudeste asiático), enquanto os resultados iam ficando cada vez mais desfavoráveis, até a derrota final.
Desastre econômico: os pesados gastos militares provocaram emissão de moeda acima do tolerável, gerando, nos EUA, inflação e desequilíbrio externo. O excesso de dólares em circulação e seu reflexo inflacionário tornaram impossível manter as taxas fixas de câmbio e a conversibilidade em ouro da moeda americana, dois pilares do comércio internacional, desde os acordos de Bretton-Woods (1944): em 1971, o presidente Nixon decretou o fim da conversibilidade do dólar. Dois anos antes de a guerra acabar, num movimento com raízes nos mesmos fatores econômicos, além de outros mais propriamente políticos, a OPEP multiplicou por quatro o preço em dólar do barril de petróleo, lançando o mundo em grave crise.
Desastre político: externamente, a guerra suscitou oposição de todos os lados, desgastando a imagem dos Estados Unidos e sua capacidade de liderar os aliados; internamente, o país se dividiu entre os que apoiavam e os que eram contra a continuação da guerra. Surgiu um poderoso movimento pacifista, com os jovens (sobretudo, aqueles em idade de ser convocados) fazendo protestos e engrossando a corrente de opinião que não via sentido em enviar compatriotas para morrer lutando por objetivos obscuros em terras alheias. A confiança pública nas instituições, como o Exército, declinou a níveis sem precedentes.
Por quê?
É quase impossível compreender, diz Hobsbawm (pág. 241), por que os EUA “foram se envolver numa guerra condenada, contra a qual seus aliados, os neutros e até a União Soviética os tinham avisado”, mas ele mesmo dá a pista: o erro estratégico só pode ser explicado “como parte daquela densa nuvem de incompreensão, confusão e paranoia dentro da qual os principais atores da Guerra Fria tateavam o caminho”. E, posso acrescentar, quase nunca o achavam.
Ao contrário do que tinha ocorrido na Coreia (onde não se pode dizer que tenha havido, inequivocamente, vencedores ou perdedores), desta vez, os americanos foram, claramente, vencidos. Seu objetivo de manter o então Vietnam do Sul como uma nação alinhada ao bloco capitalista não foi alcançado: a guerra terminou com a unificação dos dois Vietnam, sob a égide do Norte. Além disso, em outro sinal inequívoco de derrota, foi completamente anárquica e desesperada a evacuação dos últimos soldados e civis americanos da sua base principal na cidade que trocou de nome para Ho Chi Minh, mas cujos habitantes voltaram a conhecer como Saigon (Brown, pág. 701).
Se os americanos foram derrotados, então os vietnamitas saíram vencedores. Mas, a que custo?
A Guerra da Coreia, cujos mortos foram estimados entre 3 e 4 milhões (em um país de 30 milhões) e os trinta anos de guerras do Vietnam (1945-75) foram de longe as maiores guerras e as únicas em que as próprias forças americanas se envolveram diretamente em grande escala. Em cada uma delas, cerca de 50 mil americanos foram mortos. As perdas dos vietnamitas e outros povos indochineses são difíceis de estimar, mas a estimativa mais modesta chega a 2 milhões. (Hobsbawm, pág. 422)
Vitória de Pirro. O mundo perdeu. Com a guerra, mais do que com seu resultado final.

REFERÊNCIAS
Eric Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Tony Judt. Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Victor Sebestyen. Revolution 1989: The Fall of the Soviet Empire. New York: Pantheon, 2009.
Archie Brown. Ascensão e Queda do Comunismo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Paris, maio de 1968 (Crônicas do Mundo, III)


As “Crônicas do Mundo” tratam de eventos e processos políticos e econômicos internacionais nos últimos 60 anos. Foram motivadas pela leitura de quatro livros extraordinários: Era dos Extremos, de Hobsbawm; Pós-Guerra, de Judt; A revolução de 1989, de Sebestyen; e Ascensão e Queda do Comunismo, de Brown. (Veja as referências completas ao final deste texto.)
