sábado, 27 de outubro de 2012

Quem era racista? Monteiro Lobato? Nelson Ferreira?


GUSTAVO MAIA GOMES

Dois dias atrás, postei no meu blog diálogos imaginários alusivos à perseguição movida contra os livros de Monteiro Lobato por entidades supostamente defensoras da igualdade de direitos raciais
. (Para quem não leu “O encontro de Jeca Tatu com a Nega do Cabelo Duro” e pode se interessar, ele está logo abaixo deste texto.)

Hoje, acrescento a informação que o grande maestro pernambucano Nelson Ferreira, autor da música Operação Macaco (1959) -- a mais “politicamente incorreta” das quatro que citei no texto de anteontem --, ERA NEGRO, como pode ser visto na foto. Atenção: ele ERA NEGRO. Chamá-lo de “afro descendente”, além de beirar a frescura, constitui flagrante anacronismo. (Nelson morreu em 1976.)

Teria Nelson Ferreira chegado ao absurdo de ser racista contra a sua própria raça? Claro que não. O que vem acontecendo é que essas entidades "defensoras dos direitos raciais" (mais bem seriam chamadas "promotoras do racismo") estão usando as lentes de hoje para julgar as manifestações artísticas e literárias de ontem. 

Neste processo, quando têm êxito, elas realizam as profecias de George Orwell, no livro “1984”, no qual um regime totalitário vivia apagando a história, de modo a reescrevê-la de acordo com os preconceitos e as conveniências dos que eram, naquele momento, poderosos. É para onde estamos caminhando?

(Foto de Nelson Ferreira colhida em http://www2.uol.com.br/JC/imagens/nelson.jpg)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O encontro do Jeca Tatu com a Nega do Cabelo Duro

Mais uma obra de Monteiro Lobato é questionada por suposto racismo: após Caçadas de Pedrinho, entidade quer barrar distribuição de Negrinha. (g1.globo.com, 25/9/2012)



GUSTAVO MAIA GOMES


Acusado de racismo, Monteiro Lobato está preocupadíssimo. Não com ele, a quem o Biotônico Fontoura sempre protegeu. Com alguns dos seus amigos compositores. Demorou um pouco, mas terminou achando quem ele queria encontrar. 

-- Babo, como era mesmo aquela sua música do carnaval de 1931? 

Embevecido com a lembrança, Lamartine Babo não se fez de rogado. 

-- Fomos eu e os Irmãos Valença, do Recife, que fizemos. 

O teu cabelo não nega, mulata,
Porque és mulata na cor,
Mas como a cor não pega, mulata,
Mulata eu quero o teu amor 

-- Pois mude a letra, imediatamente. Por muito menos, estão querendo queimar meus livros. Tenho uma sugestão salvadora. Diga se gosta: 

A tua penugem da cabeça não desmente os fatos, afrodescendente, filha de caucasiano,
Porque és afro descendente, filha de caucasiano, na pigmentação da epiderme,
Mas como a pigmentação da epiderme não é transmissível por contato direto,
Afro descendente, filha de caucasiano, eu quero o teu amor

-- “Eu quero o teu amor, pode ficar”, disse Lobato, "se você acrescentar isso:" 

Mas só depois de saber
Que você é maior de idade,
E foi ao cartório dizer
Que me ama de verdade 

Lamartine virou uma fera. 

-- Ah, Lobato, nem os versos são meus e nem eu faço música pra alguém botar nela uma merda dessas. Se quiser, fale com os Valença, quem sabe? Eu prefiro continuar morto. 

*** 

Decepcionado com esse primeiro fracasso, Monteiro Lobato encontrou David Nasser e Rubens Soares. Não só eles, também os Anjos do Inferno. Estavam todos juntos. Com certeza, já sabiam do que se tratava: 

-- Mas que prazer revê-los! É sobre aquela música que vocês dois fizeram, em 1942, e os Anjos gravaram... 

-- “É isso aí, Monteiro. Grande sucesso. Quer que a gente cante?”, falou um dos anjos. 

-- Por favor, o caso é urgente. 

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia ?
Qual é o pente que te penteia ?
Qual é o pente que te penteia ?


-- Não, isso não. Por favor, jamais. É perigoso. Vocês precisam mudar a letra. 

Para surpresa do escritor, apareceu uma voz conciliadora: 

-- “Tem razão, Lobato”, interveio David Nasser. “Veja se fica bem assim:” 

Jovem senhora distinta, elegante, respeitadora das convenções sociais
Portadora de uma cabeleira com qualidades naturais as mais recomendáveis
Qual é o pente que te penteia ?
Qual é o pente que te penteia ?
Qual é o pente que te penteia ?