Estudantes lançam pedras na Polícia. Paris, 7 de maio 
de 1968. (Foto Central Press/Getty Images, 
reproduzida pela Folha de S. Paulo on line, em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0405200804.htm)











Gustavo Maia Gomes
Paris, maio de 1968. Por um momento, pareceu que o mundo iria implodir, dando origem a ninguém-jamais-soube-o-quê. Paradoxalmente, o Império da Desordem, se viesse a ocorrer, começaria em um país rico, com a economia em crescimento, em pleno emprego, dotado de eficazes esquemas de redistribuição da renda, e que, quando os problemas surgiram, não enfrentava qualquer crise política ou ameaça externa. Como explicar toda aquela agitação iniciada por estudantes universitários (relutante e atrasadamente seguidos pelos sindicatos de trabalhadores) que chegou a causar, por uns dias, a virtual paralisação da França?
Explicar direito, ninguém, ainda, conseguiu. Mas algumas coisas ficaram menos obscuras, com a passagem do tempo. Por exemplo: aquela foi uma revolta de jovens e é sabido que pessoas de pouca idade, ainda desobrigadas de ganhar o próprio sustento, são as típicas rebeldes sem causa. Isso ocorre em qualquer lugar, em qualquer época. Não é surpresa, portanto, que também existisse entre os jovens franceses. Surpreendente, sim, é que os protestos tenham atingido tamanhas proporções. Isso, provavelmente, só pode ser explicado por um conjunto de fatores que, por um instante histórico, se somaram naquele tempo e naquele lugar.
Os acontecimentos de maio
Tudo começou com uma série de conflitos entre estudantes e a direção da Universidade de Nanterre, em Paris, envolvendo reivindicações muito específicas, como o direito dos homens frequentarem os dormitórios femininos. As autoridades universitárias reagiram com violência, determinando o fechamento da instituição, em 2 de maio, e ameaçando expulsar os que elas julgavam ser os líderes do movimento. No dia seguinte, outros estudantes, particularmente, na Sorbonne, também em Paris, se solidarizaram com seus colegas. Foram respondidos com a invasão desta universidade pela polícia e seu subseqüente fechamento.
Mas os tumultos apenas cresceram, depois disso. Em 6 de maio, a maior associação de estudantes da França convocou uma marcha de protesto que reuniu 20 mil estudantes, rechaçados a cassetetes e bombas de efeito pela Polícia. A multidão se dispersou, porém vários manifestantes principiaram a construir barricadas nas ruas, retirando as pedras do calçamento e lançando algumas delas contra os policiais. A Polícia reagiu com brutalidade, o que acabou atraindo simpatias para os estudantes. Os próprios sindicatos dos trabalhadores, até então hostis ao movimento, passaram a se solidarizar com ele, convocando manifestações públicas e uma greve geral para o dia 13 de maio.
A greve aconteceu e teve grande impacto, fazendo a França, literalmente, parar; além disso, ela desencadeou ações ainda mais perigosas para a estabilidade social. Já no dia seguinte, comitês de trabalhadores passaram a ocupar as fábricas. Pelos próximos 15 dias, as manifestações, agora de estudantes e trabalhadores, se sucederam, cada vez mais numerosas. O governo entrou em pânico. Anunciando que iria para sua residência de campo, o presidente Charles de Gaulle desapareceu, sem dar notícia de onde estava nem mesmo aos seus auxiliares imediatos. (Na época, o primeiro-ministro Georges Pompidou declarou que ele havia fugido; hoje se sabe que foi se encontrar com militares franceses na Alemanha, a fim de avaliar de que lado estaria o Exército, na eventualidade de uma tentativa de tomada de poder pelos rebeldes.)
Enquanto isso, o país permanecia paralisado. A população, exceto os estudantes e os trabalhadores em greve, começou a se preocupar com o rumo que os acontecimentos estavam tomando, levando a uma reação conservadora. Em 30 de maio (um dia após haver desaparecido), De Gaulle regressou a Paris, dissolveu a Assembleia Nacional, marcou eleições gerais para 23 de junho, anunciou, em discurso que não iria renunciar, e exigiu que os trabalhadores voltassem às atividades. Setores do governo deixaram vazar a informação de que tropas do Exército já se encontravam nos arredores da capital, prontas a intervir para restabelecer a ordem.
Pouco depois do discurso presidencial (pronunciado às 4:30 da tarde), uma multidão calculada em 800 mil pessoas se concentrou na avenida Champs Élysées, marchando em apoio ao governo. A agitação, rapidamente, retrocedeu. As eleições gerais foram ganhas pelo partido gaullista, que saiu dos episódios de maio ainda mais fortalecido. Não apenas Paris ou a França, o mundo havia passado por uma grande comoção.
Estrutura, conjuntura
Como explicar a revolta estudantil?
Talvez pela conjunção de circunstâncias permanentes e transitórias. Havia, por um lado, os fatores estruturais. O principal deles foi o enorme aumento na proporção dos jovens (e de estudantes universitários) na população total dos países europeus, em decorrência do chamado Baby Boom, ou o grande número de nascimentos ocorrido logo após a Segunda Guerra. Havia, enfim, mais gente do que nunca nas universidades, o que gerou uma espécie de lógica dos grandes números: dois rapazes protestando porque não podem visitar, à noite, as moças que moram na ala feminina dos alojamentos é uma coisa; 50 mil reclamando em coro e em altos brados da mesma proibição é outra.
Pode também ter acontecido – ainda falando dos fatores estruturais – que as discrepâncias ideológicas que sempre dividem as gerações se tivessem tornado particularmente agudas naquele momento. Os estudantes tinham 20 ou 25 anos, em 1968. Grande parte de seus pais havia nascido durante a Primeira Guerra, enfrentado o desconforto da Grande Depressão, testemunhado a vergonha da ocupação da França pelos nazistas, aturado o regime de Vichy, lutado na Segunda Guerra, sofrido as consequências das perturbações econômicas nos anos de conflito armado. Seu universo era, pois, este -- completamente diferente do de seus filhos, que só haviam conhecido a rápida reconstrução no pós-guerra e 20 anos de prosperidade. Para os jovens franceses dos 1960, os grandes problemas do mundo podiam ser as relações sexuais; para seus pais, eram espantar os fantasmas do passado e dormir mais uma noite sem pesadelos. Não deviam ter muita conversa.
Mas nem mesmo essas e outras tantas razões estruturais teriam, sozinhas, produzido a revolta. Foi necessária a conjunção de fatores conjunturais – não apenas na França, no mundo – para precipitar os acontecimentos. Destes últimos, não houve escassez. A Revolução Cultural na China estava em pleno curso. Observada à distância, aquilo parecia a realização dos sonhos anarquistas, com a sucessiva desmoralização pública de altos dirigentes partidários (não de todos, só dos que poderiam fazer sombra a Mao Zedong, mas, à época, ninguém sabia disso). E o que era melhor: desmoralização promovida por jovens idealistas, revolucionários autênticos, reunidos na Guarda Vermelha. (De novo, não era bem assim, mas parecia ser.)
Teve mais, pois 1968 foi, realmente, um ano especial. Em janeiro, os guerrilheiros vietcongues lançaram uma ofensiva contra o Vietnam do Sul apoiado militarmente pelos Estados Unidos: até a embaixada americana em Saigon foi, temporariamente, tomada. Depois disso, cresceu muito a oposição à guerra e se multiplicaram as manifestações contra ela, em todo o mundo. Nos EUA, em adição ao movimento pacifista que se agigantava, também ia a pleno curso a campanha pelos direitos civis. (Em outro episódio dramático, Martin Luther King, o líder negro, foi assassinado em 4 de abril).