-- Não pode, David, não pode. Vocês não estão entendendo nada. Já andaram falando até do meu Jeca Tatu, imaginem. 

Mas David Nasser só admitia ir até ali. “Qual é o pente que te penteia?” ele não ia tirar de jeito nenhum. 
*** 
Monteiro Lobato encerrou a conversa naquele momento. Agora, só lhe restava um encontro. E era logo com Ari Barroso, o mais ranzinza de todos. 

-- Ari, amigo. É sobre aquela sua música de 1943, Terra Seca. 

O compositor já respondeu cantando: 

Trabalha, trabalha, nego
Trabalha, trabalha, nego
Nego tá molhado de suor
As mãos do nego tá que é calo só


-- É o seguinte, Ari, não sei se você acompanha as notícias. Estão perseguindo quem fez coisas desse tipo. Negro não existe mais, no Brasil. Agora, só afro descendente... 

Ari Barroso interveio de súbito, bem ao seu estilo: 

-- Parece coisa de veado. 

-- “Não importa”, retrucou Lobato. “Você tem de mudar a letra.” 

-- Trocar, eu não troco, mas, se alguém vier me dizer que não é pra negro trabalhar, eu lhe darei uma gravação da Aquarela do Brasil. 

Brasil, meu Brasil brasileiro 
Meu mulato inzoneiro... 

Desta vez foi Monteiro Lobato quem interrompeu, sem pedir licença. 

-- Nada feito, Ari. Inzoneiro até dá pra passar, mas mulato, em hipótese nenhuma. 

-- “Nesse caso, estamos conversados”, retrucou Ari Barroso. “Vou rever os jogos do Flamengo. Agora, pra você não me achar mal agradecido, tome aqui um presente.” 

*** 
Era um velho disco de 78 rotações por minuto, da Fábrica Rozenblit, daqueles que quebravam ao cair. Continha uma música, “Operação macaco”, dos pernambucanos Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, sucesso no carnaval de 1959. 

Monteiro Lobato conseguiu um jeito de fazer sua vitrola rodar de novo e ouviu os primeiros versos: 

Dizem que em sessenta
Negro vai virar macaco
Vejam só a grande confusão
Se é verdade o que diz o profeta
Penca de banana vai custar um milhão


“Desisto!”, pensou o escritor, em cuja obra os idiotas do dia vêem racismo. E balbuciou, desesperançado: 

-- Essa aí não tem no mundo quem conserte.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Eu te dei vinte mirreis prá tirar três e trezentos / você tem de me vortar dezessete e setecentos...


Gustavo Maia Gomes


O título foi copiado de uma música antiga de Luís Gonzaga, mas a história tem a ver com acontecimento de ontem. Minha filha foi tirar a segunda via da sua carteira de identidade. Teve de pagar R$ 15,05. Espantaram-me os cinco centavos. Cinco centavos são um terço de um por cento de R$ 15. Este é o percentual da receita que seria perdida se a taxa fosse fixada em redondos R$ 15,00. Na verdade, nem isso precisaria ser perdido.

Se um caixa de banco ganha R$ 3.000 por mês, seu custo mensal, para o empregador, contando todos os encargos, está muito próximo a R$ 6.000 ou, num cálculo aproximado, 1 centavo por segundo. Estimo que as complicações decorrentes de contar centavos para o troco impliquem, em média, dez segundos a mais de tempo por operação. Portanto, ao receber um boleto de R$ 15,05 (ao invés de R$ 15,00) o banco gasta dez centavos para cobrar cinco centavos.

Uma boa negociação entre governo e banco poderia levar ao seguinte acordo:

(1) o custo para o cidadão passa a ser R$ 15,00, mas, para cada boleto recebido, o banco pagará ao governo um adicional de sete e meio centavos.

(2) O banco terá feito um bom negócio, pois economizou dois centavos e meio de custos salariais em cada boleto recebido;

(3) o governo estará satisfeito, pois receberá dois centavos e meio acima dos R$ 15,05 que recebia antes;

(4) O cidadão estará feliz e propenso a votar no governador para presidente, porque pagou cinco centavos a menos do que paga hoje.