E ainda mais: na Tchecoslováquia, a invasão soviética ainda não havia acontecido, mas a montagem do socialismo com face humana já estava sendo feita, projetando esperanças libertárias por todo o mundo. Até mesmo no Brasil houve uma onda de protestos contra a ditadura militar, que iriam culminar com a Marcha dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, e com a reação violenta do regime (Ato Institucional no 5, em 13 de dezembro).
Tudo isso compunha um ambiente onde o protesto e a inquietação pareciam não apenas necessários, bem vindos, simpáticos, mas até mesmo uma forma de vida para estudantes e intelectuais.
A revolução que nunca existiu
Esses foram os fatores concomitantes à revolta dos estudantes parisienses. Em retrospecto, é possível argumentar que eles explicam razoavelmente os acontecimentos. Mas isso é fácil dizer agora, 45 anos passados. No momento em que as coisas estavam acontecendo, ninguém entendia nada, nem das causas, nem dos possíveis efeitos de tudo aquilo. Os efeitos, na verdade, foram poucos. Vista de hoje, a revolta dos estudantes valeu mais pelo simbolismo das suas frases escritas nos muros – “É proibido proibir”; “Seja realista, exija o impossível”; “Decretado o estado de felicidade permanente” – do que por qualquer outra coisa.
Essa revolução não teve vítimas, o que, no final das contas, quer dizer que não foi, absolutamente, uma revolução (Judt, pág. 418).

REFERÊNCIAS
Eric Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Tony Judt. Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Victor Sebestyen. Revolution 1989: The Fall of the Soviet Empire. New York: Pantheon, 2009.
Archie Brown. Ascensão e Queda do Comunismo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Cuba, 1959-2013 (Crônicas do Mundo, II)


Gustavo Maia Gomes
As “Crônicas do Mundo” tratam de eventos e processos políticos e econômicos internacionais nos últimos 60 anos. Foram motivadas pela leitura de quatro livros extraordinários: Era dos Extremos, de Hobsbawm; Pós-Guerra, de Judt; A revolução de 1989, de Sebestyen; e Ascensão e Queda do Comunismo, de Brown. (Veja as referências completas ao final deste texto.)

Símbolo de uma revolução real, em Cuba,
Che Guevara  morreu  comandando uma
revolução imaginária, na Bolívia. (Em 9/10/1967)









Introito
No mundo da Guerra Fria, enquanto ditaduras de direita tinham o apoio automático dos Estados Unidos, quem defendesse ou pusesse em prática medidas redistributivas radicais – por exemplo, a reforma agrária –, enfrentava a infalível oposição dos norteamericanos. Sendo assim, era fácil, especialmente, para jovens idealistas e intelectuais com interesse em política, identificar o mal com o “imperialismo ianque” e o bem com quem fosse por eles combatido.
Foi neste contexto histórico que, em 1959, Fidel Castro e seu minúsculo exército derrubaram o governo de Fulgencio Batista. Considerando o curriculum vitae do ditador derrotado, devemos admitir que os jovens guerrilheiros (àquela altura, certamente, ainda “idealistas”) fizeram o que devia ser feito. Também era de se esperar que eles não tivessem grandes simpatias pelos vizinhos poderosos:
O nível de corrupção dos sucessivos governos cubanos era tal, com governantes em conluio com gângsteres americanos, que o ressentimento com os Estados Unidos estava disseminado na sociedade cubana muito antes de o país se tornar Comunista. (Brown, pág. 350)

Até assumir o poder, Fidel Castro não tinha vínculos com o Partido Comunista, que só se aliou à insurreição contra Batista quando a vitória final desta parecia apenas uma questão de (pouco) tempo. Entretanto, destaca Hobsbawm:
Tudo empurrava o movimento fidelista na direção do comunismo, desde a ideologia social-revolucionária daqueles que tinham probabilidade de fazer insurreições armadas de guerrilha até o anticomunismo apaixonado dos EUA na década de 1950, (...) que automaticamente inclinava os rebeldes antiimperialistas a olhar Marx com mais bondade. (Hobsbawm, pág. 427)
Havia, portanto, naqueles primeiros momentos, muitas razões para que intelectuais da esquerda internacional e jovens idealistas de classe média apoiassem com fervor a revolução cubana, quando ela, vitoriosa, tornou-se governo. Mas, então, uma nova realidade apareceu: Fidel Castro começou fuzilar em larga escala os que a ele se opunham. O novo regime, rapidamente, revelou ser uma ditadura mais sanguinária que a de Batista.
Mesmo assim, a simpatia com a Revolução persistiu por longo tempo. Sustentou-a, entre outras coisas, o contínuo desafio de Fidel Castro aos Estados Unidos e o aparente idealismo dos cubanos, que mandavam guerrilheiros para fomentar imaginárias revoluções na América Latina e tropas militares para lutar ao lado do Movimento Popular de Libertação de Angola (1975-91).
Enquanto isso, no plano interno, Castro continuava a fuzilar dissidentes; a economia cubana permanecia travada; e o povo se mantinha tão pobre quanto sempre fora. Mas os seus simpatizantes no mundo afora não sabiam direito dessas coisas ou, se sabiam, preferiam ignorá-las.
Epílogo
Em retrospecto, o regime castrista propiciou alguns ganhos sociais em educação e saúde, bastante difundidos entre a população, mas, como todos os regimes comunistas, com a única possível, parcial, e especialíssima exceção da China pós-Mao Zedong, tem sido um enorme fracasso político e econômico.
“Fracasso” é um termo comparativo. Ele denota a incapacidade de atingir um resultado que teria sido possível e mais desejável do que aquele, efetivamente, alcançado. No caso de Cuba, o fracasso político é dado pela eternização do regime ditatorial (e aqui se imiscui o juízo de valor “é melhor viver numa democracia do que numa ditadura”) e pelo teste empírico irrecorrível: assim como não havia ninguém querendo fugir da Berlim capitalista e democrática para a Berlim comunista e ditatorial – mas um muro foi construído para estancar o fluxo de pessoas na direção contrária –, também são muito poucos os que poderiam ir morar em Cuba, mas não querem, comparados aos que quereriam sair de lá, mas não podem.
O outro fracasso de Cuba é o lento crescimento econômico e o persistentemente baixo produto por habitante, características comuns a todos os regimes onde os burocratas, com sua autossuficiente ignorância, administram a economia criando incentivos à redução da produção, ao invés de seu aumento.
O fracasso econômico não era inevitável. Mais ou menos no mesmo período em que o país tem sido governado pelos irmãos Castro, economias também pequenas, mas onde o mercado desempenha papel preponderante – Taiwan, Hong Kong, Malásia, Coreia do Sul são exemplos – se tornaram ricas e dinâmicas.
Deve ser reconhecido que Cuba enfrenta há anos o bloqueio comercial, financeiro e de movimento de pessoas ordenado pelos Estados Unidos. Seu governo, compreensivelmente, atribui a este fator a responsabilidade pelo mau desempenho econômico. Embora haja alguma verdade nisso, trata-se, fundamentalmente, de uma falácia: todas as economias comandadas por burocratas, inclusive a da China, fracassaram, com ou sem bloqueios.
Além disso, como compensação às restrições americanas, Cuba recebeu durante muitos anos fartos subsídios da União Soviética, sem que a sua economia se tornasse, jamais, eficiente e dinâmica. É duvidoso, por fim, que os governantes cubanos estejam, de fato, incomodados com o bloqueio. Do ponto de vista americano, esta tem sido uma política míope, estúpida e contraproducente, como tantas outras emanadas da grande potência capitalista; do ponto de vista cubano, entretanto, o embargo trouxe vantagens que a própria razão desconhece.