Além de tudo isso, no caso particular, eu, o pagador da taxa em nome de minha filha, também ficaria contente, pois não teria de carregar meio quilo de moedas no bolso pelo restante do dia.

domingo, 14 de outubro de 2012

Espetáculo degradante


GUSTAVO MAIA GOMES
Fui porque se tratava de evento em homenagem a um amigo falecido. Infelizmente, era uma missa. Não frequento essas cerimônias medievais (assim como não iria ver padres assar gente ou assediar meninos, outros de seus hábitos antigos), mas, até ontem, eu admitia ir àquelas em memória de pessoas muito queridas. Só até ontem. Não mais.

Peço desculpas aos amigos, conhecidos e familiares que venham a morrer antes de mim, mas, em face dessa resolução, não irei às suas missas de corpo presente, ausente, sete dias, trinta dias, um ano, duas décadas... Em compensação, os sobreviventes estão dispensados de ir às minhas, pois estas, de acordo com instruções expressas que deixei escritas e assinadas, não existirão.
Uma gota d’água fez o pote transbordar: a agressão moral que senti ao assistir o espetáculo degradante de uma missa. (No caso, carismática, imagine.) Não quero insultar ninguém, apenas constatar fatos. Degradar quer dizer rebaixar e, na missa, pouca coisa ouvi, além de um discurso de rebaixamento humano.
“Somos miseráveis pecadores”. “Nada valemos”. Nossa existência é uma desgraça, mas, não obstante isso, temos de estar eternamente gratos a quem nos criou, dando-nos, portanto, a graça de ter uma vida desgraçada. E, se quisermos passar desta vida ruim, mas certa, para uma boa, mas duvidosa, só nos resta suplicar para que Deus tenha piedade de nós. Ouvi isso e muito mais, numa torrente de frases feitas, constantemente repetidas.
Pois bem, se eles querem se degradar, que o façam, mas não na minha presença. Foi, sobretudo, por isso que decidi não mais frequentar missas, nem mesmo aquelas em memória de pessoas queridas. De espetáculos degradantes, estou farto. Daqui por diante, só entro em igrejas como turista ou participante de eventos culturais – um concerto em sol maior, por exemplo. Até canto gregoriano eu topo, em nome do prazer estético. Missas, muito obrigado.
ANTIGO OU MODERNO?
Não é apenas no discurso que os padres agridem a dignidade humana, nem são somente eles que o fazem, e nem é esse o único aspecto intolerável das missas. Na verdade, porque as religiões se alimentam do que há de pior nas pessoas (medo, ignorância, fé, estupidez, fanatismo), a degradação está embutida em todos os aspectos de todas as cerimônias de todas as religiões. Mas não tratarei do tema em geral. Apenas quero destacar duas ou três coisas que presenciei ontem.
Uma delas foi a exótica combinação de elementos antigos e modernos feita pelos católicos carismáticos. Antigos: não é um padre sozinho a comandar o espetáculo, mas um verdadeiro cortejo que, no início e no final da missa, sai do altar e faz uma espécie de procissão dentro da igreja, soltando fumaça, enquanto os fieis se atropelam para tocar um objeto mágico carregado pela comissão de frente. Modernos: cantorias mil; palco cheio de gente; axilas expostas, minuto sim, minuto não; o público aplaudindo cada vez que é mandado; todo mundo se abraçando, numa falsa solidariedade a ser esquecida no instante seguinte.
A combinação do antigo com o moderno não deixa de ser uma salada russa, mas faz sentido, quando se tem em conta seu objetivo: recuperar uma parcela do mercado religioso, antes monopólio dos católicos, mas que hoje lhes escorre das mãos, gradualmente conquistado pelos evangélicos. Seja dito que os padres e pastores não brigam por ninharias: o faturamento conjunto das igrejas no Brasil se mede na casa dos muitos bilhões de reais por ano. E, o que é melhor, livres de impostos.
PROFUNDEZAS DO INCONSCIENTE
Por que o elemento antigo? Porque impressiona. Os carismáticos sabem que, nas profundezas do inconsciente, as pessoas têm apego aos rituais místicos, carregados de símbolos indecifráveis, povoados de gente com roupas brancas fingindo apaziguar espíritos terríveis. Isso não é de hoje. Quem ler as cartas do padre Manuel da Nóbrega, mandadas do Brasil para Portugal ainda no século XVI, vai saber que uma das formas de os jesuítas impressionarem os índios era juntar um punhado de padres e sair pelas ruas vestindo batinas, carregando estátuas, empunhando velas, cantando cânticos em latim e fazendo discursos incompreensíveis.