Como está escrito em Ascensão e Queda do Comunismo:
Se as conquistas na saúde e na educação ajudaram a sustentar o apoio ao sistema existente em Cuba, um aliado involuntário do regime têm sido os Estados Unidos. (...) Ao impor um embargo econômico a Cuba, e ao dificultar as visitas de cidadãos americanos à ilha, o governo dos EUA (...) ajudou a liderança cubana ao sustentar a ameaça externa, e reforçar, assim, o patriotismo cubano. (Brown, pág. 370)
Em resumo, as esperanças originais associadas à romântica tomada de poder pelos guerrilheiros de Fidel Castro se converteram em 50 anos de ditadura. A pobreza que, no tempo de Batista, era a sina de muitos cubanos, passou a ser o destino de todos. Ali, todo mundo tem direito à assistência médica – de terceira classe; o povo inteiro recebe educação – de quinta categoria. Os que não conseguem imaginar nada melhor do que isso estão satisfeitos. Os que conseguem gostariam de fugir para Miami ou o Rio de Janeiro.
No frigir dos ovos, beneficiários inquestionáveis do regime castrista só foram, mesmo, dois tipos de pessoas: os fidéis e os raúis.

REFERÊNCIAS
Eric Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Tony Judt. Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Victor Sebestyen. Revolution 1989: The Fall of the Soviet Empire. New York: Pantheon, 2009.
Archie Brown. Ascensão e Queda do Comunismo. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Gustavo Maia Gomes, “Guerra Fria, 1945-89. (Crônicas do Mundo, I)”, em http://gustavomaiagomes.blogspot.com.br/2013/02/guerra-fria-1945-89-cronicas-do-mundo-i.html)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Guerra Fria, 1945-89 (Crônicas do Mundo, I)

Gustavo Maia Gomes
As “Crônicas do Mundo” tratam de eventos e processos políticos e econômicos internacionais nos últimos 60 anos. Foram motivadas pela leitura de quatro livros extraordinários: Era dos Extremos, de Hobsbawm; Pós-Guerra, de Judt; A revolução de 1989, de Sebestyen; e Ascensão e Queda do Comunismo, de Brown. (Veja as referências completas ao final deste texto.)

A crise dos mísseis em Cuba foi um dos
principais eventos da Guerra Fria
Alertado com o que julgava ser a marcha insensata para a inevitável Terceira Guerra Mundial, o sociólogo americano C. Wright Mills (um crítico da ordem estabelecida, mas academicamente respeitado) escreveu, em 1960:
Estamos no final de uma estrada militar que não leva senão à morte. A guerra fará desaparecer todas as nações, e mesmo assim seus preparativos constituem o esforço mais extenuante e maciço das principais sociedades do mundo de hoje. A guerra tornou-se total. A guerra tornou-se absurda. (Mills, pág. 19)
Mills estava falando da corrida armamentista e da batalha ideológica que a fazia parecer necessária, respeitável. Quase tudo o que aconteceu de importante na política internacional, de 1945 a 1989, teve a ver com essa disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética. Era a Guerra Fria.
Suez, 1956; Budapeste, 1956
Durante um tempo, antes de o televisivo Jornal Nacional ser criado (em 1/9/1969), os brasileiros ficavam sabendo o que se passava no mundo, especialmente, pelo Repórter Esso que, no Recife, era lido localmente e transmitido pela rádio Jornal do Comércio. Havia os jornais impressos, claro, e as revistas de circulação nacional como O Cruzeiro, Manchete, Visão. Mas estes, diferentemente do rádio, davam as notícias de ontem.
Deve ter sido pelo Repórter Esso que primeiro ouvi falar da “Guerra Fria” e da “crise de Suez”, uma sucessão de episódios (outubro e novembro de 1956) que envolveram a nacionalização do canal pelo presidente egípcio Nasser, as ações de guerra de Israel contra o Egito, a intervenção militar da Inglaterra e da França para proteger seus interesses em Suez, a reação internacional (os Estados Unidos, que desautorizaram publicamente a ação bélica anglo-francesa) e a intervenção de uma força de paz da ONU, parcialmente integrada por soldados brasileiros. Depois de semanas de tensão – que sempre poderia resultar em uma nova guerra mundial –, a crise esfriou.
Quase simultaneamente aos acontecimentos de Suez, ocorreu a invasão militar soviética em Budapeste, para extinguir a revolta dos húngaros contra o regime ditatorial a que viviam submetidos. Como lembra Archie Brown, neste episódio, o fato de o mundo já estar sobressaltado com os acontecimentos de Suez operou em favor da URSS, diluindo a reação contra a intervenção na Hungria. Mas não teria sido diferente, mesmo sem essa coincidência. Eventos posteriores (Praga, 1968) viriam reforçar a percepção de que os Estados Unidos e seus aliados da Europa não estavam dispostos a reagir militarmente contra a violência empregada pelos russos para proteger o império que eles haviam erigido nos anos imediatamente posteriores a 1945.
Citando Hobsbawm:
A URSS sabia (ou melhor, percebera), já em 1953, quando não houve reação aos tanques soviéticos que restabeleceram o controle diante de uma séria revolta operária na Alemanha Oriental, que os apelos americanos para “fazer retroceder” o comunismo não passavam de histrionismo radiofônico. Daí em diante, como confirmou a revolução húngara de 1956, o Ocidente se manteve fora da região de domínio soviético. (Hobsbawm, pág. 226)
De qualquer forma, a invasão da Hungria por tropas soviéticas deixou marcas profundas na reputação do comunismo, sobretudo, entre os jovens idealistas, cuja inclinação natural era simpatizar com a visão marxista de um mundo onde não havia (ou não haveria) a divisão da sociedade em classes.
Por que uma bondade tão boa tinha de ser imposta ao povo pela força das baionetas?
Oscar Niemeyer (1907-2012), o grande arquiteto brasileiro, comunista de nascimento, viveu 104 anos sem conseguir responder a essa pergunta. Eric Hobsbawm (1917-2012), o autor citado acima, tampouco.
Crise dos Mísseis, 1962; Praga, 1968
O episódio mais perigoso da Guerra Fria foi a crise dos mísseis (outubro de 1962), deflagrada depois que os Estados Unidos fotografaram armamentos nucleares em vias de ser instalados pela União Soviética em Cuba, portanto, a apenas 150 quilômetros do território norteamericano. Brandindo a ameaça de bombardear as instalações, John Kennedy decretou o bloqueio naval da ilha e exigiu a retirada dos mísseis, mas o líder russo Nikita Kruschev não o atendeu imediatamente.
Enquanto isso, navios da URSS estavam a caminho de Cuba e iriam ser interceptados pelos americanos. Haveria uma batalha de canhões? Em havendo, o que se seguiria a ela? Em caso contrário, que lado cederia? Durante treze dias, o mundo esteve mais perto do que nunca de uma guerra nuclear. A União Soviética acabou recuando, em troca (hoje se sabe) de algumas concessões dos Estados Unidos:
O presidente Kennedy assegurou que os EUA não atacariam Cuba e, sob a condição de que sua promessa não se tornasse pública, concordou em retirar mísseis americanos da Turquia. (Brown, pág. 313)
O entendimento dos dirigentes americanos à época (Judt, pág. 263-4) era que a União Soviética instalara os mísseis em Cuba para criar um contraponto estratégico ao conflito com os EUA em torno da Alemanha. (Até a construção do célebre muro, em 1961, Berlim Ocidental constituiu a porta de saída para milhares de alemães insatisfeitos com o regime comunista, e isso era fonte permanente de tensões entre as superpotências.) Na lógica da Guerra Fria, fazia sentido.
Também houve a Primavera de Praga (1968), um ensaio de relaxamento político feito pelos governantes comunistas tchecoslovacos (relaxamento da censura à imprensa, calendário para realização de eleições livres, promessa de criação do “socialismo com face humana”) que terminou, a exemplo do que já havia acontecido antes na Alemanha e na Hungria, com a invasão dos tanques soviéticos e o restabelecimento da normalidade comunista: ditadura absoluta, imprensa sob rígida censura, obediência irrestrita a Moscou.