Mas, no mundo de hoje, apelar apenas para os símbolos do passado não seria suficiente. Afinal, os evangélicos estão bombando na praça, em parte, por terem inventado uma coreografia inteiramente nova e movimentada para suas próprias cerimônias degradantes. E aí os católicos antigo-modernos lhes imitam, fazendo seus fieis cantarem ininterruptamente; mandando-os levantar os braços a torto e a direito (com as consequências odoríficas que se podem imaginar); estimulando aplausos entusiásticos, como se aquilo tudo fosse um grande show do Chiclete com Banana. A combinação exótica deve estar surtindo efeito, pois a igreja estava lotada, num dia que não era nem domingo, nem feriado.
Os carismáticos só não sabem ainda arrancar dinheiro dos fieis com a mesma competência dos seus rivais evangélicos. A coleta das contribuições é tímida, envergonhada, meia boca. Tal tibieza é resquício da milenar dubiedade católica em relação aos bens materiais: ao mesmo tempo em que acumulava riquezas estonteantes, a Igreja de Roma nunca deixou de associar o dinheiro ao pecado e à danação eterna. Já os evangélicos, herdeiros da Reforma, não têm qualquer escrúpulo a respeito: para eles, quanto mais grana, melhor. Sem qualquer necessidade de arranjar desculpas para meter a mão na bufunfa.
FUMACINHA
Três outras ocorrências da missa carismática merecedoras de registro são a volta do fumacê, a exibição da carteira de identidade pelo senhor sentado à minha frente, e o momento em que o padre manda a plateia fazer seus pedidos a Deus.
Todos de branco, menos um, o cortejo de padres e outros embatinados circula duas vezes pela igreja, em procissão. A primeira é na abertura do espetáculo degradante. Oito ou dez componentes carregam cruzes, brasões, lanternas e graves problemas mentais, perceptíveis nas suas feições tempestuosas.
Essa primeira procissão não tem fumaça. A segunda, já próxima ao final da missa, tem até demais, como se o arcebispo tivesse mandado dedetizar o recinto no momento mesmo em que a igreja estava lotada. Perguntado, o vizinho me informa que é incenso, excluindo a possibilidade de tratar-se de outra coisa ainda mais estimulante. A fumaça, suponho, afugenta os maus e atrai os bons fantasmas. Se for assim, vá lá, embora fosse possível conseguir o mesmo resultado sem transformar a audiência em uma multidão de fumantes passivos.
PEDIDO
O homem sentado à minha frente – desacompanhado, de meia idade, aspecto pobre, pele escura – participa entusiasticamente de cada ato. Quando o padre sinaliza ser hora de levantar os braços, ele não só obedece como se supera, traçando semicírculos com as mãos e fazendo gestos como os de quem abana um fogão a lenha. Tudo isso enquanto segura, com a mão direita, uma pasta contendo papeis; e, com a esquerda, uma carteira de identidade, certamente, a dele.
Foi minha mulher quem matou a charada. A pasta devia conter as cartas das lojas cobrando prestações vencidas; a carteira de identidade era para assegurar que o poder celestial não se enganasse quanto ao nome e CPF do solicitante. O homem tinha ido à igreja para saldar seus papagaios sem despender um centavo. Porque, com certeza, um centavo ele não tinha, embora tenha deixado vários reais de oferta para o padre.
Quando já havia passado muito mais tempo que o tolerável, desde o início da missa, o padre convidou os crentes a fazer seus pedidos às autoridades celestiais. O fiel ao meu lado, um homem forte e alto, que bem poderia se chamar Zé Grande, estava impaciente e rezou para que a missa terminasse em meia hora. Eu, mais otimista, cravei vinte minutos. Perdi por nove.
– Deu Zé Grande.


(Alto do Céu, Recife, 12 out 2012)

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Poema do sempre certo


GUSTAVO MAIA GOMES

Houve num tempo um país
Onde os soldados marchavam
Zezinho também marchava
E Maria mãe dele olhava
Diziam marchem assim
Assim marchavam os soldados
Mas Zezinho marchava assado

Vejam todos diz Maria
Só Zezinho marcha direito
Os soldados estão errados
Porque não marcham com ele
A oposição está errada
Porque não marcha com ele
Os jornais estão errados
Porque não dizem igual a ele
Os juízes estão errados porque
Não dizem ele marchou direito
O mundo todo errado
Menos Zezinho o certo

No mundo de Zezinho estará
Quem marchar igual a ele
Os soldados marcharão
Se marcharem igual a ele
A oposição não marchará
Porque não marcha igual a ele
Os jornais não dirão nada
Porque não dizem igual a ele
Os juízes serão calados
Porque não disseram igual a ele

No mundo de Zezinho
Ele ganha o que perdeu
Tomara que o mundo dele
Fique bem longe do meu