Mais uma vez, os Estados Unidos protestaram pelo rádio. E só.
O término
A Guerra Fria tornou-se quente em várias ocasiões e lugares. Não na Europa, onde a divisão feita ao final da Segunda Guerra só foi contestada em 1948/49, com o bloqueio soviético a Berlim Ocidental e a consequente reação dos EUA; mas na Ásia (guerras da Coréia, 1950/53; Indochina-Vietnam, 1945/75), na África (as infindáveis guerras de descolonização, numa primeira etapa, e depois as guerras civis, interétnicas ou religiosas: Argélia, 1954/62; Congo, 1960; Angola, 1961/74, entre outras); e na América Latina (El Salvador, 1980/92; Chile, 1973; entre outros incidentes).
Segundo Archie Brown (pág. 696), a URSS e os EUA deram um fecho “psicológico” à disputa ideológica e armamentista no verão europeu de 1988, com a visita do presidente Ronald Reagan a Moscou; o fim “ideológico” teria ocorrido em dezembro do mesmo ano, com o discurso do líder soviético Mikhail Gorbachev nas Nações Unidas. Foi, porém, a aquisição da independência nacional, juntamente com a rejeição aos sistemas Comunistas, no leste europeu, ao longo de 1989, que selou o fim da Guerra Fria. (Brown, pág. 696)
Nas quatro décadas em que persistiu – ou nas quase sete décadas: Tony Judt (pág. 117) diz que “na Europa, a Guerra Fria não começou depois da Segunda Guerra Mundial, mas depois da Primeira” –, a disputa ideológica e armamentista ameaçou, por várias vezes, desencadear a terceira guerra mundial. O principal perigo era que um lado interpretasse erroneamente alguma ação do outro, provocando uma resposta nuclear. Ou que o disparo inicial ocorresse por acidente, ou por um ato de loucura de algum militar com acesso a bombas atômicas. Teria sido um evento inesquecível, exceto pelo fato de que não sobraria ninguém para lembrá-lo.
O confronto ideológico e armamentista entre URSS e EUA não foi apenas uma circunstância existente lá fora, que só dizia respeito diretamente ao cidadão comum quando seu país era invadido ou bombardeado por forças militares americanas (Coreia, 1950-53; Vietnam, 1965-75) ou soviéticas (Alemanha Oriental, 1953; Hungria, 1956; Tchecoslováquia, 1968; Afeganistão, 1979-89) ou quando, como em 1962, o mundo inteiro parecia prestes a se tornar um grande torresmo. A hostilidade entre as democracias ocidentais e as ditaduras comunistas afetou, na verdade, cada aspecto da vida de, praticamente, todas as pessoas em todos os países do mundo.
Influenciou, portanto, também a vida política do Brasil onde, desde 1935, a “ameaça comunista”, quase sempre, imaginária, foi repetidamente usada como pretexto para golpes de estado direitistas (1937, 1961, 1964) e para justificar a repressão a movimentos que lutavam contra a pobreza e a desigualdade social.

REFERÊNCIAS
C. Wright Mills, As Causas da Próxima Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 1961. (A edição original é de 1960.)
Eric Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Tony Judt. Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Victor Sebestyen. Revolution 1989: The Fall of the Soviet Empire. New York: Pantheon, 2009.
Archie Brown. Ascensão e Queda do Comunismo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Onze doutores na arte de escrever


Gustavo Maia Gomes
Por que onze? Poderiam ser três, ou dezoito. Por que onze?

Porque é com quantos homens se arma um time de futebol. E embora hoje quase mais ninguém pratique este esporte – os jogadores fazem comerciais; os técnicos vendem escalações; os dirigentes praticam a rapinagem; só os torcedores ainda torcem –, algumas de minhas leituras mais antigas estão associadas ao futebol. Leia o texto completo em